Chuvas no sul da Bahia: estrada vira rio entre Trancoso e Praia do Espelho
A imagem abaixo é como uma ilusão de ótica. Se a fotografia fosse capturada antes de o ciclone extratropical atingir o sul da Bahia e o norte de Minas Gerais, toda essa água nem estaria aí. No corredor de estacas de madeira ligeiramente aparentes veríamos uma estrada de terra, por onde passam todos os dias motos, carros, vans e caminhões. Nas duas laterais, haveria pasto com búfalos pretos. Acontece que a chuva não foi ilusão.
"Eu tenho 49 anos, moço, nascido aqui nessa terra, e nunca vi uma coisa dessa. Isso é pra botar a gente doido", diz José Souza de Jesus, o Dourado, pescador que mora em Itaporanga, povoado de Porto Seguro de 2.500 habitantes, somando as aldeias indígenas do seu entorno.
No domingo (12), quando o Rio dos Frades subiu mais de três metros e se espraiou pela área conhecida como Vale dos Búfalos, cortado pela estrada que liga Itaporanga a Trancoso e Porto Seguro, Dourado participou de uma operação de salvamento como nunca havia previsto.
Um bebê da comunidade, que nasceu prematuro e tem apenas 3 meses de idade, começou a ter febre, tosse e falta de ar. Com as vias em condições normais, seria levado de ambulância até a UPA de Trancoso.
A cheia do rio, porém, obrigou mãe e filho a superar várias etapas: 4 quilômetros de carro até o primeiro ponto alagado, 300 metros numa canoa puxada por moradores locais, 50 metros de caminhada pela ponte sobre o leito dos Frades (a largura usual do rio neste trecho) e mais 1.300 metros no barco a motor de Dourado para cruzar todo o alagamento da foto. Então, enfim entraram numa ambulância para seguir até Trancoso. O bebê ainda está internado no Hospital Regional Luís Eduardo Magalhães, em Porto Seguro.
"Foi uma correria pra levar o menino, mas deu certo, né, ainda bem", lembra Dourado, que desde então permanece na função. Sem pescar por causa do nível da água, ele tem feito serviço de travessia da estrada submersa.
A cada viagem, cobra R$ 10 por pessoa, seja morador local que precisa passar de um lado a outro ou turista que queira acessar ou deixar as famosas Praia do Espelho e Caraíva. Itens essenciais, como botijões de gás, combustível e água mineral, também têm que passar de barco. Travessias por motivos de saúde estão isentas da taxa.
Na quinta-feira (16), quando a equipe de TAB fez a travessia, a prefeitura de Porto Seguro passou a disponibilizar uma lancha com o serviço gratuito até que o rio se recolha a seu leito, o que depende das chuvas no nordeste de Minas Gerais e na região mais adentro do extremo sul baiano.
Neste momento, além da água, o que se encontra no meio do Vale é um Fiat Stilo cujo dono, no domingo, achou que poderia vencer a correnteza do rio que subia. Tombado junto à cerca, teve que escapar pela janela.
USF vira Pronto Atendimento
Selma Lima, 48, também precisou passar por toda uma jornada para receber atendimento médico adequado. Na terça-feira (14), teve uma crise de hipertensão. Com fortes dores na cabeça e no peito, superou o calvário para chegar ao outro lado do alagadiço mas, como se fosse pouco, quando o alcançou, a ambulância ainda não estava lá.
Tainá dos Santos, filha de Selma, conseguiu uma carona para Trancoso. No meio do caminho, a ambulância apareceu e completou o transporte da paciente. "Ela agora está na UPA de Arraial D'Ajuda, em observação. Foi um susto danado, imagine saber que sua mãe tá passando mal, morrendo de dor, e que não dá pra passar no rio. Ainda bem que o pessoal tá ajudando", diz Tainá.
Na quinta-feira, ela procurou a USF (Unidade de Saúde da Família) de Itaporanga com a filha Maia, de 1 ano, que teve febre, tosse e coriza. Crianças e adultos do povoado têm apresentado sintomas assim, além de dor de cabeça e vômito, bem no momento em que o deslocamento para as localidades mais estruturadas está tomado por obstáculos.
"Tem uns quatro dias que começou esse surto. A procura ao posto triplicou. Ainda não dá pra ter certeza se é esse novo tipo de gripe que está por aí, mas é possível", diz a enfermeira Adriele Rodrigues, coordenadora da USF. "Todos os traços são de virose, então estamos cuidando de acordo com cada sintoma."
A unidade, criada para ser referência de prevenção à saúde, virou uma espécie de posto de pronto-socorro. "USF não faz primeiros socorros, a gente não tem nem equipamento pra isso, mas estamos realizando procedimentos mais simples porque está muito difícil as pessoas chegarem do lado de lá", observa Rodrigues. Selma, por exemplo, foi estabilizada na USF, com orientação de um médico do Samu por telefone, antes de iniciar o périplo até Trancoso.
Nativa de Itaporanga e com bons contatos na comunidade, a recepcionista do posto de saúde, Raíssa Eugênio, tem participado da engenharia logística que envolve fazer os pacientes chegarem do outro lado.
Manda mensagens pra quem tem barco, aciona donos de carros ou motos, liga pra UPA pra deixar a ambulância de sobreaviso e por aí vai. Domingo, o resgate do recém-nascido passou por sua ação, até porque a USF estava fechada. "A gente faz o que pode, né? E torce pra esse rio baixar logo. Tem gente muito pior, Lá pra cima a água destruiu tudo."
Praia quase privativa
Itaporanga está a 12 quilômetros da Praia do Espelho, um dos recantos mais valorizados da região. Com a proximidade, muitos moradores do povoado trabalham na praia em pousadas, restaurantes ou de forma autônoma, como o casal Malena Bonfim e Aleilton Machado, o Lequinho.
Ambulantes pelas areias do Espelho, vendem cangas, chapéus, protetor solar e tudo mais que um turista pode esquecer de botar na bagagem. Nessa época do ano, sem ciclone, estariam todos os dias na lida, faturando, segundo Lequinho, mais de R$ 1 mil por dia, renda que equilibra as contas da família na baixa estação.
Com o Vale dos Búfalos cortado pela água, a Praia do Espelho está quase deserta. "Nem adianta ir pra lá, não tem cliente. A gente teve que dar outro jeito", diz Malena. O jeito foi também entrar no ramo da travessia, dividindo o volume de passageiros com Dourado e agora o barco da prefeitura.
O compositor Nelson Coelho de Castro e a médica Claunara Mendonça pegaram o barco de Lequinho para ir embora, depois de quatro dias no Espelho. Eles, aliás, enfrentaram a travessia na ida e na volta.
"No dia da nossa chegada, segunda-feira, o pessoal da pousada avisou que a gente ia molhar o pé, mas eu não imaginava que seria desse jeito. Nem eles sabiam, na verdade. A correnteza do rio estava muito forte, era impressionante", relata Nelson, ainda impactado pelo volume de água.
O que também o impressionou foi a mobilização dos locais. "A solidariedade deles é notável. Todos juntos, ajudando, carregando as coisas, e sem fazer diferenciação porque somos turistas."
Tendo acompanhado as notícias sobre a chuva antes da viagem — até para saber que cenário encontrariam —, Claunara desconhecia, no entanto, o grau da destruição causada pelos temporais em cidades como Itamaraju e Jucuruçu, que receberam os maiores volumes de chuva.
"É tudo muito triste. E essa passagem fechada parece uma coisa mais simples, mas cria um efeito dominó. Atrapalha o abastecimento, as pessoas que precisam sair pra trabalhar, o ganho de quem vive do turismo", enumera, antes de apontar a única vantagem para ela, na condição de turista: "Ficamos com a Praia do Espelho quase exclusiva. Eu saía pra caminhar e não encontrava ninguém."
"Tive cancelamentos de reservas de quem ia chegar em dez dias ou duas semanas", reclama o uruguaio Damian Castro, que vive na região há 11 anos e, há dois meses, gerencia um hotel na Praia do Espelho. "Agora, mesmo a água baixando, as pessoas não vêm mais. Prejudicou nosso fim de ano."
Tem turista que desiste com antecedência e tem turista que decide em cima da hora — ou de frente pra água. Foi o caso de Leonardo Galinari, que dirigiu 800 quilômetros de Raul Soares, em Minas Gerais, até Porto Seguro, para passar as férias com a família e amigos, oito pessoas ao todo.
A programação da quinta-feira era passar o dia na Praia do Espelho. Sem informações sobre o alagamento do Vale dos Búfalos, ele só tomou pé do cenário quando encontrou a passagem afundada.
"Vamos nem pensar muito, é meia-volta e procurar outra praia", disse, convocando a turma. "Já passei por aqui, conheço esse lugar. É cheio de búfalos, não dá nem pra acreditar."
Em um comunicado na internet, a fazenda Trevo dos Búfalos informou que os animais, resgatados quando o rio começou a subir desenfreadamente, estão bem e seguros.
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