MP apura fraude em isenção dada pela Prefeitura de SP a 240 mil imóveis
O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) investiga a concessão, pela Prefeitura de São Paulo, de subsídios usados pelo mercado imobiliário para construção de quase 240 mil apartamentos que deveriam ser destinados a famílias de baixa renda.
A suspeita da promotoria é que parte desses imóveis foram vendidos para compradores de classe média alta ou investidores que usam plataformas como o Airbnb para lucrar com a locação dessas moradias.
As 239.299 unidades em investigação foram aprovadas pela prefeitura como HIS 2 (Habitação de Interesse Social faixa 2).
Esse modelo se destina a famílias com renda mensal entre três e seis salários mínimos (R$ 4.236 a R$ 8.472).
O inquérito civil, instaurado no fim de 2022, tem como foco os chamados studios, unidades habitacionais com metragem média de 25 a 40 m² que atraem solteiros ou casais sem filhos.
Localizados principalmente em bairros nobres, como Itaim Bibi e Pinheiros, esses projetos afastam famílias mais pobres devido à planta e ao custo — o metro quadrado chega a R$ 19 mil.
Há proprietários que fecharam negócio com as construtoras sem saber que descumpriram a lei, apurou o UOL. Outros fizeram a compra em nomes de terceiros para se enquadrar na faixa de renda exigida.
As investigações (...) indicam fragilidade (...) na fiscalização da Prefeitura, que parece não ter (...) condições de fiscalizar adequadamente e, em tempo hábil, o perfil socioeconômico das famílias que compram ou alugam as milhares de unidades que deveriam abrigar pessoas que ganham entre 3 e 6 salários mínimos
Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, promotor titular do inquérito
Segundo a própria prefeitura, 81 mil dos 239 mil apartamentos já estão prontos e possivelmente ocupados. O restante foi liberado para construção.
Esses dados retratam o período entre agosto de 2019 e julho de 2024.
A reportagem apurou que parte dos empreendimentos sob investigação oferece apenas algumas HIS para se enquadrar na lei e obter o subsídio proporcional.
Se comprovadas as fraudes, as construtoras envolvidas poderão ser obrigadas a pagar os benefícios fiscais não recolhidos e multas equivalentes ao dobro do valor concedido inicialmente pelo município.
O UOL questionou o poder público e representantes do setor imobiliário sobre a investigação.
Responsável pela fiscalização, a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) não respondeu se houve falhas, apenas informou que definiu novas regras para esse processo em outubro deste ano.
O órgão diz que notificou 48 empreendimentos para apresentarem comprovantes de renda dos compradores de HIS liberadas pela pasta mediante subsídios.
O principal benefício fiscal é o não pagamento de outorga onerosa, taxa cobrada pela prefeitura para se construir acima da área permitida.
A Procuradoria Geral do Município informa que não foi notificada pelo MP-SP sobre o inquérito.
O Secovi, sindicato do setor imobiliário, afirmou considerar normal a fiscalização dos entes públicos em programas habitacionais, assim como em iniciativas de outros setores.
A Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) declarou que a produção de HIS pela iniciativa privada é um mecanismo essencial no combate ao déficit habitacional.
"A Associação reforça que vê como positiva as recentes regulamentações (...) aumentando significativamente a segurança jurídica e ampliando a transparência em torno da HIS para toda a sociedade."
Fiscalização falha
Os studios se espalham pela cidade desde 2014, quando um novo Plano Diretor foi aprovado pelo então prefeito Fernando Haddad (PT).
A prefeitura passou a oferecer benefícios urbanísticos e fiscais para grandes empreiteiras investirem no mercado de HIS.
A meta era reduzir o déficit habitacional e levar moradores para regiões com mais oferta de empregos e de mobilidade, como nas proximidades das estações de metrô.
Se a intenção foi boa, o controle se mostrou insuficiente, segundo o ex-vereador José Police Neto, que integra o Centro de Estudos das Cidades do Insper.
Isso porque a concessão dos incentivos foi atrelada apenas a uma autodeclaração das construtoras se comprometendo a vender tais imóveis a famílias que se encaixassem nas normas vigentes de HIS 2.
E essas autodeclarações são agora investigadas pelo MP, assim como a fiscalização, ou a falta dela, por parte da prefeitura.
"A questão agora é como reparar o erro, punindo quem violou a regra e estabelecendo para frente um controle simples, objetivo e com muita transparência", afirma Police Neto.
Integrante da Comissão de Direito Imobiliário da OAB-SP, a advogada Nathalia Lopes concorda com o controle, mas ressalta que o consumidor comum não pode ser penalizado.
"É preciso, antes de tudo, avaliar as condições impostas nos contratos de compra e venda", afirma.
Ela também destaca a necessidade de o incorporador dar publicidade às características dos imóveis que negocia, o que virou lei apenas neste ano.
Na última semana, a reportagem teve acesso a uma lista de oito prédios investigados pela promotoria.
Somente dois deles citam que dispõem de unidades de HIS, mas de forma quase imperceptível — nas entrelinhas dos sites de lançamentos, por exemplo — e sem informar o número de unidades.
Rooftop com piscina, bar e lounge
As suspeitas têm origem nos valores e características dos empreendimentos.
Na lista investigada há prédios destinados basicamente a pessoas solteiras.
Em vez de espaços para crianças, com playground e piscina infantil, os projetos priorizam plantas reduzidas e espaços comuns como bares, lounges, academia e coworking.
É possível ainda encontrar itens de luxo, como fechadura biométrica nas portas, cubas em granito e piso laminado.
Imóveis classificados como moradia social ou habitação popular têm acabamento mais simples para não superar os valores por unidade.
A construção, pela iniciativa privada, não impõe metragem mínima ou máxima. Também não determina valor de venda. A exigência se dá na renda dos compradores.
Na lista de imóveis investigados, os valores são os mais variados, assim como as metragens. Em Pinheiros, zona oeste, uma unidade de 34 m² pesquisada pela reportagem chega a custar R$ 500 mil no lançamento.
Segundo o UOL apurou, parte dos empreendimentos sob investigação oferece apenas algumas unidades HIS para se enquadrar na lei.
É o caso do Alya Paraíso, da construtora MF7. Das 125 unidades previstas, apenas três são classificadas como HIS 2.
Na Vila Olímpia, 167 dos 251 apartamentos do On Cardoso de Melo são nesse formato. Ali, um imóvel de 24 m² é vendido por R$ 450 mil.
A Vitacon declarou que atua rigorosamente dentro da legislação vigente e que está à disposição dos órgãos competentes.
A MF7 informou que pede imposto de renda, holerite ou extratos bancários como comprovantes de renda e que as vendas de unidades HIS seguem a legislação.
"Sem controle das faixas de renda que acessam esses empreendimentos, temos um desvio de finalidade", afirma a arquiteta e urbanista Simone Gatti.
Professora da Escola da Cidade, ela chama a atenção ainda para o fato de esses projetos serem lançados com o slogan de "ótima oportunidade de investimento", o que deveria ser proibido.
Ela aponta exemplos a serem seguidos para fiscalização.
"Na Espanha, dependendo da modelagem do programa de habitação, as unidades podem ter o interesse social protegido por tempo determinado de 10, 20, 30 anos ou de forma vitalícia", completa.
Nunes alterou regras
Com o início da investigação pela Promotoria de Habitação de Urbanismo, em outubro de 2022, a gestão Ricardo Nunes (MDB) foi pressionada a criar novos controles.
Em junho de 2023, a Câmara aprovou a revisão do Plano Diretor com mudanças na lei, editada em janeiro deste ano, que trata sobre construção de habitação social pela iniciativa privada.
Ficou estabelecido, por exemplo, o prazo mínimo de dez anos para que esses imóveis possam ser comercializados livremente e pagamento de multa em caso de fraude.
Também foi aberta uma brecha para que pessoas com renda superior a seis salários mínimos possam comprar unidades de HIS 2 desde que aluguem para o público-alvo.
Já a exigência da autodeclaração por parte das construtoras foi substituída por uma certidão que ateste o enquadramento dos compradores ou locatários, além de averbação obrigatória na matrícula do imóvel informando que o mesmo é habitação social.
Mas, enquanto tenta aprimorar o controle, a pasta segue liberando licenças para projetos de HIS na cidade.
Desde a publicação do decreto, em janeiro, a prefeitura concedeu 468 licenças para "empreendimentos em que constam unidades para famílias que possuem renda entre três e seis salários mínimos".
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