
Leis recentes em Minas Gerais abriram brechas para benesses a desembargadores, "penduricalhos" a promotores e supersalários a tabeliães.
Entre as diretrizes estão:
- Uma reestruturação dos cartórios em 2022 permitiu saltos de arrecadação para titulares de cartórios;
- Um reajuste, no fim de 2024, que inflou taxas em valores até R$ 210 mil para testamentos e para registros de imóveis (a maior taxa do Brasil);
- Uma nova taxa para registro para transferência de veículos, criada em 2024, cuja arrecadação beneficia o Colégio Notarial do Brasil, entidade que representa os tabeliães de notas em Minas Gerais.
Para mais de 15 entrevistados ouvidos pelo UOL, essas mudanças são resultado direto do lobby dos donos de cartórios mineiros.
O cidadão comum é quem sente esse impacto.
Em Minas, um dos líderes do lobby é o deputado estadual Roberto Andrade (PRD), que também é titular de um registro de imóveis em Viçosa e conselheiro da Associação dos Notários e Registradores do Estado de Minas Gerais, principal frente de articulação política do setor.
Andrade foi relator de projetos de lei que reajustaram taxas de cartório cujo texto continha "jabutis" —emendas que não estavam na proposta original—, beneficiando promotores, políticos e entidades.
Outro PL, que criou um fundo público em benefício de uma associação de donos de cartório, teve relatoria do deputado estadual Zé Guilherme (PP).
A entidade tem entre seus dirigentes o cartorário Eduardo Calais, que é sócio de Marcelo Aro (filho de Zé Guilherme). Aro é secretário de Governo de Minas Gerais.
O UOL ouviu advogados, juízes, promotores, lobistas e tabeliães para tentar entender esse ecossistema, construído ao longo de décadas.

O que os cartórios ganharam
Donos de cartórios mineiros se beneficiaram na reestruturação de 2022, que permitiu que "aglutinassem" cartórios.
Isso fez o cartorário Gilson Soares Lemes Junior assumir outro registro de notas. Na junção, sua arrecadação dobrou.
Seu pai, Gilson Soares Lemes, era presidente do TJ-MG quando a reestruturação foi discutida —o projeto de lei de autoria do TJ-MG é de 2021, foi aprovado como lei complementar em junho de 2022 e publicado como resolução pelo TJ-MG em setembro de 2022.
Procurado, o TJ-MG afirmou que o desembargador Gilson Soares Lemes deixou a presidência antes da resolução. "Portanto, não existe relação da normatização da matéria", disse, em nota (leia a íntegra).
O setor ganhou também com alterações legislativas em 2025:
- Em janeiro, a consulta de um documento que antes era gratuita passou a ser cobrada;
- Em abril, um aumento nas taxas de certos documentos, como registro de imóvel, escritura e testamento;
- Em julho, um ajuste viabilizou novo repasse para "aprimoramento de classe".
Segundo o advogado Kênio de Souza Pereira, consultor da presidência da OAB-MG, o aumento "absurdo" de abril beneficiou donos de cartórios e fundos especiais de outros órgãos, como o do MP-MG.
"Fica evidente a força do lobby dos cartórios e fundos especiais de outros órgãos, que obtêm rendimentos mediante o aumento das despesas das escrituras e registros da casa própria. Em respeito ao interesse social, deveria ocorrer o contrário, para facilitar essa aquisição", afirma.
Após pressões do mercado imobiliário, o PL que permitiu reajuste proporcional teve suas taxas reduzidas.
O teto, que na primeira proposta alcançava R$ 942 mil, caiu para R$ 210 mil —o ajuste foi sancionado por Zema.
O que os promotores ganharam
Um "jabuti" determinou que 40% das taxas extras abasteçam fundos de "aprimoramento das atividades" do MP, da DP (Defensoria Pública) e da AGE (Advocacia-Geral do Estado).
Promotores ficam com quase metade dos repasses para o recém-criado FDMP (Fundo de Desenvolvimento do Ministério Público).
Em ofício de 2024, o procurador-geral Paulo de Tarso se referiu aos ganhos como "conquistas institucionais históricas", cujas "bem sucedidas negociações" foram possibilitadas pelo seu antecessor, Jarbas Soares Júnior —aliado do secretário de Estado, Marcelo Aro.
