'Não é falta de Deus': o que o Marajó diz sobre as fake news no arquipélago
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*Esta série de reportagens foi feita com apoio do Pulitzer Center Rainforest Reporting Grant
Lideranças do Marajó (PA) relatam o impacto das fake news sobre exploração sexual no arquipélago, narrativa impulsionada pela ex-ministra Damares Alves (Republicanos-DF), hoje senadora e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado.
"É um risco na nossa pele e uma ferida na nossa alma", diz um dirigente da Assembleia de Deus, igreja ideologicamente alinhada à senadora.
"Não é um problema espiritual, é social", afirma um padre da Pastoral da Terra. "Não é falta de Deus."
Ministra de Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro (PL), Damares citou um suposto esquema de exploração sexual de meninas para justificar ações no arquipélago do Marajó, no Pará.
"Há cerca de 20 anos me deparei com as primeiras denúncias de tráfico e exploração de crianças no arquipélago do Marajó, que se tornaram recorrentes desde então", escreveu a então ministra no documento oficial do programa Abrace o Marajó, lançado em 2020 e revogado em 2023.
Damares afirmou, sem provas, que no Marajó as meninas seriam sexualmente exploradas porque não usam calcinhas, seriam sequestradas e teriam os dentes arrancados "para elas não morderem na hora do sexo oral".
O MPF (Ministério Público Federal) está processando a atual senadora por fake news, pedindo uma indenização de R$ 5 milhões.
Procurada pela reportagem, Damares afirmou que "quem critica o Abrace o Marajó o faz de maneira absolutamente ideológica, ou tem interesses políticos próprios".
"Essas pessoas são negacionistas da situação, mas não vão calar a senadora ou outros ativistas que trabalham pela proteção de crianças e adolescentes do arquipélago", acrescentou.
'Evangelho de Fariseus'
Desde 2019, Damares e outras personalidades da extrema direita denunciam um suposto esquema de exploração sexual de crianças no Marajó.
O assunto volta de tempos em tempos —no ano passado, viralizou a música "Evangelho de Fariseus", da artista gospel paraense Aymeê Rocha, o que fez influenciadores gigantes como Angélica, Juliette e Rafaella Kalimann se manifestarem cobrando as autoridades.
No fim de 2024, uma fake news dizia que o rapper americano Sean Combs, também conhecido como P. Diddy, acusado de tráfico sexual, teria revelado que a funkeira Anitta teria participado de um esquema envolvendo crianças do Marajó.
Marajoaras dizem que o discurso não corresponde à realidade, é estigmatizante e trata a população local como "monstros" e "selvagens" que precisam ser salvos por Deus.
Não se vê nos autos o que falam da nossa região. Não tô dizendo que não tem [abuso sexual], como tem em São Paulo, tem no Rio. Mas não é como eles falam. Então só tem monstro aqui? É um risco na nossa pele e uma ferida na nossa alma. A ministra foi um tanto infeliz. As ações que ela tinha podiam até ter uma boa intenção. [Mas] Nós fomos discriminados. Essa é a palavra. Joel Lobato presbítero da Assembleia de Deus, em Bagre
No Marajó o problema não é espiritual, é social. Há uma exploração humana, gente que ganha dinheiro em cima da miséria dos outros. Esse é o problema real. Então, não tem nada de espiritual, é do capital. Então, a gente cobrir isso, dizendo que é falta de Deus, é não ir à raiz do problema.
Dom Ionilton bispo da prelazia do Marajó, em Belém
A narrativa culpabiliza o povo marajoara, como se fosse o causador da questão do abuso e da exploração sexual de crianças. É uma narrativa que estigmatiza. O intuito, na verdade, é mostrar: 'Esse povo é selvagem. Eles têm um problema seríssimo e a solução que nós vamos levar para eles é, enfim, Deus'. Claudiane Ladislau professora do IFPA (Instituto Federal do Pará) e integrante do coletivo de ativistas Marielles do Marajó, em Breves
Autoridades ouvidas pela reportagem também criticam as narrativas que viralizaram na internet: a violência contra mulheres e meninas ocorre, mas não tem a ver com uma rede de tráfico sexual.
O que mais acontece, dizem os promotores Luiz Gustavo Luz Quadros, de Belém, e Harrison Bezerra, de Breves, é o abuso sexual no núcleo intrafamiliar. Eles citam ações do Ministério Público junto a outros órgãos, como os conselhos tutelares.
