"Você é muito bonita. Deveria largar o seu noivo para ficar comigo."
"Que delícia imaginar você só de calcinha e sutiã com a arma ao lado."
"Vamos nos encontrar em um motel?"
As frases acima foram ouvidas por policiais femininas que denunciaram chefes e colegas de profissão por importunação, assédio sexual ou estupro no ambiente de trabalho.
Essa situação não ocorre apenas em delegacias ou viaturas, mas também em batalhões e quartéis das Forças Armadas e de várias outras forças de segurança do país.
Esses depoimentos foram colhidos em entrevistas com vítimas e no levantamento inédito feito pelo UOL em registros do STJ (Superior Tribunal de Justiça), STM (Superior Tribunal Militar), tribunais de justiça dos estados e corregedorias das entidades.
O UOL analisou 107 denúncias realizadas nos últimos 15 anos e constatou que, a cada quatro denunciados, apenas um foi condenado pelos crimes.
Em números absolutos, 51 agentes de segurança foram denunciados, 22 sentaram no banco dos réus, 12 foram condenados, e 10, absolvidos.

Praticamente em todos os inquéritos e processos analisados, o denunciado era chefe da vítima.
Entre os condenados, mais da metade é reincidente. Ou seja, foram denunciados por duas pessoas ou mais e praticaram os abusos de forma contínua por um período de até cinco anos.
Juízes, advogados e especialistas em segurança ouvidos pela reportagem citam que o fato de os crimes serem investigados e julgados, em grande parte, pelos próprios policiais e militares favorece a blindagem dos denunciados.
As polícias Federal, Rodoviária e associações que representam outras forças de segurança afirmaram adotar ações de prevenção ao assédio, apoio à saúde mental e incentivo à apuração das denúncias.
Os advogados dos agentes condenados identificados no levantamento alegaram inocência.
O peso da subnotificação
O medo de sofrer represálias nos ambientes machistas das corporações contribui para o alto índice de subnotificações.
"Quem investiga os oficiais nas corregedorias da PM são os próprios oficiais. E, quando uma policial revela o problema, ela passa a ser perseguida, porque existe uma proteção institucional", afirma Francisco José da Silva, sargento aposentado da PM-SP e coordenador de direitos humanos da Federação Nacional das Entidades de Praças.
De todos os casos analisados pelo UOL, 27 denunciantes disseram ter sofrido perseguição institucional.
"Quando saí da delegacia para trabalhar em outra cidade, o pessoal me recebeu como X9", disse à reportagem Paula*, investigadora da Polícia Civil que afirma ter sido assediada sexualmente por cinco anos numa delegacia no interior de São Paulo.
"Quase todos os dias, os pneus da minha moto eram cortados. Nos corredores, ouvia comentários do tipo: 'E aí? Vai derrubar quem agora?'. Fiquei isolada", afirmou.
O delegado foi denunciado por outras duas vítimas e condenado por importunação sexual em 2ª instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a três anos e sete meses em regime aberto, com pena convertida em prestação de serviços à comunidade.
'Rotuladas como loucas'
Além da perseguição, vítimas de criminosos sexuais nas forças de segurança relatam traumas e sequelas emocionais.
O levantamento do UOL identificou 41 agentes que passaram por tratamento psicológico ou psiquiátrico. Cinco tentaram suicídio.
A escrivã de Buritizeiro (MG) Juliana*, que denunciou um investigador por assédio sexual e moral, contou que desmaiou no banheiro da delegacia após usar remédios controlados para lidar com distúrbios psiquiátricos.
Ficou internada três dias na ala psiquiátrica de um hospital da Polícia Civil. Lá, relatou um novo caso de abuso -dessa vez, cometido por um médico legista, alvo de investigação conduzida pela própria Polícia Civil por assédio sexual.
Mas a investigação não avançou. O caso prescreveu após dois anos sem que sequer fosse apurado. Investigador e médico negaram as acusações.
"Somos rotuladas como loucas e problemáticas. Enquanto isso, os abusadores seguem com as suas vidas normalmente", disse Juliana ao UOL.
Há dois anos, a escrivã Rafaela Drummond foi encontrada morta em casa pelos pais em Carandaí (MG). Ela havia denunciado colegas de trabalho por assédio sexual, moral e pressão psicológica.
O caso foi registrado como suicídio e arquivado pela Justiça, mas incentivou outras policiais a denunciarem.
Em dezembro passado, Rafaela Drummond inspirou a criação de uma lei complementar que prevê medidas de combate e punição para servidores que praticarem assédio contra colegas de trabalho.
Penas pouco severas
Apesar da gravidade dos casos, as penas impostas por crimes sexuais variam, em média, de 1 ano e 2 meses a até 4 anos. Em ao menos quatro casos analisados pelo UOL, há processos cíveis de indenização às vítimas.
"Infelizmente, a legislação brasileira prevê uma pena muito baixa para esse tipo de crime. Isso acaba contribuindo indiretamente para que outros casos do tipo continuem ocorrendo", lamenta Sidnei Henrique dos Santos, advogado de uma das vítimas.
Para a advogada criminalista Maira Pinheiro, especializada em direito das mulheres, casos de impunidade costumam acontecer principalmente quando os denunciados são julgados pelos tribunais militares.
"O militarismo tem uma Justiça própria, com regras diferentes em relação à sociedade, que favorece o corporativismo. Infelizmente, casos em que há impunidade e absolvição questionável dos acusados não surpreendem."

