O preço da riqueza

Até bilionários e liberais admitem que o capitalismo global está aumentando a desigualdade

Marcelo Fonseca/Folhapress

O mundo se prepara para mais uma crise econômica. Ninguém sabe ainda onde ela vai estourar primeiro, mas o mercado financeiro já a aguarda. Instituições internacionais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) alertam empresas e governos sobre a desaceleração que já acontece na economia global.

Crise e capitalismo são termos que andam juntos. A próxima crise tem a ver com o caráter cíclico do capitalismo, que alternou períodos de crescimento e recuo ao longo do último século. Mas pode ampliar, ou pelo menos chamar a atenção, para distorções estruturais.

Hoje, há uma onda crescente de questionamentos ao capitalismo nos países mais ricos. As críticas miram a concentração de renda, a diminuição de postos de trabalho e a piora da qualidade de vida de grande parte das pessoas. Há dúvidas sobre a capacidade de um modelo, mais preocupado em maximizar lucros de acionistas do que gerar bem-estar para a população.

Outra novidade é que os pedidos de mudança não vêm mais só da esquerda: eles crescem no coração do sistema. Em setembro de 2019, o jornal britânico Financial Times, uma das mais importantes publicações liberais no mundo, capitalista até o pescoço, lançou uma campanha pedindo reforma no modelo vigente. "Capitalism. Time for a reset" é o slogan da agenda proposta.

Em editorial, o Financial Times defende o legado do modelo liberal capitalista no pós-guerra, mas diz que ele não é mais capaz de atender aos anseios da população. Para Lionel Barber, editor do FT, o capitalismo precisa ser reformado para sobreviver.

Tanto é assim que até bilionários estão pedindo mais impostos sobre fortunas e heranças. Entre eles estão o megafinancista George Soros, Bill Gates (fundador da Microsoft), Abigail Disney (herdeira da multinacional de mídia) e Chris Hughes (um dos fundadores do Facebook).

Tudo para os acionistas

A campanha do Financial Times não é uma voz solitária pela reforma. As discussões sobre a necessidade de adaptações vêm também da academia. Nos últimos anos, uma enxurrada de livros chegou às prateleiras questionando a pouca concorrência, o empobrecimento da base da pirâmide, o papel dos ricos e da filantropia na correção das distorções.

Um dos principais nomes na nova onda reformista é o bilionário megainvestidor Ray Dalio. Em novembro de 2019, fez sucesso um texto de Dalio publicado no LinkedIn intitulado "O mundo ficou louco e o sistema está quebrado". Em outro texto, publicado em abril de 2019, Dalio opina sobre por que o capitalismo norte-americano vem criando espirais que reforçam, cada vez mais, a condição de ricos e pobres.

Nos EUA, as críticas, mesmo quando contraditórias entre si, vêm dos dois lados. O presidente Donald Trump quer aumentar barreiras comerciais para proteger empregos. As lideranças do Partido Democrata, como Elizabeth Warren e Bernie Sanders,lançam ideias de como distribuir riqueza. O senador republicano Marco Rubio parece preocupado com a "primazia dos acionistas", que faz com que empresas optem por "retornos rápidos e previsíveis aos investidores em vez de criar capacidades de longo prazo com investimentos em produção".

Realidade distorcida

Os reformistas acreditam que esse coquetel de acumulação, desemprego e empobrecimento pode ser nociva para o próprio sistema capitalista. As teorias são muitas e diferentes, mas têm alguns pontos em comum.

Um dos alvos é o sistema financeiro: a ideia em xeque é a máxima de que uma empresa existe principalmente para servir a seus acionistas. Quando se voltam apenas para o lucro de investidores, os tomadores de decisão subestimam os impactos na realidade das pessoas - isso sem falar nas consequências ambientais.

O argumento é que o sistema financeiro, que deveria ser um mecanismo de suporte para a economia real, se tornou tão grande que está impondo sua lógica às empresas. Em outras palavras, a busca por lucros máximos no curto prazo pode matar o sistema.

