A Lei Áurea assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888 tem só dois artigos. O primeiro decreta o fim do regime escravocrata no Brasil. O segundo revoga as disposições em contrário.
Até então, o Brasil construiu e aplicou um sem-número de leis que limitavam ao máximo a vida de negros e ignoravam apelos internacionais para reduzir o trabalho forçado. A canetada garantiu liberdade uma população de escravizados, mas não freou o surgimento de legislações discriminatórias. A "neutralidade" dos dispositivos ignorava séculos de escravidão, enxergando como iguais cidadãos que, até pouco tempo antes, eram vistos como mercadoria.
Especialistas ouvidos por TAB contam como os diversos dispositivos legais surgidos antes e depois da Abolição desconsideravam abismos sociais para transformar o "todos são iguais perante a lei" em pretexto para marginalizar manifestações sociais, culturais e econômicas de ex-escravizados. Muito do que elas pregavam ainda está presente em regras que doutrinam nosso cotidiano.
O Brasil não teve leis segregacionistas como o regime Jim Crow, ou o apartheid na África do Sul. Mas não é preciso que a lei diga explicitamente que é contra o negro, nem que seja discriminatória, para produzir efeito muito semelhante. A neutralidade do sistema jurídico tem como foco o privilégio de determinado sujeito do Direito
Lívia Sant'Anna Vaz, mestra em Direito Público pela UFBA e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia