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'Chance de dar errado é grande', diz Dunker sobre casal abrir relação

Um casal que estivesse pensando em abrir a relação para escapar de uma crise ouviria do psicanalista Christian Dunker, 59, que a ideia não é boa.

"A chance de não dar certo é muito grande", ele afirma.

Os dilemas do amor, da existência e dos desejos —quase sempre "politicamente incorretos"— são tema de seu novo livro, "Eu Só Existo no Olhar do Outro?", escrito em parceria com a colega Ana Suy, recém-lançado pela editora Planeta.

Dunker também acaba de lançar "O estilo de Lacan" (Zahar).

Em entrevista ao UOL, Dunker —professor do Instituto de Psicologia da USP— fez um diagnóstico dos tempos movidos por desejos reprimidos, amores nascidos em apps de relacionamentos e conservadorismo juvenil.

Ele afirma que vivemos uma mudança de padrão. Antes, os velhos eram mais moralistas que os jovens, e agora seria o contrário.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O psicanalista Christian Dunker
O psicanalista Christian Dunker Imagem: Daniela Toviansky/UOL

UOL - As redes sociais são uma prova de que nós só existimos no olhar do outro, como pergunta o título do seu livro com a Ana Suy?

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Christian Dunker - Antes de nascermos já há um olhar do outro que nos antecede. Esse olhar dá o nosso nome, nos inscreve numa cultura e numa família e se prolonga até o universo digital, onde há uma aceleração desse processo. Há um aumento da extensão desse outro.

Há nas redes sociais uma celebração da autossuficiência —não se importar com a opinião dos outros e não precisar de ninguém. São pessoas que dizem estar em paz porque pararam de beijar, além de movimentos como o "boysober", que defende abstinência de homens. Isso é uma armadilha?

É superestimar um determinado momento. "Estou sequelado pelo beijo, o beijo me transtorna e cria problemas." Esse chamado para reduzir o peso e o olhar do outro, em geral, está endereçado àquelas que se entregaram demais. Antes, disseram "sim" demais. Agora, vamos passar para o "não".

Essa ideia de "não me importo com o que os outros pensam" é uma tolice, uma negação da estrutura social baseada no reconhecimento.

No livro, você diz que, quando uma pessoa fica sozinha, ela deixa de cuidar de si. É uma resposta a essa celebração da autossuficiência?

É uma resposta a esse "eu não preciso de você". É uma forma de negação em um universo que produz cada vez mais solidão.

As pessoas são seduzidas pela ideia de que estar sozinha é um descanso, "o outro não está enchendo a minha paciência".

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Mas dali a pouco você vai começar a ser corroído por efeitos nocivos da solidão. Vou chamar de solidão preguiçosa: é aquela que leva a gente ao descuido, à displicência, a não cuidar de si.
Mas nem todos os destinos que a gente dá para a solidão são problemáticos.

Você pode construir a solitude: estar sozinho e não se sentir isolado, punido ou fracassado.

Você escreve que o ódio sobrevive ao silêncio, ao contrário do amor. Isso me fez pensar na cena de um casal no restaurante, cada um no celular, sem conversar. É a silêncios como esse que você se refere?

Sim. A pior solidão é a que se vive a dois. Como dizia o Contardo Calligaris [psicanalista morto em 2021], é mais importante estarmos juntos do que quem vai pagar a conta e a qualidade do prato.

Esse valor de estar junto podemos chamar de intimidade, mas também de comunalidade.

Intimidade é quando você tem a partilha de incertezas a dois, e essa ideia de que não estamos felizes necessariamente, de que também compartilhamos a tristeza.

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A comunalidade significa que a sua vida pode ser feliz e interessante e você ser uma pessoa comum.

A gente não precisa ser notável, celebridade, rica, para ser integralmente feliz. Pode ser mais um e estar tudo bem.

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Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Qual sua opinião sobre aplicativos de relacionamento como o Tinder?

Quando eu estava na faculdade, a gente aprendia que as pessoas se casavam com outras que moravam a oito quadras de onde você mora.

Eram pessoas do mesmo colégio, do mesmo condomínio.

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Com o Tinder, assisti ao ressurgimento da libido para os que não saíam de casa, para os que têm dificuldade de mobilidade, os que estão em lugares remotos. Tem muita gente dando muito certo no Tinder. São aqueles que sabem espontaneamente usar a ferramenta.

Quem amaldiçoa é quem tem na cabeça uma narrativa de apaixonamento criada lá atrás, onde o natural era o "footing" [caminhar] na praça.

Qual é a grande novidade? Você não vai casar com alguém a oito quadras de onde você mora.

Você tem a alternativa de conhecer pessoas de outras raças, de outros universos culturais, de outras orientações sexuais.

Os aplicativos de relacionamento pressupõem que sabemos o que desejamos, mas isso nem sempre é verdade. Eu posso achar que gosto de homens altos mas desejar os baixos. Nesse sentido, não são um problema?

Isso me lembra um caso que estudamos.

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Nos anos 1950, uma companhia de automóveis disse que ia fazer o carro dos sonhos dos norte-americanos com base em uma pesquisa massiva.

