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A guerra de iFood, Rappi, 99Food e Keeta pelo mercado de delivery no Brasil

O mercado brasileiro de aplicativos de entrega de comida está em guerra nas ruas e nos tribunais.

O aplicativo iFood lidera o setor e registrou em seu último balanço receita anual de R$ 7 bilhões no país. Ele é seguido pelo Rappi, que faturou R$ 2,5 bilhões em 2024 no Brasil.

Mas duas gigantes chinesas - a 99Food e a Keeta - desembarcaram dispostas a roubar uma fatia deste mercado, obrigando os concorrentes a baixarem taxas e reverem estratégias.Em disputa está um setor que movimentou R$ 147 bilhões globalmente no ano passado e deve crescer 7% ao ano até 2028, segundo estimativas da consultoria Euromonitor International.

A 99Food, de propriedade da Didi Global (receita global de US$ 28 bilhões em 2024), começou a operar em São Paulo em agosto distribuindo cupons de desconto aos usuários e com promessas de milhões de reais pela exclusividade de estabelecimentos.

O app Keeta, da também chinesa Meituan (receita global de US$ 46 bilhões em 2024) tem previsão de começar a operar em outubro, com promessa de estabilidade no longo prazo para aqueles que toparem ser parceiros.

A briga pelo mercado nas ruas já chegou aos tribunais, onde as empresas se acusam de práticas anticompetitivas e de deslealdade.

Mercado concentrado

O IFood divulga ter hoje 55 milhões de usuários cadastrados, e o Rappi, 20 milhões.

Não é possível saber exatamente quantos deles, de fato, usam os apps. Mas pesquisa da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) e do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) com 6.300 consumidores apontou haver uma preferência de 82% dos usuários pelo iFood, contra 12% do Rappi.

[A abertura de concorrência] vai ser boa para o consumidor, que hoje lida com o quase monopólio do iFood e acaba pagando de 20% a 30% mais caro no app que no restaurante" Paulo Solmucci presidente da Abrasel

A entidade estima que 70 milhões de consumidores tenham algum aplicativo de entregas instalado em seus celulares.

Segundo Solmucci, os preços já têm baixado em algumas situações.

Mas muito disso se deve às promoções agressivas com oferta de cupom de desconto pelo 99Food aos consumidores (mais sobre isso abaixo).

Comparação de preços

Na última semana de agosto, a reportagem simulou o mesmo pedido no iFood e no 99Food.

Um pedido de R$ 33,90 saiu por R$ 38,88 no iFood, com R$ 4,95 de frete; e saiu por R$ 11,95 no 99Food, por causa do cupom de desconto e do frete grátis.

A estratégia do concorrente obrigou o iFood a rever também sua política de taxas em setembro: uma encomenda para entrega em área próxima à casa do usuário, que tinha frete padrão de R$ 9,90, agora sai por até R$ 0,99, a depender do horário.

Para os restaurantes, diz o presidente da Abrasel, o maior efeito vai ser a queda das taxas cobradas. O executivo acredita que, quando as novas empresas estiverem estabelecidas no Brasil, as taxas devem cair uns 50%, em média.

"Se hoje o iFood cobra 25% dos estabelecimentos, devemos ver taxas de 10%, 12%, 15%. Vamos ver restaurantes médios pagando as taxas cobradas dos grandes", estima.

Veja que os apps estão fazendo:

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Imagem: Arte/UOL

99 Food

O investimento do 99Food para os próximos anos será "no ecossistema completo do 99", mas a maioria será destinada ao lançamento do app de entrega de comida.

O plano é fechar 2025 com entregas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, e chegar a cem municípios até o final de 2026. Já houve também uma demonstração em Goiânia, onde o 99Food disse ter feito um milhão de entregas em seis semanas.

Metade do valor investido será destinada à operação em São Paulo e Região Metropolitana.

Para enfrentar o iFood, a empresa anunciou que os restaurantes que se cadastraram até junho ficarão isentos de taxas por até três anos - na verdade, o restaurante ainda terá de pagar a taxa de entrega da plataforma e a taxa de processamento de pagamento.

O Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) proibiu o 99Food de mencionar "0% de taxas" e de dizer que estabelecimentos poderiam ficar com "100% dos seus ganhos" em seus anúncios.

Também foram anunciados descontos no primeiro pedido, entrega grátis nos dois primeiros pedidos e cinco cupons de R$ 99 de desconto para novos usuários.

Haverá ainda um mínimo para entregadores que baterem metas:

R$ 400 por dia para quem fizer 15 entregas por dia no primeiro mês em São Paulo;

R$ 250 por dia para quem fizer 20 entregas por dia, sendo pelo menos cinco de comida, por tempo indeterminado.

Para garantir a exclusividade de entrega de restaurantes consagrados da cidade, a empresa tem oferecido grandes boladas aos empreendimentos. Os valores não são divulgados, mas, em processo judicial, a Keeta afirma que cem restaurantes já foram procurados pela 99Food com uma oferta do tipo, e que os valores discutidos "ultrapassam R$ 900 milhões".

