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Cemitérios privatizados retomam túmulos e revendem por até R$ 150 mil

Foi por acaso que Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro, 73, descobriu que o túmulo que guardava os restos mortais de seus avós havia sido retomado pela Consolare. A concessionária administra o cemitério da Consolação, o mais antigo de São Paulo.

"Achei até que tinha me perdido, mas aquele era o jazigo da minha família mesmo. Ele estava em reforma pela administração sem eu saber de nada. Destruíram tudo alegando abandono", conta o aposentado.

O caso não é isolado.

Segundo a SP Regula, agência que fiscaliza o serviço prestado pelas concessionárias que operam desde março de 2023 os 22 cemitérios públicos municipais, 566 jazigos já foram retomados.

Isso acontece porque, pelas novas regras, famílias que mantêm túmulos nesses cemitérios podem perder o direito de usá-los se deixarem de pagar uma taxa anual —que não existia antes e será cobrada— ou se não realizarem a conservação exigida.

O problema é que essas obrigações de manutenção não estão claras nos contratos de concessão estabelecidos com a prefeitura. Não se determinou, por exemplo, o que é "abandono por falta de limpeza".

Túmulos considerados abandonados —alguns ocupados pelas mesmas famílias há mais de 150 anos— estão sendo revendidos por até R$ 150 mil no cemitério do Araçá, conforme a localização e tipo de benfeitoria, independentemente da tabela oficial de repasse.

Levantamento inédito feito pelo UOL indica que os direitos sobre mais de 17,5 mil sepulturas de uso particular, pelo menos, estão em risco. Isso representa 14% do total. São 3.000 nessa condição, apenas no cemitério do Araçá.

A comunicação também abre brecha para falhas: o alerta sobre futuras "desapropriações" é feito geralmente por meio de adesivos grudados nos túmulos ou por notas no Diário Oficial do Município, que poucos leem.

O advogado Adib Kassouf Sad, professor de direito administrativo, destaca que os usuários devem ter ciência do risco que correm.

"Isso não se faz apenas por Diário Oficial. As pessoas devem ser contatadas pelas concessionárias, até para que possam apresentar suas defesas", explica.

O aposentado Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro, 73, em frente ao túmulo da família que foi retomado e reformado pela concessionária sem que ele soubesse
O aposentado Luiz Antônio Muniz de Souza e Castro, 73, em frente ao túmulo da família que foi retomado e reformado pela concessionária sem que ele soubesse Imagem: Micaela Wernicke/UOL

Luiz diz não ter trocado de telefone nem de email desde 2016, ano do último recadastramento. Mas a Consolare afirmou, por meio de nota, que "não identificou no sistema informações que permitissem localizar os sucessores diretos do responsável".

A concessionária ressaltou que fez publicações em jornais de grande circulação, em três datas distintas, e colou aviso no próprio túmulo.

"Esgotado o tempo de resposta e cumpridas todas as etapas exigidas no processo, o terreno foi retomado", escreveu.

O debate sobre a gestão privada dos cemitérios da capital foi parar no STF. Em 24 de novembro, o ministro Flávio Dino determinou que as concessionárias voltassem a praticar os preços válidos antes da privatização.

A prefeitura recorreu e uma audiência de conciliação foi realizada na quinta (5), em Brasília, com a presença de representantes também da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município.

Não houve acordo e uma nova reunião foi agendada para o dia 17 na sede da SP Regula, em São Paulo.

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Imagem: Arte/UOL

Taxas para manter o terreno

O valor estipulado para a anuidade depende do tamanho do terreno e da localização do cemitério.

Os mais afastados do centro, como o de Parelheiros, poderão cobrar taxas simbólicas, de R$ 4,66 pelo m². Já na Vila Mariana e na Consolação, o preço partirá de R$ 209,05.

Como as construções têm em média 2,30 m x 2,30 m, o preço pode passar dos R$ 1.000 por ano.

"Fomos chamados para atualizar a cessão do jazigo, que fica no cemitério Quarta Parada [na zona leste], e pagamos taxa de recadastramento. Nosso boleto foi de R$ 769,30. Mas isso paga só a manutenção das áreas comuns e não da campa [sepultura], o que achamos absurdo", diz Heloisa Maria Gomes, cuja família mantém um túmulo no local desde a década de 1960.

A cobrança foi suspensa em seguida pela prefeitura. Ela será retomada quando a concessionária responsável, que também é a Consolare, comprovar ter realizado todas as melhorias previstas em contrato.

O mesmo vale para os demais 21 cemitérios municipais privatizados.

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Sobre os casos de abandono, a prefeitura ainda não estipulou quais os parâmetros dessas avaliações.

O texto do contrato diz apenas que "serão consideradas em abandono ou ruína as sepulturas nas quais a concessionária julgue necessária a realização de serviços de limpeza interna ou de obras de conservação e reparação".

Os critérios são, portanto, subjetivos.

