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Intervalos de louvor: devocional entra na rotina das escolas públicas

Os chamados devocionais, momentos de adoração fora das igrejas, chegaram com força às escolas brasileiras —públicas e particulares, mesmo as não religiosas.

Comuns entre evangélicos, que os praticam individualmente ou em grupo, eles vêm crescendo em popularidade em livros, podcasts, vídeos e postagens na internet.

Em colégios, crianças e adolescentes se reúnem em intervalos para fazer leituras bíblicas, cantar músicas e ouvir pregações.

Os encontros podem ser pequenos e organizados pelos próprios alunos, de forma espontânea, ou contar com convidados e apresentações.

Segundo levantamento do UOL, isso já ocorre em colégios de ao menos 19 estados.

O fenômeno vem acendendo debates. O artigo 19 da Constituição brasileira determina que escolas administradas pelo Estado estão proibidas de apoiar cultos ou igrejas, salvo por interesse público.

A discussão já chegou ao Ministério Público e ao Congresso. Já existe um projeto de lei para liberar atos religiosos voluntários em escolas, incluindo os devocionais, sob pena de multa ao gestor que vetar o encontro.

Para entender o fenômeno, a reportagem ouviu mais de 15 pessoas, entre juristas, professores, influenciadores, pais e alunos, que divergem. Uns criticam eventuais excessos, outros pregam liberdade religiosa.

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Imagem: Arte/UOL
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Grupo de oração dentro da escola

Uma pesquisa na internet com os termos "devocional nas escolas" ou "intervalo bíblico" revela centenas de vídeos e até orientações sobre como falar do Evangelho no ambiente escolar.

Em São Paulo, alunos da Etec Guaracy Silveira, em Pinheiros, criaram um grupo fixo que se reúne às quartas-feiras.

Na Escola Estadual Sylvio Rabello, no Recife, os encontros também são semanais e acontecem desde o começo de 2024.

Palestra do Guilherme Batista em escola militarizada
Palestra do Guilherme Batista em escola militarizada Imagem: Reprodução/Instagram

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Já na Escola Estadual Guiomar de Vasconcelos, em Canguaretama (RN), as atividades são divulgadas em um perfil no Instagram, que mostra o grupo sempre reunido em uma área ajardinada do colégio.

Com o aval dos diretores, os alunos usam microfones, espaços de uso comum —como bibliotecas e quadras poliesportivas— e recebem convidados, muitas vezes líderes religiosos.

Mas, segundo especialistas e educadores, a falta de norma para esse tipo de atividade pode levar a excessos.

"O movimento é feito sob orientação de lideranças evangélicas, neopentecostais, que transformam intervalos em cultos. Isso incomoda alunos e familiares que não compartilham da mesma fé", afirma o professor Marcondes Rodrigues, da rede estadual em Paudalho (PE).

O professor e pesquisador Fernando Cássio, da Faculdade de Educação da USP, ressalta que o Estado é responsável pelo que acontece nas escolas públicas.

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"Não se pode permitir que encontros dessa natureza interfiram na rotina, seja a partir do uso de música alta ou de tentativas de imposição de uma fé. A escola pública deve ser um espaço marcado pela diversidade", observa.

A técnica em radiologia Alexandra da Silva, 41, mãe de uma adolescente de 16 anos que participa de devocionais na escola, defende os encontros e destaca que só participa quem quer.

"Os alunos que desejam adorar a Deus se reúnem para orar, fazer a leitura da Bíblia e compartilhar aquele momento. Faz muito bem à minha filha e até mesmo aos alunos que não são cristãos e resolvem participar", diz ela.

Encontro do grupo Idetec, em escola técnica
Encontro do grupo Idetec, em escola técnica Imagem: Reprodução/Instagram

Estudantes a favor e MP de olho

Críticos afirmam que os "intervalos bíblicos", populares nas escolas estaduais, podem configurar ataques à laicidade do Estado.

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O debate chegou ao Ministério Público de Pernambuco em abril de 2024, quando o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do estado (Sintepe) relatou preocupação com a prática.

Foi aberto um procedimento para "garantir que não haja excessos".

Segundo o promotor de Justiça Salomão Ismail Filho, isso pode acontecer por meio de música alta, visita de líderes religiosos e proselitismo (ação de tentar convencer) —vetado pela Constituição.

