Mulheres oferecem faxina em troca de um prato de comida. Imigrantes costuram máscaras a R$ 0,05 por peça, em São Paulo. Crianças aliciadas vendem bala no farol.
A indignação é seletiva quando o assunto é trabalho escravo —o impulso de trocar de celular e comprar um novo jeans é tamanho que, às vezes, não há tempo de desconfiar do preço tão baixo.
Já não há grilhões prendendo ninguém, nem senzalas ou correntes (pelo menos, não do tipo que se vê), mas o Brasil vive de crise econômica em crise econômica, e o país é imenso. Nas lavouras e nos roçados, nos vilarejos no meio do nada, esvaziados por carência de emprego, trabalhadores rurais sobrevivem mal pagos. Pingam de colheita em colheita, tal qual imigrantes estrangeiros do final do século 19. Muitos trabalhavam para pagar dívidas contraídas com o próprio empregador. Segue assim.
Na cidade grande, o trabalho análogo à escravidão está no detalhe —do zíper da calça alinhavado pelo imigrante boliviano ao patrão que oferece um quartinho à empregada doméstica de meia-idade como pagamento pela faxina.
O Brasil é dos países que mais combatem o trabalho análogo à escravidão. Políticas públicas e fiscalização tentam corrigir um problema de séculos: o passado escravocrata mantém, no imaginário e no cotidiano, relações de trabalho problemáticas e desiguais. A economia baqueada deve jogar milhões de pessoas de volta à informalidade e à fome, no mundo todo. Quando a vulnerabilidade aumenta, a função degradante aparece.
Segundo Lys Cardoso, Procuradora do Trabalho e coordenadora nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), com dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, 231 pessoas foram resgatadas de trabalho escravo no primeiro semestre de 2020. "No ciclo do trabalho escravo, um dos elementos é a vulnerabilidade. A tendência —a gente já está se preparando para isso— é que se acentue o número de casos de violação dos direitos humanos", diz ela.
A escravidão contemporânea resiste porque, frente à fome e ao abandono, qualquer trabalho temporário resolve. As pessoas se submetem porque não têm perspectiva, e acreditam que as longas jornadas e o esforço serão recompensados lá na frente. É um arranjo econômico global de teias emaranhadas e desigualdade social. Para muitos, o trabalho é quase um favor que o patrão faz.