"O fortalecimento do Estado democrático, a divulgação dos direitos humanos e a conscientização sobre a inviolabilidade do corpo de crianças e adolescentes fazem com que a fiscalização hoje seja muito maior do que era antigamente", diz Bezerra.
O alto índice de denúncias, de acordo com o promotor, indica uma conscientização maior nos últimos tempos.
Entre 2020 e 2023, o Pará registrou um aumento de 80,35% de denúncias de estupro de vulnerável. No Marajó, o aumento foi de 143,40%.
O abuso sexual não é exclusivo da Ilha do Marajó. Existe exploração sexual no nordeste, no Rio, em São Paulo. O Marajó é a única ilha flúvio-marítima do Brasil, o que traz uma ideia de algo bem exótico, algo assim bem distante, o que acaba se destacando. E, infelizmente, segmentos sociais acabaram se apropriando dessa pauta com propósito de autopromoção. Luiz Gustavo Luz Quadros promotor de Belém

O que diz a narrativa
As fake news têm um lastro de verdade.
Irmã Henriqueta, que atua há mais de 20 anos no Marajó, pondera que não se pode negar que a situação é ruim.
"Há muito abuso sexual, sim. A gente tem de tratar isso com muita verdade. Mas não podemos estigmatizar a situação, inventar imaginários que não acontecem", diz, referindo-se às fake news sobre o arquipélago.
Irmã Henriqueta e dom Luis Azcona (1940-2024), bispo emérito do Marajó, foram os primeiros a denunciar a exploração sexual de crianças e adolescentes no arquipélago, por volta de 2007.
Depois das denúncias, foram instaladas duas CPIs, uma na Assembleia Legislativa, em Belém, e uma no Congresso, em Brasília.
Eram os tempos das "meninas balseiras", como eram chamadas as garotas que navegavam nas balsas para tentar trocar açaí por diesel junto a tripulantes de navios e acabavam alvo de violência sexual.
Hoje, a expressão é desaconselhada, por culpabilizar as crianças por uma situação em que elas são, na verdade, vítimas.
Mas as fake news seguem ancoradas nesse histórico.
Segundo promotores, o combate a tais crimes se intensificou, e hoje prevalecem casos de abuso dentro das famílias.
Isso traz outras complicações devido à geografia singular do Marajó, diz Bezerra.
De acordo com o promotor, o Estado precisa se esforçar para chegar, fisicamente, às populações vulneráveis.
Há comunidades ribeirinhas e rurais que ficam a 12 horas de barco do centro da cidade, exemplifica. "Os rios são as nossas ruas."
Uma das ações do Ministério Público é a 'Navegue e Não Naufrague', em que promotores, psicólogos e assistentes sociais vão a escolas para fazer palestras para crianças e adolescentes. Nós ensinamos sobre o fluxo de denúncia. Harrison Bezerra promotor de Breves

O que está por trás da narrativa
Luce Lobato, uma das assistentes sociais de Breves, conta que o fluxo de denúncias de abuso sexual de menores é complicado devido a dificuldades logísticas no Marajó.
Ela diz que, junto a outras lideranças, buscou identificar o que era fake news entre as narrativas que viralizaram sobre o arquipélago.
"Teve a história da ministra de que as crianças não usavam calcinha [e por isso seriam vítimas de abuso sexual]. Tudo isso. É uma fala idiota? É uma fala idiota, mas o que que ela quer? Porque ela não fala isso do nada, ela tem uma intenção", afirma.
Marajoaras ouvidos pela reportagem relatam que o Abrace o Marajó e os vídeos virais sobre o arquipélago não tiveram impacto nas políticas públicas.
Ao contrário, serviram para impulsionar campanhas pedindo Pix para igrejas e institutos particulares em prol do Marajó.
O Marajó se tornou um "destino" de diversas missões evangélicas. Atraiu influenciadores como Guilherme Batista, que lidera viagens de voluntários a um custo de R$ 1.600 para entregar cestas básicas e brinquedos.
A incursão de 2025 foi, segundo o IDE (Instituto de Desenvolvimento Evangelístico), "a maior ação evangelística missionária já realizada na Ilha do Marajó".
O instituto tem uma campanha chamada "Adote um ribeirinho", cujas madrinhas são Aymeê Rocha e Michelle Bolsonaro.
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