A sustentabilidade do método vem sendo contestada pelos concorrentes - eles acreditam que a perda de entregas para os restaurantes, no médio e no longo prazo, faz com que a venda de exclusividade não valha à pena.

A empresa não quis disponibilizar um porta-voz para dar entrevista, mas respondeu a perguntas por email. Na mensagem, disse ter mais de 1,5 milhão de entregadores cadastrados e atuar em 3.300 cidades com seu aplicativo de transporte, o 99.

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Imagem: Arte UOL

Keeta

O Keeta chega ao Brasil com a fama de ser a maior empresa de entregas do mundo, com 770 milhões de clientes na Ásia.

A empresa não quis dar entrevista, mas respondeu perguntas por email.

O investimento inicial será alocado na contratação de mil pessoas até o final deste ano; estabelecimento da sede em São Paulo; e construção de um "centro de suporte ao cliente" em cidade ainda não definida no Nordeste, com o qual a companhia espera gerar entre cinco e seis mil empregos diretos e indiretos.

O app afirma ainda que já tem 120 mil entregadores cadastrados e pretende chegar a 15 regiões metropolitanas brasileiras até a metade de 2026.

Não houve anúncio de promoções ou cupons de desconto. A empresa informou que ainda não definiu como será o aplicativo, e por isso ainda não pode divulgar o que vai oferecer aos usuários, restaurantes e entregadores.

Cita exemplos de sua atuação:

Na China, são 13,8 milhões de restaurantes cadastrados e investimento em programas de treinamento. "Temos mais de 2.300 instrutores e já apoiamos 13,7 milhões de comerciantes a se tornarem restaurantes digitais mais inteligentes", afirma a empresa.

Também foi criado no país um sistema que permite a coleta de múltiplos pedidos na mesma rota, para concentrá-los nos mesmos entregadores. O sistema gerencia sete milhões de entregadores e processa até 2,9 bilhões de rotas por hora nos horários de pico.

Em Hong Kong, o pedido mínimo é de US$ 30, valor considerado alto. Por isso, as pessoas estavam fazendo pedidos grandes para estocar comida. A solução encontrada foi criar um programa de refeições baratas e concentrar pedidos por bairros, barateando o frete.

Já na Arábia Saudita, os pedidos eram muito grandes e não cabiam nas caixas das motos. Isso acarretava a divisão dos pedidos entre dois ou três entregadores diferentes, e aí os pratos chegavam separados em horários diferentes ao mesmo local. A Keeta, então, criou um programa que identifica pedidos grandes e os envia de carro.

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Imagem: Arte UOL

iFood

No início de agosto, o iFood anunciou que vai investir R$ 17 bilhões até março de 2026:

R$ 6 bilhões serão destinados ao que o app chama de investimentos no crescimento de restaurantes: novas tecnologias, promoções e ações de marketing;

R$ 1,8 bilhão para concessão de crédito a restaurantes por meio da plataforma financeira própria do app, a iFood Pago. São empréstimos a "taxas competitivas" com financiamento em até 18 meses sem necessidade de garantia;

Uma parte não especificada será destinada à contratação de 1.100 pessoas, a maioria na área de tecnologia, para chegar a 8.600 funcionários;

Outra parte não especificada será gasta em tecnologia, com o desenvolvimento, a contratação e a compra de novas soluções, como inteligência artificial e armazenamento em nuvem;

A empresa quer atrair consumidores que ainda não costumam pedir comida em casa, a maioria das classes C e D, por meio do programa Hits iFood, de venda de pratos baratos com frete mais baixo.

Em entrevista ao UOL, o diretor de comunicação do iFood, Rafael Corrêa, disse que a empresa investiu R$ 10 bilhões na operação brasileira em 2023 e R$ 13 bilhões, em 2024.

O app tem clientes espalhados em 1.500 cidades no Brasil, 450 mil entregadores e 400 mil estabelecimentos cadastrados em sua plataforma.

"Quando fazemos investimentos, quando desenvolvemos tecnologia, ajudamos a roda a girar de um jeito diferente", afirma.

Corrêa cita o exemplo do Hits iFood: o programa ficou 13 meses em fase de testes em Salvador e a empresa registrou crescimento de 40% nos pedidos na cidade no período.

Rappi_arte Prime
Rappi_arte Prime Imagem: Arte UOL

Rappi

Em maio, o Rappi anunciou que zerou todas as taxas cobradas dos restaurantes por três anos - ainda continua a chamada "taxa de adquirência" de 3,5% cobrada pelas maquininhas de cartão.

A empresa anunciou ainda investimento de R$ 1,4 bilhão na operação brasileira em três anos, dos quais 40% serão destinados a ampliar a rede de restaurantes cadastrados.

O aplicativo espera estar presente nos 300 maiores municípios do Brasil até 2028.

