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Nunes revê R$ 250 milhões de isenção a construtoras para 'moradia social'

A Prefeitura de São Paulo colocou sob suspeita R$ 249,6 milhões em isenções fiscais concedidas ao mercado imobiliário para a construção de "moradias sociais" na capital.

Essas isenções dizem respeito à licença para a construção de 9.000 unidades desse tipo —uma pequena fração do total de "moradias sociais" autorizadas entre 2021 e 2024.

Ou seja: o volume total de isenções que a própria prefeitura concedeu às construtoras —e que vai precisar rever— é muito maior.

O cálculo inédito da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, obtido pelo UOL, é o primeiro passo para que a gestão Ricardo Nunes (MDB) aplique as multas previstas pela legislação a quem burlou a política habitacional da cidade.

Após uma série de denúncias apontarem fraude na destinação dos imóveis, a Justiça determinou em janeiro que a prefeitura fiscalizasse as isenções.

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Imagem: Arte/UOL

Público-alvo

Desde 2014 a Prefeitura de São Paulo oferece isenções fiscais e urbanísticas para que o mercado privado construa "moradias sociais", as chamadas HIS (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habitação de Mercado Popular).

Em contrapartida, as construtoras devem vender esses apartamentos a famílias com renda comprovada de até dez salários mínimos.

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Entretanto, a prefeitura nunca fiscalizou a venda desses apartamentos. A concessão dos incentivos foi atrelada apenas a uma autodeclaração das construtoras.

Mecanismos de controle, previstos ainda no governo Fernando Haddad (PT), foram revogados nas gestões João Doria e Bruno Covas.

Sem essa determinação, o setor pôde, portanto, escolher a quem vender "moradia social" na capital e por qual preço.

Segundo investigação do Ministério Público de São Paulo de 2022, ao menos parte desses apartamentos foi comercializada livremente, sem respeitar o público-alvo determinado em lei.

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Imagem: Arte/UOL

Calcular a renúncia fiscal do programa é importante, mas não basta, diz o pesquisador Rodger Campos, do Núcleo de Habitação, Real Estate e Regulação do centro de estudos Insper Cidades.

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Ilustração do empreendimento One Jurupis, na zona sul de São Paulo
Ilustração do empreendimento One Jurupis, na zona sul de São Paulo Imagem: Divulgação

"Tão mais importante é avaliar o impacto da política pública. Houve redução do déficit habitacional no grupo esperado? Se a resposta é negativa, só restou a renúncia de receita, num cenário de transferência às avessas", afirma.

Alto padrão

As suspeitas recaem principalmente sobre prédios em bairros como Pinheiros, Itaim Bibi e Moema, onde o metro quadrado de um "studio" licenciado como HIS ou HMP passa de R$ 20 mil.

Nessas áreas, não apenas o valor do terreno é mais caro como também o preço da "outorga onerosa", a taxa que permite a construção de prédios mais altos na cidade.

Obter isenção dessa taxa, portanto, reduz o custo da incorporação e os ganhos do construtor, especialmente se o limite de renda não for respeitado e a unidade for negociada livremente, a preço de mercado.

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Ilustração do empreendimento Peak Vila Olímpia, na zona sul de São Paulo
Ilustração do empreendimento Peak Vila Olímpia, na zona sul de São Paulo Imagem: Divulgação

Em novembro de 2024, o UOL mostrou que uma HIS subsidiada pela prefeitura chegou a ser negociada por R$ 1,5 milhão na Vila Olímpia, um dos bairros com projetos auditados.

O caso foi citado pelo Ministério Público como exemplo de burla à legislação vigente.

Além dos 57 projetos já avaliados, outros 150 passam pela mesma análise, segundo a secretaria.

Em nota, a prefeitura disse que "reforçou ter adotado medidas rigorosas para garantir o controle e a correta destinação de unidades de habitação social".

Até R$ 23 milhões de desconto

O maior desconto individual concedido entre os 57 projetos analisados até agora foi de R$ 23 milhões, relativo ao Living Full Vila Nova Conceição, do Grupo Cyrela.