O mercado financeiro também estaria por trás da crescente concentração e falta de concorrência. Em "Myth of Capitalism" (O Mito do Capitalismo, em tradução livre), os economistas Jonathan Tepper e Denise Hearn defendem que o modelo atual gerou oligopólios e está asfixiando um dos pilares básicos da estrutura: a concorrência.

Pior para os emergentes

A busca pela valorização dos papéis tem incentivado compras e fusões que diminuem a competitividade. Em um das passagens, Tepper e Hearn defendem que, em geral, o que é bom e racional para uma grande empresa nem sempre é bom para a economia como um todo. A obra, ainda inédita no Brasil, foi escolhida pelo FT um dos melhores livros de 2018.

Em entrevista ao TAB, Tepper culpou os monopólios e oligopólios pelo aumento da desigualdade. Ele também disse acreditar que, apesar de estar presente em todo o mundo, a falta de concorrência é ainda mais sensível em países emergentes como Brasil, México e Chile.

Um dos pontos do livro de Tepper e Hearn é que "em um monopólio, trabalhadores têm pouca escolha sobre onde vão trabalhar e pequeno poder de negociação de salários". Essa dinâmica seria a explicação para a estagnação dos ganhos dos trabalhadores durante as últimas décadas.

A era neoliberal

As décadas de 1970 e 1980 marcaram uma mudança significativa no capitalismo. A facilidade de fazer comércio com várias partes do mundo e o fluxo internacional de capitais aumentaram a pressão por abertura de economias e uma maior competição. Era o início das políticas neoliberais de Margareth Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, a chamada "revolução do lado da oferta", que diminuía custos para crescer.

Quatro décadas depois, é esse modelo que está em xeque. Uma pesquisa lançada em 2018 mostra como as perspectivas de vida mudaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos. Os norte-americanos nascidos entre 1948 e 1973 viram sua renda aumentar todo ano cerca de 3% acima da inflação. O resultado é que 96% conseguiram ser mais ricos que seus pais. Desde 1973, entretanto, o cenário mudou, com a mediana da renda crescendo apenas 0,4% em termos reais. Assim, 28% dos americanos já têm renda menor do que a que tiveram os pais.

"A gente não vê mais aquele capitalismo dos anos dourados em que os aumentos de produtividade iam para salários, o 'American Dream'. O que a gente vê hoje é um sistema que se expande com criação de dívida", explica o economista brasileiro Paulo Gala, professor da FGV/SP e economista da Fator Administração de Recursos.

Na visão do economista Joseph E. Stiglitz, vencedor do Nobel de Economia em 2001, o modelo neoliberal que ganhou força na década de 1980 congelou salários para aumentar a competitividade das empresas. "À medida que os salários estagnavam e o mercado de ações se valorizava, o rendimento e a riqueza se espalhavam entre os mais ricos, em vez de alcançarem os mais pobres", escreveu Stiglitz em artigo publicado no início de novembro de 2019.

E o salário?

Dados compilados pela consultoria britânica Refinitiv mostram que, nos Estados Unidos, os salários médios de trabalhadores que não têm cargo de supervisão não tiveram ganho real ao longo das últimas quatro décadas. Nesse período, o PIB norte-americano mais do que triplicou.

Para Gala, a globalização teve resultados diferentes. Por um lado ela estagnou ganhos da maioria no Ocidente. Por outro, ela diminuiu a pobreza em países da Ásia.

"A gente está num nível de quase US$ 300 trilhões de dívida no mundo, o que é recorde. Os credores estão muito ricos, é a ideia de que 1% é credor e 99% é devedor. E dentro das sociedades, a desigualdade aumenta muito. É isso que traz essa onda no mundo rico de economistas, livros, dizendo que a globalização deu errado", completa.