"Levamos em consideração questões de insalubridade que demandam a realização de serviços de limpeza interna, como surgimento de fungos, mofo e outras pragas, além de infiltrações ou acúmulo de resíduos", afirmou a Velar, por meio de nota.

Para seguir com a "desapropriação", a concessionária precisa abrir um prazo legal de seis meses antes de dar como extinta a cessão.

Se, após esse período, o responsável não solucionar as irregularidades listadas, o jazigo é retomado e os restos mortais são exumados de forma sumária nos 30 dias seguintes.

A reportagem apurou também que parte dos usuários têm sido contatados para "devolver" seus túmulos e assim não assumir os novos custos.

A Velar, por exemplo, informou que quatro famílias atendidas por ela já fizeram essa opção. Neste caso, paga-se 30% pelo valor do terreno.

Túmulo com indicação de abandono no cemitério do Araçá
Túmulo com indicação de abandono no cemitério do Araçá Imagem: Adriana Ferraz/UOL

Valor do terreno aumentou até 61%

Assim como nos demais serviços funerários, como sepultamentos, cremação e velórios, a cessão de um jazigo também ficou mais cara.

A maior alta se deu no chamado grupo 2, formado pelos cemitérios da Freguesia do Ó, Santana, Santo Amaro, Penha, Campo Grande e Tremembé.

Nesses locais, o metro quadrado apenas do terreno passou de R$ 3.031,87 para R$ 4.886,80 —alta de 61%.

O maior preço, no entanto, está nos cemitérios mais bem localizados —como Araçá e Consolação, na região central; Vila Mariana, na zona sul; e São Paulo, na zona oeste—, onde o valor do metro quadrado aumentou 43%, chegando a R$ R$ 7.330,20.

Mas os preços oficiais nem sempre são cumpridos. A reportagem recebeu em 28 de novembro proposta de R$ 150 mil para a compra de um jazigo em granito com oito gavetas e dois ossários no cemitério do Araçá.

Pela tabela, a área de 5,30 m² deveria custar R$ 38.776,75. Já a construção, que não é tabelada, sairia por até R$ 35 mil. Ou seja: metade do preço praticado.

A Cortel SP, responsável pelo Araçá, não explicou como define os preços praticados nem os critérios utilizados para definir o que é abandono.

"Temos intensificado campanhas e contatos, via publicações em edital e notificações por carta registrada, para que os responsáveis regularizem a situação dos jazigos", afirmou a Cortel SP, por meio de nota.

No cemitério Quarta Parada, há 30 "túmulos usados" à venda pela concessionária, segundo o site da Consolare.

Os preços do terreno construído partem de R$ 65 mil e dependem da qualidade da reforma e da localização, segundo apurou a reportagem. O valor é o mesmo praticado no cemitério da Vila Mariana.

Já no cemitério da Lapa, na zona oeste, o Grupo Maya oferece opções de terreno a partir de R$ 22 mil. A compra, neste caso, é atrelada a um "pacote preventivo", que funciona como uma espécie de "plano funerário" e é pago em até 48 vezes.

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Imagem: Arte/UOL

Cessão x propriedade

Em cemitérios públicos, os terrenos não são de propriedade dos usuários —nem das concessionárias. Eles continuam sendo públicos, de propriedade da prefeitura. O que existe são cessões ou outorgas por tempo indeterminado.

Jazigo reformado no cemitério Quarta Parada, na zona leste de São Paulo
Jazigo reformado no cemitério Quarta Parada, na zona leste de São Paulo Imagem: Reprodução/Consolare

Paga-se um valor para obter o direito à ocupação de jazigos, mas essa cessão paga pode ser revogada a qualquer momento mediante o descumprimento de critérios estabelecidos e a instauração de um processo administrativo.

"As famílias têm um sentimento de posse sobre os jazigos, mas essa relação não existe", explica Carlos Ari Sundfeld, professor de direito público da FGV.

Os critérios citados para a extinção do acordo de cessão a particulares devem ser claros e objetivos, ressalta Sad.

O contrato não estabelece, por exemplo, qual é a periodicidade exigida para a limpeza. Ela deve ser semanal, mensal, anual? Sem isso não há como o usuário se programar para evitar a perda do jazigo.
Adib Kassouf Sad, professor de direito administrativo

Segundo o especialista, a gestão Nunes deveria propor aditivos nos contratos que tornassem o processo mais transparente e menos subjetivo.

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Imagem: Arte/UOL

"É preciso descrever todas as condições, ainda mais quando se lida com a história das pessoas. Os jazigos guardam bens imateriais e não podem virar um comércio paralelo."

A Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos da Capital instaurou inquérito civil para apurar possíveis excessos e violações de direitos na prestação do serviço funerário após a concessão à iniciativa privada.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • A primeira versão deste texto informava que o cemitério da Lapa ficava na zona leste. Na realidade, o bairro está na zona oeste de São Paulo. O texto foi corrigido.

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