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Em construção na avenida Santo Amaro, a planta prevê duas torres de 26 andares com 576 "studios" de 24 m² classificados como HIS 2 —que devem ser comercializadas a famílias com renda mensal entre três e seis salários mínimos.

Ilustração do bar do beach tennis previsto no Living Full Vila Nova Conceição, com HIS de 24m²
Ilustração do bar do beach tennis previsto no Living Full Vila Nova Conceição, com HIS de 24m² Imagem: Reprodução

A construtora também é listada na auditoria com o Living Full Faria Lima, na zona oeste, que teve desconto de R$ 13,6 milhões de outorga onerosa. Ali, são mais 450 apartamentos do tipo HIS 2.

Procurada via assessoria de imprensa, a Cyrela não respondeu à reportagem.

A incorporadora One é a mais citada em número de empreendimentos.

A empresa, que se "especializou em fazer HIS e HMP em bairros nobres da cidade", economizou R$ 34,2 milhões em oito projetos, segundo o cálculo obtido pela reportagem.

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A One pagou outorga onerosa em apenas um dos projetos analisados, o One Jurupis, em Moema, na zona sul. O pagamento foi de R$ 968 mil. Sem o desconto, o valor seria de R$ 1,8 milhão.

Localizado na região do Shopping Ibirapuera e ainda em obras, um "studio" de 55 m² ali chegou a ser vendido por R$ 900 mil, segundo informação obtida no atendimento por WhatsApp de consulta imobiliária da própria One —valor 57% superior ao teto de preço definido pela prefeitura para HMPs (destinadas a famílias de seis a dez salários mínimos).

Embora a unidade de 55 m² conste no site oficial da incorporadora, a One diz que não tem unidade de 55 m² à venda, nem fez vendas pelo valor citado.

55 m2, segundo site oficial do One Jurupis, da incorporadora One
55 m2, segundo site oficial do One Jurupis, da incorporadora One Imagem: Reprodução

"A empresa reforça ainda que toda a documentação comprobatória já foi encaminhada à Prefeitura de São Paulo e segue à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais", afirmou, via assessoria de imprensa.

De acordo com um decreto de 29 de maio, imóveis nesta categoria não podem ser vendidos por mais de R$ 518 mil.

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A intenção é fazer valer a política de subsídio e assegurar que o público-alvo seja de fato atendido.

Ilustração do empreendimento One JK, que terá unidades HIS no Itaim Bibi
Ilustração do empreendimento One JK, que terá unidades HIS no Itaim Bibi Imagem: Reprodução

Segundo Valter Caldana, coordenador do Laboratório de Projetos e Políticas Públicas Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, as ações da prefeitura vêm em boa hora.

"Passou da hora de São Paulo entender que não adianta mais fazer prédio sem fazer cidade", diz.

Airbnb proibido

O decreto de maio veta a locação de curta temporada em "studios" licenciados como HIS e HMP. A medida tem como alvo imóveis construídos com subsídio público em áreas nobres que viraram Airbnb.

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Segundo o secretário municipal de Habitação, Sidney Cruz, esse tipo de utilização é a prova de que a política foi desvirtuada, pois não atende a necessidade de habitação das famílias de baixa renda.

A prefeitura também apertou o controle sobre o aluguel mensal dos imóveis sociais. A partir de agora, o valor cobrado não poderá ultrapassar 30% da renda de interessados na locação.

O UOL também procurou as empresas Benx, Brio, Passarelli e o empreendimento Do It Residences, que são citados na arte que ilustra a reportagem. A Passarelli disse que não se manifestaria.

Benx e Do It não responderam à reportagem.

A Brio afirmou que os projetos de HIS e HPM foram aprovados pela prefeitura. "Em relação as vendas/destinação das unidades habitacionais, é feito uma verificação prévia da renda familiar do interessado, com documentos e informações, em conformidade com os requisitos exigidos pela legislação que disciplina esse tipo de habitação", acrescentou, em nota.

Após a publicação da reportagem, a Cyrela encaminhou nota à reportagem, em que diz que "todos os seus empreendimentos são desenvolvidos e comercializados em conformidade com a legislação vigente e com as diretrizes estabelecidas pela Prefeitura de São Paulo".

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