Denuncie e seja investigado
A reportagem identificou seis casos em que as pessoas responsáveis pela denúncia foram acusadas na Justiça por crimes de injúria ou difamação.
E, de vítimas, passaram a ser consideradas autoras de crime, de acordo com a lei.
Uma sargento do Exército em Natal (RN) respondeu a um processo por calúnia após acusar um tenente de assédio sexual em fevereiro de 2016, mas acabou absolvida.
Ela alegou que o tenente teria "tocado seu ombro, a empurrado contra a parede e apertado o seu braço". Em seguida, teria passado as mãos nos seus cabelos.
E, mesmo após dizer ter sofrido assédio sexual, contou que tinha receio de denunciar por medo de represálias.
"Chorei muito e estava sem reação (...). Fiquei com esse sentimento guardado por vários dias, até que relatei o que tinha ocorrido [a um colega] (...). Porém, pedi segredo, pois estava com muito medo da repercussão do assunto e achava que poderia ser prejudicada."

Trecho de depoimento
Testemunhas do caso relataram ainda que o oficial teria dito que "perfume despertava o seu instinto animal", fazendo com que tivesse vontade de "pular e rasgar a roupa" de quem estivesse usando.
A sindicância não investigou a conduta do oficial acusado, mas fez questionamentos ao longo do processo sobre a vida amorosa da militar pelo fato de ela ser solteira durante a investigação.
Apesar do relato dela e de colegas de farda confirmarem o "comportamento inconveniente" do tenente, o MPM não ofereceu denúncia por considerar que não havia provas do crime, ignorando parecer do STJ, que reconhece a relevância da palavra da vítima em crimes sexuais.
Em mais uma investigação em que o relato da vítima foi questionado, a Justiça Militar absolveu um coronel da Força Aérea Brasileira em abril de 2024.
O argumento para a decisão foi que o histórico de uma das supostas vítimas "não passava confiança", mas a corte não explicou o motivo.
O oficial alegou ter disfunção erétil para se defender de acusações que envolveram "abraços inconvenientes e toques nos seios", sob o pretexto de ajeitar a tarjeta de identificação de subalternas em episódios entre 2017 e 2018.
O coronel de 56 anos foi denunciado pelo MPM à Justiça Militar após o relato de seis mulheres da instituição. Em seguida, entrou com pedido de aposentadoria nas Forças Armadas.
Ele foi absolvido por um conselho formado por quatro homens e uma mulher.
*nomes alterados para proteger a identidade das vítimas
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