Como financiar um discurso único

O que os diagnósticos do Financial Times, de Stiglitz, Tepper, Gala, Dalio e tantos outros têm em comum é a constatação de que o modelo capitalista das últimas décadas concentrou muito entre os mais ricos, os acionistas e os que emprestam dinheiro. Com a pouca evolução dos salários, o resultado é a desigualdade.

Dados da World Inequality Database mostram que, em termos de distribuição de renda, a situação da metade mais pobre da população dos Estados Unidos vem piorando desde os anos 1970 - quando começa a chamada revolução do lado da oferta.

Enquanto isso, a parcela destinada ao 1% mais rico fez o caminho contrário. Na série histórica dos Estados Unidos, que começa no início do século 20, é possível ver a diminuição da participação dos ricos no período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 1970.

Stiglitz critica as "elites" de países ricos e pobres por terem vendido a ideia de que políticas neoliberais levariam a um crescimento econômico mais rápido que seria dividido por todos. Isso não aconteceu.

Outra reclamação de Stiglitz é sobre a intolerância intelectual. O receituário neoliberal, na visão do economista, foi imposto a sociedades, vendido como a única maneira de se alcançar o desenvolvimento. Stiglitz diz que o neoliberalismo não tem nada de liberal no campo das discussões econômicas, já que estabeleceu "uma ortodoxia intelectual cujos guardiões eram totalmente intolerantes à dissidência".

A crítica de Stiglitz encontra eco no livro "Dark Money", escrito pela jornalista americana Jane Mayer. Nele, Mayer relata como bilionários usaram seu dinheiro para financiar o pensamento único, patrocinando pesquisas, centros de estudo e campanhas políticas de seu interesse.

Entre os financiadores, estariam os irmãos David e Charles Koch, com negócios em mais de 60 países e 100 mil empregados em diversas áreas de atuação. Os dois, também personagens do documentário Citizen Koch e do livro Kochland, financiavam pesquisadores e políticos com discursos contra impostos, regulação e medidas amigáveis ao meio ambiente.

Tem desigualdade justa?

A desigualdade, na visão de Tepper, nem sempre é um sintoma negativo ou indesejável. O que é nocivo, para o economista dos monopólios, é o tipo de desigualdade que o atual sistema produziu. "Não é a desigualdade em si, mas a desigualdade injusta. Em qualquer sistema, algumas pessoas terão mais sucesso, mais sorte, trabalharão duro ou estarão no lugar certo na hora certa. Isso é inevitável. O que não é desejável é quando pessoas muito ricas ficam mais ricas no mercado [financeiro] ou por terem poder político", disse ao TAB.

Mais otimista, a analista econômica Rana Foroohar escreveu no Financial Times que eleitores e políticos concordam que é hora de dividir o bolo, pelo menos nos EUA. A grande questão, segundo ela, é quem vai ficar com qual fatia em um bolo que tem crescido pouco. "Quando o consumo é 70% de uma economia, nós precisamos mais de crescimento de salários para garantir que as pessoas tenham dinheiro para gastar."

Para o escritor e economista britânico Richard Reeves, o capitalismo funciona melhor quando desconcentra poder e riqueza. Em artigo publicado no jornal The Guardian, ele avalia que, após a queda do Muro de Berlim, o capitalismo passou a reinar sozinho no mundo, mas não conseguiu levar junto sua "irmã gêmea", a democracia liberal.

Trinta anos depois, China e Rússia não dão sinal de que pretendem aderir ao modelo de democracia liberal. Em entrevista recente, o presidente russo Vladimir Putin disse que o liberalismo está obsoleto e falhou. "Liberais simplesmente não podem ditar nada para ninguém mais como vêm fazendo nas últimas décadas."

Mesmo no Ocidente, em democracias jovens ou consolidadas, Reeves se preocupa com o populismo. E, em suas palavras, as irmãs gêmeas estão com problemas. "O capitalismo reina no mundo. Mas o capitalismo enfrenta problemas. E esse é o paradoxo da nossa Era."

