REALIDADE SOTERRADA

Vida e morte de quem construiu casa seguindo a linha do trem em áreas de risco da Grande São Paulo

Rodrigo Bertolotto e Mateus Araújo Do TAB, em Franco da Rocha, Francisco Morato e Várzea Paulista (SP)

"O terreno e a casa que ele lutou tanto para ter hoje estão em cima dele." A diarista Joselita Bonfim, 56, sobreviveu ao deslizamento de terra em Franco da Rocha (SP) que vitimou sete pessoas de sua família, inclusive seu pai, José Bonfim Filho, 82, retirado dos escombros poucas horas antes.

O estrondo quando o domingo (30) já estava amanhecendo assustou o bairro Parque Paulista, no município da Grande São Paulo. Após dois dias de temporal, o morro vizinho desabou. As casas atravessaram a rua São Carlos, levaram junto os postes de luz e engoliram as da frente, empurradas pela avalanche de terra.

Tio Zeca, como era chamado por toda a vizinhança, veio com a família de Campo Formoso, no sertão da Bahia, havia 35 anos. Depois de morar de aluguel na Casa Verde, bairro da zona norte de São Paulo, o pedreiro ouviu falar de uma área pública que estava sendo ocupada perto da linha do trem. Era o ano de 2000, e José Bonfim trouxe toda a família para Franco da Rocha. Na base do mutirão de fim de semana com os vizinhos, construíram quatro casas. Duas desabaram nesta semana.

"Agora me assusto quando escuto o trem passando. O barulho é muito parecido com o desmoronamento. Parece que tudo vai acontecer de novo", conta Larissa Bonfim, 24, que escapou correndo da casa e só percebeu que a mãe, dona Joselita, também tinha se salvado quando encontrou no meio da rua o chinelo dela, que tinha escorregado de seu pé. O trem, que atraiu essa gente para aquela área perigosa pela facilidade de transporte, lembra a cada dez minutos da tragédia que aquela família vive.

Numa imagem de satélite dá para ver que a mancha urbana irradiada a partir de São Paulo criou vários tentáculos, indicando a formação de uma megalópole. O mais extenso deles se espalha de sua zona norte, passando por Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato a caminho de Jundiaí e Campinas. Nos mais de 100 quilômetros de percurso há apenas poucos metros de mata ou plantação interrompendo áreas residenciais ou industriais.

Municípios com perfil rural e geografia íngreme viraram hiperperiferias nas últimas décadas. A população ia seguindo a linha 7 da CPTM para fugir dos altos aluguéis paulistanos. Muitos são migrantes nordestinos (por volta de 25% da população de Francisco Morato, por exemplo, tem essa origem).

O paraibano Inácio Neto, 57, viu a encosta desbarrancar de sua janela de cima do morro. E, do alto de seu conhecimento trabalhando com impermeabilização, ofício de quatro décadas, diz que não foi "obra da natureza" o desastre em seu bairro.

"Conta lá a quantidade de canos. Mais de dez. É muita água servida, fora os telhados virados pra cá. Isso ano após ano. A terra já estava encharcada e trincada faz tempo. Como o morro ia resistir?", aponta o empreiteiro para os encanamentos brancos de PVC pendurados na crista da pirambeira. Vários vizinhos, entre eles Inácio, confirmaram que já houve dois deslizamentos, menores, em anos anteriores - em um deles os próprios moradores transportaram os escombros.

"Passou tudo por cima de mim. A laje do vizinho bateu na minha, abriu um espaço e eu consegui sair. Foi Deus." Nelito Bonfim, 60, acordou e foi ao banheiro no domingo. Nesse momento, veio um forte estalo. O bairro veio abaixo.

Ele foi hospitalizado, mas os exames mostraram que não quebrou nada. Só restaram os arranhões por todo o corpo e alguns na alma. O choro brota de seus olhos. "Tenho pesadelo toda noite que o mundo cai em cima de mim. Acordo tremendo."

O sonho da casa própria provocou um boom imobiliário nos últimos 30 anos na região, atraindo a população de baixa renda para loteamentos, a maioria clandestinos, oferecendo terrenos a partir de R$ 5.000. O crescimento populacional foi bem maior que a média da região metropolitana, mais que duplicando os moradores de Francisco Morato entre 1990 e 2020 - hoje a cidade tem 174 mil habitantes.

O chamado "urbanismo de risco" fez nascer vizinhanças nas beiras de encostas e rios, onde todo verão há perigo de enchente, de queda de barreira ou dos dois juntos - Franco da Rocha tem 382 áreas de risco (3º lugar entre os municípios da Grande São Paulo — São Bernardo do Campo e Santo André são os dois primeiros lugares), enquanto Francisco Morato soma 133. As áreas públicas em declive são ocupadas, e a falta de saneamento básico e a proximidade dos cursos d'água causam ainda problemas ambientais.

Na hora escura das 4h15, as estações de trem de Francisco Morato, Baltazar Fidélis, Franco da Rocha e Caieiras estão lotadas de pessoas que vão ganhar o pão em São Paulo, muitas em trabalhos informais. Quem vive nessas cidades-dormitórios está acostumado a várias horas no transporte e poucas horas dormindo em casa. O sono é algo trepidante.