O carro foi um fracasso, ninguém comprou.

O verdadeiro desejo começa quando o outro começa a te surpreender.

Então o aplicativo parece fácil, mas dá trabalho igual ou maior do que quando você tinha a festa, o footing. É uma outra geração que vai conseguir superar o uso banal do conteúdo digital. Não vamos assistir a isso.

É possível moralizar o desejo?

O desejo transgride, faz a gente se expor a elementos que vão além da nossa moralidade.

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Achamos que um casamento, um namoro, tem de ser sobretudo funcional.

E não é, porque, quando se apaixona, você vira um ser disfuncional.

O desejo se alimenta da falta. E, no universo do consumo, parece acontecer um efeito rebote. Para ser desejável, eu tenho que ter o peso X, o cabelo Y, a boca Z. Então você conhece alguém e declara seus talentos, como um objeto a ser adquirido.

E o que o outro quer para o seu desejo é o que te falta, não o que você tem. Onde eu entro na tua vida? Onde tem uma incerteza, um sofrimento? É lá que eu moro.

Mas as pessoas não pensam assim. Elas investem muito mais na academia, nos dotes, nos saberes.

Na sua experiência clínica, você percebe uma contaminação do desejo pela política? Pessoas que sentem culpa por sentir desejos tidos como politicamente incorretos?

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Em geral, os desejos são politicamente incorretos. Nós estamos rompendo um padrão na relação entre gerações.

Antes, os mais jovens eram mais libertários que os mais velhos.

O ápice disso talvez tenham sido as revoluções culturais: maio de 1968 na França, os anos 1970 nos Estados Unidos, a nossa pós-ditadura.

A partir da linguagem digital a gente tem uma curiosa inversão. Nossos jovens são mais moralistas do que os mais velhos.

É uma geração que nasceu e se criou no sistema de autoridade horizontal do universo digital.

Então você vai ter ódio às universidades, às elites, aos intelectuais, a tudo aquilo que representa o mundo vertical.

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Os que estão no poder são vistos como luxuriosos, tóxicos, assediadores e gananciosos que estão acabando com o mundo porque desejam demais.

Então eles dizem: "O que a gente precisa é reduzir essa festa, essa bagunça dos que são donos do mundo". Isso é totalmente novo.

Isso explica por que os jovens fazem tão pouco sexo, como mostram pesquisas?

É um indício. Essa é uma geração que bebeu na água do Pokémon, dos Teletubbies, de bichos que não se reproduzem.

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Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Isso não gera uma energia libidinal reprimida?

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Exatamente.

De repente os repressores são os mais jovens. E nós olhamos para isso e dizemos: vocês têm razão, porque a gente reprimiu de menos nosso desejo devastador de acabar com a natureza.

Têm razão em nos lembrar que relações tóxicas são uma coisa medieval.

Têm razão no moralismo.

Talvez se a gente tivesse recalcado melhor certas coisas intoleráveis, hoje estaríamos em outra situação.

O racismo estaria em outra situação, a desigualdade social também.

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No livro, você diz que quando um casal em crise chega ao seu consultório dizendo que quer abrir a relação, você tenta convencê-lo de que não é uma boa solução. Por quê?

Porque vem na hora errada e pelos piores motivos.

Você está a fim de escapar do casamento monogâmico e se propõe a inventar novas formas de vida.

O casal se encontra da forma típica. Se apaixonam, vão encontrando dificuldades, vai dando certo. De repente, dá uma crise. "Agora vamos mudar a chave do nosso relacionamento."

Se era para criar uma nova forma de vida, o poliamor, então que fosse feito do começo.

Um casamento é uma unidade econômica no sentido de dinheiro, posses e bens, mas também investimento libidinal. E daí você diz: "Nosso investimento está dando errado". O que você faz? Chama um terceiro. A chance de dar errado é grande.

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Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Nesse caso, o que a pessoa deve fazer com o desejo por outras?

A questão é: você vai ser fiel ao contrato ou ao seu desejo?

Nesse impasse, temos muito sofrimento e falsas soluções.

São situações em que você está desejando o outro —como sempre desejou— mas começa a vir a ideia de que poderia ser mais feliz lá do que aqui.

É a melhor situação para se separar.

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E não é porque está ruim. A gente se acostuma com as piores coisas. Mas a nossa cultura diz assim: "Uma vida bem vivida é uma vida à altura do seu desejo".

Então, se você não vai atrás do seu desejo, está se traindo.

Isso é contrário a uma série de outros imperativos importantes para a nossa cultura, como o da segurança emocional.

Nós precisamos de seguranças e garantias. Mas você quer tudo isso e também o desejo? Não vai dar.

Tem mesmo que escolher entre segurança e desejo?

É uma contradição real dos nossos tempos. Duas promessas muito importantes, mas que não dão harmonia. Não adianta você mentir para as pessoas e dizer que tem jeito.

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Triste, não?

Estamos num negócio que se chama tragédia. Nosso trabalho é transformar tragédia em drama.

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