Os perdedores de sempre

"Não são 30 pesos, são 30 anos." A frase é um dos lemas das manifestações que acontecem no Chile desde outubro de 2019. O país tem a economia mais desenvolvida da América Latina — o PIB per capita por exemplo é 56% maior que o do Brasil —, mas boa parte da população foi para as ruas por pura insatisfação. Há protestos de insatisfeitos em vários outros países como Líbano, França e Equador.

Em um cenário em que as pessoas escolhem a separação, como no Brexit, ou na eleição de um presidente que quer aumentar barreiras comerciais na maior economia do mundo (Donald Trump), cresce a desconfiança sobre se democracia e capitalismo estão andando juntos.

No best-seller "Como as Democracias Morrem", Steven Levitsky e Daniel Ziblatt explicam como acreditam que as frustrações com a economia podem minar algumas das bases do sistema democrático. "Para muitos norte-americanos, as mudanças econômicas das últimas décadas trouxeram diminuição da estabilidade no emprego, aumento das horas de trabalho, menos perspectiva de mobilidade ascendente e, portanto, um crescente ressentimento social. O ressentimento alimenta a polarização."

Fernando Bizzarro, doutorando e pesquisador em Política Latino-Americana na Universidade de Harvard, classifica a tentativa de estabelecer causa e efeito entre democracia e capitalismo como a questão "mais clássica" da ciência política. Ele acredita que não há uma resposta definitiva sobre se capitalismo leva à democracia ou democracia leva ao capitalismo, mas diz que distorções econômicas são sim capazes de causar problemas políticos, porque, "na medida em que as coisas vão mal, a população tende a preferir alternativas". Para Bizzarro, decisões recentes, como a saída do Reino Unido da União Europeia e a eleição de Donald Trump, podem ser relacionadas aos perdedores do capitalismo.

Tanto Bizzarro quanto Tepper argumentam ainda que a desigualdade pode causar distorções na política, ao afetar a capacidade de influenciar de cada grupo. Stiglitz é ainda mais crítico. "O declínio simultâneo da confiança no neoliberalismo e na democracia não é coincidência ou uma mera correlação. O neoliberalismo prejudica a democracia há 40 anos."

Mudar para manter

Mesmo com todas as críticas, reformistas seguem apontando o capitalismo como o melhor sistema para melhorar a vida da maioria, e Tepper fez questão de ressaltar isso, em entrevista ao TAB. "Precisamos assegurar que a concorrência possa distribuir os benefícios do capitalismo e prevenir a desigualdade injusta", disse o economista, para quem o Estado é o portador das regras que garantam a competição.

Para Bizzarro, o que mudou agora é que os perdedores do jogo estão mais organizados e capazes de movimentar o jogo político. "Todo mundo enxerga as distorções há muito tempo. A ideia de que os capitalistas são ingênuos a ponto de não enxergar as contradições do sistema, como diria o velho Marx, é simplista."

Edwin Morgan, diretor de políticas do Institute of Directors, instituição que há mais de 100 anos reúne e aconselha executivos no Reino Unido, é cauteloso. Ouvido pelo TAB, ele admite a necessidade de ajustes, mas diz que governos já têm barreiras à acumulação irrestrita de capital. "Não é preto ou branco. Você não encontrará pessoas no Reino Unido dizendo que não deve haver regulamentação ou imposto. É só uma questão de onde o governo vai intervir e qual será o efeito disso."

O Financial Times, na campanha, também dá seu voto de confiança. "A livre iniciativa e o capitalismo vêm mostrando uma memorável capacidade de se reinventar. Uma vez o historiador e político Thomas Babington Macaulay observou, sabiamente, que é necessário reformar para preservar. Hoje, o mundo chegou a esse momento." Para não afundar, o capitalismo pede uma refundação.

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