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'Avenidas elétricas' concentram favelas, hortas e apaixonados por torres

Cruzamento de linhões de energia elétrica no bairro de São Mateus, na zona leste paulistana - Rodrigo Bertolotto/UOL
Cruzamento de linhões de energia elétrica no bairro de São Mateus, na zona leste paulistana Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

11/12/2021 04h01

Existe um outro mapa rabiscado sobre aquele que os pedestres e os carros conhecem. São rodovias, avenidas e ruas com velocidade de milhares de quilômetros por segundo. Muros, matagais e grades as separam dos olhares térreos, que precisam levantar a cabeça aos céus para perceber as torres e os cabos que anunciam sua presença.

Por vezes, esses dois mundos se cruzam. Pode ser um encontro positivo, como quando surgem hortas comunitárias. Ou negativo, com moradias precárias em perigo, montadas embaixo de fios com tensão de 138 mil volts. "Outro dia vários barracos incendiaram. Ainda bem que os bombeiros chegaram logo, porque o fogo subia até perto dos fios", conta Neide Silveira, vizinha de uma área com torres de transmissão de alta tensão ocupada há mais de dez anos no Jardim Ipanema, zona leste de São Paulo.

Os chamados "linhões" trazem a energia das usinas para os grandes centros, criando caminhos verdes que rasgam a mancha urbana até chegar a subestações e estações para a posterior distribuição aos postes de rua. Essas estradas elétricas precisam de áreas livres debaixo delas como norma de segurança, tanto para proteger os humanos quanto as estruturas metálicas que garantem a luz nas cidades.

A questão é que esses terrenos lineares são vizinhos de bairros adensados onde faltam moradias, áreas verdes, alimentos saudáveis, entre muitas outras coisas. Por isso, várias iniciativas, legais e ilegais, ocupam esses espaços.

"Arrancamos as bananeiras e os mamoeiros, porque a Enel não deixa ter planta de mais de dois metros de altura aqui. Plantamos alface e outros vegetais de ciclo rápido para gerar renda para as famílias", conta Hans Temp, fundador do projeto Cidades Sem Fome, ONG que mantém horta em área cedida por comodato pela concessionária italiana de distribuição de energia no bairro de São Mateus, também na zona leste.

Faça-se a luz

Em 1881, o Brasil conheceu a eletricidade com a iluminação pública da praça da República, no centro do Rio, graças a uma caldeira a vapor trazida dos EUA por D. Pedro 2º. Passados 140 anos, o país ainda não saiu das trevas e tem gente sem eletricidade que precisa puxar luz clandestina bem embaixo de um grande corredor de energia.

Na favela São Mateus, as pessoas invadiram e aproveitaram o muro divisório construído pela estatal Eletropaulo (privatizada em 1999) para fazer a fachada de suas casas, abrindo buracos que viraram portas, janelas e entradas de garagem. Também amarraram cordas entre uma torre e outra para servir de varal de roupas.

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Torres de alta tensão em quintal de casa irregular com varal de roupas na favela São Matheus, na zona leste de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

"Moro aqui desde 1992, já vieram conversar, sei que tem ação na Justiça, mas daqui eu não saio", diz Marcelo Santos, que construiu uma casa de alvenaria, onde mora com filha e neta. Ele pendurou dois sacos de uma tonelada nas traves de uma torre onde acumula material que coleta pelas ruas.

"Está melhor agora do que antes, quando as pessoas jogavam lixo e entulho. Pelo menos a gente está cuidando", argumenta Marcelo. Há muitas bananeiras por lá, revelando a atividade anterior da área. Em outras invasões há lava-rápidos, estacionamentos, centros de reciclagem e até bailes funk. Quando não se queixam do uso comercial, os vizinhos dessas áreas reclamam da falta de poda da vegetação e acúmulo de bichos como ratos, cobras e mosquitos.

Há um perigo adicional ainda não totalmente medido: o campo eletromagnético gerado por essas linhas de transmissão sobre a saúde humana. Quanto mais alta a tensão dos cabos, maior o impacto no corpo de quem está constantemente por perto. Em nota oficial, a Enel informou que "as ocupações irregulares em sua propriedade são objeto de demandas judiciais em andamento".

Ornamental e nutritivo

O emaranhado de cabos completa a teia de cimento e asfalto que forma a zona leste paulistana, onde, como nas grandes metrópoles brasileiras, a rede subterrânea é exceção. Os corredores elétricos formam uma pausa vegetal aproveitada oficialmente por ONGs de agricultura urbana ou empresas de jardinagem para paisagismo.

Em dias de chuva, Hans dispensa os 11 lavradores que cultivam hortaliças em 8.000 m² e abastecem restaurantes e supermercados do entorno. "Se tem chance de raio, é perigoso aqui." Drones costumam passar sobre a plantação para verificar o estado da fiação, como manutenção preventiva.