Nos bastidores, promotores contam que o MP travou uma queda de braço com o TJ, que não queria dividir os repasses que recebe dos cartórios. O "jabuti" resolveu o impasse.
Em nota (leia a íntegra), o MP-MG diz que a regulamentação dos recursos "segue modelo compatível com o adotado por outros estados brasileiros".
"Os percentuais são fixados sobre os emolumentos dos serviços notariais e registrais, conforme prática já existente para outros fundos públicos estaduais. A finalidade é fortalecer a atuação institucional, com foco em inovação tecnológica, modernização administrativa e aprimoramento dos serviços prestados à sociedade mineira —especialmente na proteção de direitos fundamentais e no enfrentamento à criminalidade", afirma.

O que os desembargadores ganharam
O Fundo Especial do Poder Judiciário já recebe repasses de taxas cobradas nos cartórios, mas foi turbinado com uma lei no fim de 2023, proposta pelo próprio TJ.
O projeto de lei, com relatoria do deputado Zé Guilherme, definiu que a "arrecadação extrateto" dos cartórios deve ser destinada ao fundo do TJ.
Essa arrecadação é particularmente alta em Minas, estado que tem o maior número de cartórios chefiados por interinos (não concursados).
Ao contrário dos titulares (concursados), cuja renda depende apenas do faturamento do cartório, os interinos têm ganhos limitados e recebem salário de até 90% do teto do funcionalismo (R$ 46 mil por mês).
A convocação para novos concursos é feita pelo próprio TJ. Quanto menos concursados, maior a "arrecadação extrateto".
Segundo norma nacional do CNJ, o valor extrateto deveria ser destinado a registradores civis, considerados "primos pobres" dos cartórios.
Eles emitem certidão de nascimento gratuitas, por exemplo, mas faturam pouco (cerca de R$ 5.000 por mês).
O fundo não paga salários, mas pode destinar recursos para construções, imóveis, informática, treinamento e "diárias de viagem, auxílios, ajudas de custo e indenizações de despesas de transporte".
Segundo dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), despesas de folha de pagamento de magistrados e servidores, como "auxílio-creche", "auxílio-alimentação" e "auxílio-saúde" pagas com dinheiro do fundo, chegaram a R$ 261 milhões, entre 2022 e 2024.
É o fundo do TJ que está bancando a construção da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, na avenida dos Andradas, no centro de Belo Horizonte, a um custo de R$ 31 milhões.
Em nota (leia a íntegra), o TJ-MG afirma que "não foram criadas alternativas para o incremento" do fundo.
"Os recursos financeiros do Poder Judiciário estadual mineiro são empregados observando a legislação pertinente e as normas do Conselho Nacional de Justiça", diz.
Quem paga a conta
Enquanto cartórios arrecadam mais e promotores e desembargadores engordam seus respectivos fundos, quem perde é quem precisa pagar novas taxas, cada vez que precisa ir a um cartório.
Extravagâncias provocaram discussões internas nos últimos anos.
Em fevereiro de 2023, o desembargador Marco Aurelio Ferenzini levou ao CNJ reclamações contra os ex-presidentes do TJ Gilson Soares Lemes (2020-2022) e José Arthur Filho (2022-2024).
No documento, Ferenzini afirmava que "a 'alta administração' do Poder Judiciário mineiro está para adquirir helicóptero para uso dos que ocupam cargo de direção, especialmente o presidente e seus auxiliares".
No fim de 2022, cogitou-se a compra de um avião Airbus H145, avaliado em US$ 11,9 milhões (R$ 63 milhões à época), para uso de agentes de segurança pública e autoridades do TJ e da PM.
O TJ afirmou que foi apenas uma proposta, e que foi negada.
Em 2022, o TJ inaugurou um escritório para desembargadores mineiros em Brasília, pago com recursos do fundo —o único tribunal estadual instalado na capital federal. Lemes liderava o TJ à época.
A unidade foi fechada em 2023, e os casos acabaram arquivados pelo CNJ em 2024.
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