Com medo da chuva, filhos dormiam com pais antes de morte em deslizamento
Thayany, Nicolly e Richard estavam assustados. Na noite do último sábado (30), por causa do temporal que caía em Várzea Paulista, Grande São Paulo, as três crianças pediram aos pais, Ricardo e Tatiane, para dormirem com eles no quarto do casal.
Às 6h, os cinco foram surpreendidos com o deslizamento de um barranco por trás da casa onde viviam. O barro desceu, arrastando árvores e pedras, atravessou uma parte do quintal e invadiu a casa, justamente no cômodo onde a família estava. Morreram todos soterrados.
Thayany tinha 1 ano, Nicolly, 10, e Richard, 12. Tatiane, a mãe, tinha 30 anos e era dona de casa. Ricardo, o pai, 41, era metalúrgico. Os dois se conheceram no próprio bairro, antes mesmo de se casar. Cresceram ali e também ali construíram a casa para viver juntos. Era uma família com perfil discreto e jeito calmo, dizem os vizinhos.
"Eram crianças lindas, bem criadas", lamentava a dona de casa Dulce Mariano, 47.
Horas antes do deslizamento de terra, os vizinhos já tinham escutado barulhos estranhos. Na casa ao lado, os moradores acordaram por volta das 5h com um estalo forte. "Uma prima que mora mais no alto ligou para cá e disse que um cano tinha estourado. Meu pai desligou o registro", contava a estudante Grazieli Lima, 17.
Pouco tempo depois, caiu a terra. "Ninguém tinha percebido que entrou na casa dele. Assim que a gente notou, meu pai ficou chamando por ele [Ricardo]. Ninguém respondia. Os vizinhos começaram a correr para ajudar, chamamos os parentes deles", lembra. "Quando o sobrinho de Tatiane entrou lá, deu pra ouvir ela gemendo de dor." A mulher foi encontrada morta abraçada à filha mais nova.
A equipe da Defesa Civil chegou logo em seguida. Cerca de duas horas depois, o Corpo de Bombeiros.
Chuva de verão e de sempre
As chuvas que atingiram São Paulo no final de semana deixaram 24 pessoas mortas, de acordo com boletim divulgado pela Defesa Civil do Estado na tarde de segunda-feira (31). Outras 660 estão desabrigadas ou desalojadas. Oito cidades da Região Metropolitana tiveram a situação mais grave.
Uma Zona de Convergência do Atlântico Sul, diz a empresa de meteorologia Climatempo, explica essas tempestades. Uma umidade que vem da região Norte do país junta-se a uma frente fria que estava no litoral do estado, e causam as chuvas.
No final de semana, o nível pluviométrico variou de 80 mm a 170 mm no centro e no leste paulistanos. Somente em Várzea Paulista, por exemplo, o volume chegou a 273 mm em 72 horas — choveu 195 mm entre sábado e domingo.
O governador João Doria prometeu R$ 15 milhões aos municípios atingidos. O valor, previsto para ser liberado nesta terça-feira (1º), vai ser distribuído de acordo com a gravidade da situação de cada local.
Marcas da tragédia
Na segunda-feira (31), a estreita e curvilínea Rua 17 do bairro Jardim Promeca estava em silêncio. Na porta da casa da família Santos, o carro Pointer prata ficou estacionado sobre a calçada, coberto com uma lona cinza. Pela brecha entre o portão e o muro, dava pra ver a cena da tragédia: a lama, remexida pela equipe de resgate, ainda encobria o canto esquerdo da casa, misturada com mato. Objetos pessoais e colchões espalharam-se pelo quintal.
Bem ao lado, numa grade, lia-se "Chácara Recanto Feliz". Era a entrada de uma pequena vila onde vivem parentes de Tatiana.
"Ninguém imaginava que isso ia acontecer. A casa deles não aparentava perigo. Foi uma fatalidade", comentava o auxiliar de produção Moisés Luna da Silva, 30, que mora na mesma rua e conhecia Ricardo e Tatiane desde criança. A casa de Moisés, num morro, está interditada pela Defesa Civil, porque pode desabar a qualquer momento. Ele, a mãe e o sobrinho precisaram se mudar às pressas.
"Tem mais duas casas interditadas aqui em cima. Mas a casa deles ficava num lugar plano. Isso foi a primeira vez que aconteceu", explicava, mostrando no celular vídeos com as cenas do deslizamento e uma foto com os bombeiros trabalhando na remoção dos corpos. O terreno onde moravam as vítimas fica na base da encosta. Segundo Lima, não havia qualquer sinalização de risco pela prefeitura.
Ainda há tensão pela região. No caminho até o local, não é difícil encontrar outros barrancos com sinal de erosão, a maioria deles com árvores, principalmente bananeiras, que acumulam muita água no solo. A terra encharcada e a continuidade das chuvas deixam todos em alerta.
'Dor e saudade'
A morte da família comoveu o município de 120 mil habitantes. No cemitério Nossa Senhora da Piedade, centenas de pessoas acompanhavam o velório, que começou pouco depois do meio-dia de segunda-feira. "Foi uma coisa muito triste. Cinco pessoas de uma mesma família morrerem assim, de um jeito tão grave. Todos com saúde, todos bem", lamentava o assistente de estoque Marcos Santos, 58.
Os cinco caixões foram perfilados numa área externa do cemitério e saíram dali para as gavetas sob aplausos. Uma amiga da família reclamava do abandono do poder público. "Quem são os responsáveis por tragédias como essa? O que leva uma família a viver em lugares inapropriados com total anuência do Estado? Até quando essas pessoas vão ser subjugadas?", criticava a aposentada Márcia Carneiro, 65.
Para ela, faltou cuidado e ação do governo para evitar a tragédia. "Nas eleições, os políticos voltam, como abutres, para pedir voto", frisava. "Eram crianças despertando para a vida. Pais felizes, atenciosos. Sobram para a gente a dor e muita saudade."
Na terça-feira (1º), em nota, a prefeitura de Várzea Paulista decretou situação de emergência no município. Um balanço oficial contabilizou oito pontos de alagamento, 15 pontos de deslizamento de terras e 10 casas interditadas. "A previsão é de que a precipitação seja superior a 100 mm por dia na cidade, o que representa um grande risco de alagamentos e deslizamentos de encostas", alertou.
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