Quanto os deliveries vão investir no Brasil nos próximos anos:

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Imagem: Arte/UOL

Batalha jurídica

Nem todas as disputas se encerram na briga por oferta de benefícios aos clientes e restaurantes.

O iFood enfrenta acusações de práticas anticoncorrenciais já há alguns anos.

Em 2020, foi acusado pelo Rappi, no Cade, de assinar acordos de exclusividade com restaurantes, em abuso de sua posição dominante no mercado.

Em fevereiro de 2023, o app assinou um acordo com o Cade e se comprometeu a não assinar contratos de exclusividade com redes que tenham mais de 30 unidades.

Ao UOL, Rafael Corrêa, do iFood, disse que o acordo foi assinado e a empresa continuou crescendo - saiu de 70 milhões de entregas por mês em 2023 para 120 milhões de entregas mensais em 2025 -, o que seria uma demonstração de que os acordos não eram a causa do bom desempenho do app.

A operação da empresa também conta com vantagens tributárias, na comparação com seus concorrentes.

Em 2023, a Justiça Federal em São Paulo mandou a Receita incluir o app no Perse, programa criado pelo governo federal para zerar o IRPJ (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica) e a CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido) de empresas que tiveram suas atividades afetadas pela pandemia.

Em 2019, o TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3a Região) autorizou o iFood a retirar o ISS da base de cálculo do PIS e da Cofins, reduzindo o valor dos tributos devidos pela empresa. O caso depende de análise do STF.

A empresa divulgou no ano passado que conseguiu deduzir US$ 197 milhões de sua carga tributária no Brasil em 2023.

Também há disputa com o 99Food. No final de junho, o iFood notificou o concorrente para que encerre a prática de "aliciar e contratar" seus funcionários, já que eles são proibidos por contrato de trabalhar em concorrentes diretos.

O iFood divulgou ainda que já conseguiu liminares na Justiça do Trabalho determinando à 99Food que demita os funcionários que trabalhavam no iFood. Os processos correm em segredo de Justiça.

Em nota, o 99Food disse que tem oferecido "perspectiva de crescimento" aos profissionais do mercado, e por isso tem sido acusado pelo iFood de deslealdade.

Já Keeta e 99Food trocam acusações em processos judiciais que tramitam em São Paulo.

A Keeta diz, na Justiça e no Cade, que o 99Food vem assinando contratos com restaurantes com "cláusulas de banimento" que proíbem os estabelecimentos de trabalhar com outros aplicativos, como Keeta e Daki. Alguns exemplos de contratos foram anexados ao pedido feito à Justiça, mas ainda não houve decisão.

Em 11 de agosto, a Justiça paulista proibiu o 99Food de comprar links patrocinados com o termo "Keeta" em mecanismos de busca - o app havia feito isso na plataforma do Google, a Google Ads.

O 99Food não quis comentar as ações judiciais.

A empresa também enfrenta críticas públicas de alguns restaurantes que já trabalham com seu aplicativo.

Restaurantes de Goiânia, de São Paulo e do interior paulista reclamam que o 99Food isenta o consumidor de taxas de entrega, mas as cobra dos estabelecimentos, encarecendo a operação.

Outros suspeitam que o frete, tornado isento para clientes, seria cobrado em dobro dos restaurantes.

Na plataforma de reclamações de consumidores Reclame Aqui, o 99Food informa que não há duplicidade: uma das cobranças é a "taxa de entrega ao cliente" e a outra, a "taxa de entrega do estabelecimento (custos logísticos)".

A cobrança de ambas, diz a empresa, está prevista em contrato e os custos logísticos serão divulgados dentro do app para consulta.

Ao UOL, a empresa disse que "todas as condições comerciais, incluindo as taxas aplicáveis, são dispostas de forma explícita no contrato de serviço". A 99Food diz que as condições foram "acordadas com os restaurantes" com o objetivo de "investir na aquisição e fidelização de novos clientes".

Detalhou que cobra dos restaurantes as seguintes taxas:

"Taxa de pagamento online" de 3,2% sobre os pedidos pagos em sua plataforma;

Custo de transporte do pedido para os restaurantes que usarem entregadores do 99Food, em vez de entregadores próprios ou de outros serviços;

Frete grátis para o consumidor é "custeado pela loja".

O 99Food acusa a Keeta de copiar sua identidade visual. No pedido enviado à Justiça, o app disse que a concorrente "vem copiando todo o [seu] conceito publicitário e a apresentação visual com o nítido intuito de gerar falsa associação entre os serviços".

Ao UOL, a Keeta disse que as cores preto e amarelo e a identidade visual em discussão estão associadas às suas marcas há 13 anos. E afirma que o Zé Delivery, app de entregas, também usa amarelo e preto desde 2016 "e nunca foi alvo de reclamação da 99Food".

Semanas depois de ajuizar a ação contra a Keeta, o 99Food tentou desistir da ação, mas o juiz do caso indeferiu o pedido e manteve o processo aberto.

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