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'Dou fé': para que servem os cartórios, mercado de mais de R$ 30 bilhões

Associados a fila, papelada e taxas, cartórios são uma obrigação da vida adulta de que se tenta fugir, e isso acontece em todo o mundo.

Na maioria dos países, registros civis —nascimento, óbito e casamento— são feitos pelo Estado, às vezes de graça, outras não.

Na Suécia, o controle é todo estatal. O sistema é digital, gratuito e centralizado na Receita, em que todos os dados do cidadão são integrados via identidade eletrônica (leia mais aqui).

O registro de imóveis é feito por uma agência estatal, com taxa fixa e acesso público: qualquer pessoa pode consultar quem é o proprietário de um bem.

Como em outras partes do mundo, há notários na Suécia para dar fé a autenticações e traduções, com cobrança de taxas (uma autenticação custa cerca de R$ 290), mas a digitalização já reduziu boa parte da burocracia.

No Brasil, registros civis, de imóveis e atos notariais passam por cartórios privados.

Nosso país também se diferencia dos demais por décadas de privilégios consolidados.

Isso permite a seguinte situação:

  • Ao menos 27% dos cartórios brasileiros são administrados por pessoas que não prestaram concurso, muitas vezes acumulando remuneração altíssima;
  • Há pressão do setor para reajustar taxas, de modo que uma porcentagem delas (ou até o total) seja destinada a penduricalhos e benesses a funcionários públicos;
  • A falta de padronização nas cobranças onera muito mais do que deveria cidadãos de alguns estados.

Enquanto tabeliães defendem que um sistema estatal seria pior, críticos apontam que o modelo é um legado patrimonialista de Portugal.

Até 1988, muitos cartórios eram ocupados por indicações políticas.

A Constituição determinou concurso, mas um terço das vagas ainda é destinado a quem já atua como cartorário.

"Retificar o gênero de uma pessoa, por exemplo, é um direito. Mas, para retificar, você precisa pagar. É uma cidadania paga", diz a tabeliã Carla Watanabe.

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Imagem: Arte/UOL
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Imagem: Arte/UOL

A diferença de preços entre os estados

Um paulistano pode gastar mais de R$ 150 mil só de cartório ao longo da vida, segundo levantamento do UOL.

Um cidadão de outro estado gastaria muito menos. Ou até mais.

A reportagem comparou taxas ("emolumentos") e encontrou distorções flagrantes de preços.

Declarar uma união estável em Santa Catarina, por exemplo, custa R$ 103. Em São Paulo, R$ 592. Em Minas, R$ 626.

Um protesto de dívida de R$ 25 mil custa R$ 69 no Ceará. No Piauí, R$ 4.018 (aumento de mais de 5.000%).

Já um testamento pode custar R$ 942 em Santa Catarina, R$ 18,4 mil no Amapá ou até R$ 210 mil em Minas Gerais.

Segundo fontes ouvidas pelo UOL, tanta discrepância obedece a uma única lógica: a do lobby.

Ele é feito por donos de cartório em assembleias legislativas. Os aumentos nas taxas são discutidos nos Tribunais de Justiça e levados aos deputados estaduais, que aprovam, de tempos em tempos, o reajuste dos valores.

O que justifica a diferença de preços

Em tese, os aumentos deveriam apenas corrigir a inflação e contemplar os custos operacionais. Mas não é isso que acontece.

Em São Paulo, cerca de 40% do valor arrecadado nos cartórios paga tributos ao estado e à prefeitura, mas também abastece fundos particulares do Ministério Público, do Judiciário e associações de notários.

"Existe lobby do Ministério Público para manter as taxas cartorárias que o abastecem. Tem lobby do Judiciário para manter taxas que vão para os fundos judiciários. Temos vários lobbies para tirar dinheiro da população", diz o deputado federal José Nelto (Podemos-GO).

O parlamentar coordenou uma comissão na Câmara, entre 2021 e 2022, que estudou uma reforma no modelo cartorial.

Entre as propostas estava "dar fé pública" a agências do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal —ou seja, permitir que elas absorvessem parte dos trabalhos dos cartórios.

"Mas o lobby não permitiu que o relatório fosse votado. Cartórios são intocáveis."

Como titulares de cartório concursados não são funcionários públicos, não estão sujeitos ao teto do funcionalismo (o equivalente ao salário de um ministro do STF, que hoje é de R$ 46 mil).

Dados da Receita de 2023 mostram que "titular de cartório" é a ocupação mais bem paga do país, com renda média mensal de R$ 156 mil.

Entre os do Distrito Federal, a média chega a R$ 580 mil.

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Imagem: Arte/UOL

Por que são diferentes?

Cartorários ouvidos pelo UOL divergem ao explicar por que serviços idênticos têm preços tão díspares, a depender do estado.

Para Alexis Cavichini, porta-voz da Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), os estados mais ricos cobram caro porque têm custos mais altos.

As distorções ocorreriam por "criatividade" dos legisladores.

Existe uma criatividade própria do legislador [...], conforme a política local, uma liberdade de cada estado em determinar o que acha que é mais ou menos importante em termos de valores
Alexis Cavichini, da Anoreg

Já Devanir Garcia, presidente da Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), diz que estados mais ricos podem cobrar menos porque têm muita procura.

Em Santa Catarina, pela pujança econômica, você registra 100 'atos de registro' de contrato. Num estado do Norte ou Nordeste, são menos de 10. Entende? Então [no Norte ou Nordeste] preciso ter um preço maior [para registros de contrato]
Devanir Garcia, da Arpen

Exemplo que o contradiz: no Rio, uma procuração que trate de bens e valores vale R$ 381. Em Rondônia, ela custa R$ 99.

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Imagem: Arte/UOL

Para que reconhecer firma?

O Brasil exige o registro de muitos documentos, o que cria uma "reserva de mercado" para os cartórios.

Mas há registros que têm sua necessidade questionada:

  • Transferência de veículos: apesar de ser registrada no Detran e na Receita, em vários estados há taxas cartoriais para reconhecer firma e comunicar a mudança;
  • Transferência de imóveis: por tramitar em dois tipos de cartório (tabelionato de notas, para registrar que o negócio foi feito, e no de registro de imóveis), o cidadão paga taxas duas vezes;
  • Reconhecimento de firma: ainda que uma lei de 2018 a dispense para órgãos públicos, é largamente requisitada no Brasil.

O novo Código Civil, que tramita no Congresso, pode dar ainda mais atribuições aos cartórios, ampliando seu campo de ação —e a arrecadação.

A ideia é resolver cada vez mais coisas nas "serventias extrajudiciais" (como são chamados os cartórios), sem envolver a Justiça.

Segundo a Anoreg, entidade do setor, a chamada "extrajudicialização" seria menos morosa e custaria menos.

Exemplo: um inventário levava cerca de dois anos no Judiciário a um custo médio de R$ 2.300. Hoje, segundo a entidade, leva um dia no cartório e custa R$ 324.

"O papel do tabelião é prevenir litígios", define a tabeliã Priscila Agapito, titular de um tabelionato de notas na zona sul de São Paulo.

Somos o contrário da burocracia. O que eu vendo? Quando passei no concurso, o Estado me deu uma coisa que se chama 'fé pública'. Significa o quê? Que tudo que eu certificar é uma verdade
Priscila Agapito, tabeliã

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