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Hans Temp lidera a ONG Cidades Sem Fome, que mantém hora embaixo de linha de transmissão no bairro de São Mateus
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Em contrato de cinco anos, a empresa de distribuição cede gratuitamente o uso do terreno, mas estabelece uma série de regras. Não pode haver comércio, carros estacionados, criação de animais nem gente morando ali. Como as plantas, as construções não podem exceder dois metros de altura e não devem ter partes de metal, só parafusos e pregos, para evitar choques. A plantação de Hans aproveita a água dos telhados dos galpões vizinhos, que acumula em cisternas para irrigação. Há viveiro de mudas e aulas para os vizinhos aprenderem a manter hortas caseiras.

Do outro lado da cidade, na ala refinada da zona oeste, empresas de jardinagem dominam esses espaços nos bairros de Alto de Pinheiros e Morumbi, usando os corredores para a produção e estocagem de palmeiras, cactos e gramíneas decorativas.

Loucos da torre

Há quem veja beleza nas estruturas metálicas que carregam tantos cabos. Na Inglaterra, por exemplo, existe desde 2005 a Pylon Appreciation Society (Sociedade de Apreciação de Torres de Transmissão), que faz excursões pelo país e pelo mundo atrás de exemplares raros e paisagens cortadas por esses gigantes — um exemplo: para cruzar o rio Amazonas e integrar essa região ao SIN (Sistema Interligado Nacional) há, à beira das águas, torres de 320 metros de altura, quase do tamanho da parisiense Eiffel.

Essa sociedade começou em 1999 reunindo engenheiros de transmissão e aficionados que contribuíam com um site de fotografias. Ela evoluiu tanto que publica guias e vende camisetas e broches sobre o tema.

Essa paixão é especialmente marcante na Holanda, onde os moinhos são símbolos nacionais (antepassados das atuais usinas eólicas) e a mentalidade industrial é mais arraigada, fugindo do arcadismo turístico, que só acha bonitos os cenários naturais selecionados em livros como "1.000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer".

torres de transmissão de eletricidade - Choi+Shine Architects/Reprodução - Choi+Shine Architects/Reprodução
Projeto de linha de transmissão de energia na Islândia prevê torres em forma de humanos caminhando
Imagem: Choi+Shine Architects/Reprodução

Na Escócia e Islândia, porém, surgiram movimentos contrários às estruturas esqueléticas cortando paisagens montanhosas e idílicas. Como alternativa, foram apresentadas propostas de torres que imitavam formas humanas, como se houvesse gigantes andando por ali, carregando os fios. Já na Rússia foram desenhadas torres em forma de renas, com os cabos conectados pelos chifres.

Apesar de inventivas, ideias como essas não foram colocadas em prática. No Brasil, onde os opositores às torres são mais esparsos, seria ainda mais difícil. "Aqui as linhas de transmissão são concedidas pelo governo por meio de leilões, e a empresa que oferecer o preço mais barato e o serviço mais eficiente leva. Com isso, não há muito espaço para sair do convencional", afirma Gabriela Desirê, diretora executiva de Operações da Isa Cteep, empresa responsável pela transmissão de 30% da energia elétrica do Brasil.

Segundo Desirê, as empresas de transmissão se preocupam mais em gerar o menor impacto nas áreas de preservação, usando até helicópteros para levar funcionários e peças ao meio da selva e até para içar os componentes para a montagem das torres. E a estrutura tem que resistir às tempestades equatoriais, aos ventos cada vez mais fortes e às constantes queimadas.

Tensão está no ar

Antigamente se sabia por onde entrava em São Paulo a energia vinda de Itaipu, Furnas ou Angra. Com a integração nacional do sistema, porém, os elétrons podem vir de lugares distantes como as hidrelétricas amazônicas de Belo Monte, Jirau e Tucuruí. Ainda mais agora que os reservatórios do Sudeste estão baixos em razão das chuvas de 2020 e 2021 terem sido as menores dos últimos 90 anos.

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Moradora deixa casa construída irregularmente embaixo de torre de transmissão no Jardim Ipanema, zona leste de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Essa situação fez a conta da luz subir e ajudou a puxar a inflação para cima — o risco de racionamento e apagão foi momentaneamente afastado. Logo atrás do maior centro de compras da América Latina, o Shopping Aricanduva, esse é só um dos problemas no Jardim Ipanema, onde a crise humanitária é bem anterior à crise energética.

Lá as casas usam as torres metálicas como paredes dos quartos. Em uma encosta, um grupo de barracos de madeira serve de cracolândia local. A venda e consumo de entorpecentes acontece embaixo dos cabos de alta tensão, enquanto uma peregrinação elétrica passa por lá para garantir a produção industrial da Grande São Paulo e o show de luzes da decoração natalina da Avenida Paulista.