Há nove anos, a empregada doméstica Maria Aparecida Batista, 48, comprou um terreno em Francisco Morato para erguer sua casa. Em menos de um ano, conseguiu levantar a casa e se mudou com os quatro filhos. Fazendo faxina aos sábados, ela junta dinheiro para dar acabamento à obra. "Isso aqui é tudo que tenho", apontava para um retrato da família pregado na sala.

Na tarde de terça-feira (1), Maria Aparecida voltava do trabalho, em São Paulo, quando encontrou os filhos carregando móveis para um caminhão - a casa havia sido interditada pela prefeitura. Como o barranco nos fundos da construção deslizou, a Defesa Civil vê risco de desabamento. "Lutei tanto. Construí essa casa com as próprias mãos. Mas não vou desistir", chorava.

Antes de Francisco Morato, a família de Maria Aparecida vivia de aluguel no Jardim Umuarama, na zona leste da capital. "Acho que não será mais possível morar aqui. Faltou a prefeitura e o governo alertarem para os perigos e melhorarem a infraestrutura dessas áreas", criticou Adeize Batista, 28, filho dela e técnico em computação.

Enquanto essa família se mudava para a casa vizinha, onde voltará a pagar aluguel, naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro havia sobrevoado a cidade. Depois, em entrevista coletiva, disse que "faltou alguma visão de futuro" por parte de "quem construiu" residências nas áreas de risco.

Em Francisco Morato, quatro pessoas morreram durante as chuvas do final de janeiro. Entre elas, três crianças e um adolescente. Quem chega ao município nota logo as marcas da tempestade. Era lama por toda parte.

Publicado em 2021, um estudo desenvolvido pelo Serviço Geológico do Brasil, ligado ao Ministério de Minas e Energia, mostrou que 4.669 domicílios de Francisco Morato estão localizados em áreas de risco geológico alto ou muito alto — o total na Grande São Paulo é de 132 mil residências. Em 65% dos casos, estão em encostas sujeitas a deslizamentos. São aproximadamente 16.600 pessoas nestas condições — 12% delas, idosos. A renda mensal em cada domicílio desse tipo é de R$ 687,57.

Aposentado após um acidente de trabalho, o serralheiro Rubens Alves dos Santos, 48, mudou-se de São Paulo para Francisco Morato porque no município o aluguel é mais barato. Com os R$ 850 que recebe, conseguia pagar R$ 500 por mês pela casa com dois quartos, onde vivia com a esposa e a filha de 8 anos.

No sábado, às 7h, enquanto "conversava com Deus", sentiu o chão tremer. Era o barranco ao lado deslizando. "Agora vai ser difícil conseguir outro lugar. A maioria dos aluguéis cobra dois meses assim que você entra, uma caução. Eu não consigo pagar." A família de Rubens se juntou a outras dez famílias em um abrigo da prefeitura local.

No Brasil, onde o direito à cidade parece uma ideia tão degradada quanto a de cidadania, os imóveis vão deixando de ser sinônimo de refúgio e se transformando apenas em ativos financeiros. Nesse cenário, os pobres acabam indo para lugares arriscados — os morros de favela como "cartão postal" do país mostram o quanto isso está arraigado.

"A região possui muitas áreas que não são propícias ao assentamento humano porque têm vales estreitos e relevo acidentado. Por ser rica em biomas e mananciais, a região deveria ser área de preservação. Mas houve uma migração dentro da região metropolitana, em busca de moradia, a partir dos anos 1970, seguindo para loteamentos legalizados por interesse político e especulação imobiliária.", conta a arquiteta e urbanista Iná Rosa, que nasceu e cresceu em Franco da Rocha, e a região é tema de suas pesquisas acadêmicas. Acompanhando a várzea do rio Juqueri entre as serras vizinhas, a linha de trem foi inaugurada em 1867 para exportar o café interiorano pelo Porto de Santos, cruzando a cidade de São Paulo ao meio. Só no século 20 entrou para a rede de transporte urbano de passageiros.

Uma das estações é a de Várzea Paulista, município onde cinco pessoas de uma família (casal e três crianças) morreram soterradas com as últimas chuvas. O vizinho Moisés Luna, 30, precisou abandonar sua casa por risco de desabamento naquela encosta repleta de bananeiras. É a segunda vez que é evacuado da área. "Há 15 anos liberaram a gente para voltar, depois de colocarem uma lona. Agora não sei como vai ser", desabafa.

Cinco paradas à frente, na estação Baltazar Fidélis, perto da divisa de Franco da Rocha e Francisco Morato, a família Bonfim enterra seus mortos e conforta seus feridos — incluindo o cão Benni, que ficou soterrado três horas antes de ser resgatado e parece assustado no colo de seus donos. A gatinha Frida continua desaparecida. No trabalho voluntário dos vizinhos para encontrar os corpos, retirando terra com baldes, acabaram localizando só a foto da gata que estava colada em uma parede entre as lajes derrubadas.

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