Por lá, alunos a favor dos encontros lançaram um abaixo-assinado virtual que já reúne mais de 17 mil assinaturas, com apoio de parlamentares evangélicos.

A nossa base é a Bíblia, que, como todos sabem, não é prejudicial a ninguém. Pelo contrário, a Bíblia promove e também aumenta a ética de muitas pessoas que são alcançadas pela Palavra. João Pedro dos Santos estudante, em audiência pública na Assembleia Legislativa de Pernambuco em dezembro de 2024

Handrielly Soares, 17, que estuda na Escola Estadual Sylvio Rabello, no Recife, afirma que os encontros são autorizados pela direção e acontecem em espaços que costumam estar vazios, como o auditório.

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"Podemos utilizar o intervalo da maneira que quisermos. É um momento livre no qual decidimos nos reunir para louvar e escutar ou ler a Bíblia sem incomodar ninguém."

Ivete Caetano, presidente do Sinpro (Sindicato dos Professores de Pernambuco), afirma que a entidade não é contra manifestações religiosas nas escolas, desde que a laicidade do Estado seja assegurada.

"A escola deve ser por excelência um local diverso e de promoção da ciência. É só fazer um paralelo com a política. Na escola não podemos fazer campanha eleitoral para um partido, mas podemos discutir as propostas dos candidatos de forma plural", diz.

A Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco informou que não iria comentar a polêmica dos intervalos bíblicos. O governo de Raquel Lyra (PSDB) ainda não se manifestou sobre o assunto.

Encontro da organização missionária Aviva School
Encontro da organização missionária Aviva School Imagem: Reprodução/Instagram

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Dos testemunhos de cura aos cultos no pátio

Em Goiás, é comum escolas convidarem "missionários influencers" para conduzirem os encontros.

Quadras e ginásios lotados viram cultos, muitas vezes anunciados como palestras motivacionais e transmitidos pelas redes sociais.

Colégios cívico-militares também realizam eventos do tipo.

Vídeos postados na internet mostram "momentos de cura" em escolas, como os conduzidos pelo goiano Lucas Teodoro, 21, da Assembleia de Deus.

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Lucas criou um grupo chamado Aviva School, presente em 15 estados, e diz "dedicar a vida" à evangelização de jovens.

Ele critica o debate em curso e ressalta que ninguém é obrigado a participar.

"Tudo o que acontece é por livre e espontânea vontade dos alunos. O Estado laico garante a liberdade religiosa. Como então o aluno não pode ler a Bíblia na escola dele? Como não pode orar no intervalo?", questiona.

Palestra do Guilherme Batista em escola
Palestra do Guilherme Batista em escola Imagem: Reprodução/Instagram

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Outro missionário com acesso a escolas é Guilherme Batista, 35, que prega nas igrejas Assembleia de Deus e Lagoinha. Ele afirma ter evangelizado em cerca de mil colégios país afora.

Em suas redes sociais, Guilherme mostra menores de idade ajoelhados, chorando e relatando suas dores diante dos colegas.

Um dos vídeos teve 3,2 milhões de visualizações no TikTok.

Em nota, a Secretaria de Educação de Goiás afirmou que as escolas respeitam a diversidade religiosa e de credo e que não há regra para a realização de palestras de cunho religioso na rede.

A pasta, no entanto, não respondeu como os influencers evangélicos têm acesso aos colégios.

A reportagem tentou contato com Guilherme Batista, mas não obteve retorno.

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Professor e policial com Bíblia na mão

Em Roraima, a Secretaria de Educação e Desporto libera as instituições a realizar devocionais com a presença de docentes e policiais contratados, antes do início das aulas.

Policial lê trecho de Bíblia em encontro devocional em escola de Roraima
Policial lê trecho de Bíblia em encontro devocional em escola de Roraima Imagem: Reprodução/TikTok

Em um vídeo de junho de 2024, o major da PM Luis Oliveira lê trechos da Bíblia a alunos do Colégio Estadual Militarizado Presidente Tancredo Neves, de Boa Vista.

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Com a Bíblia na mão e uma arma na cintura, o oficial convoca os estudantes a concordarem com as citações, proferindo "amém", e a repetir uma oração ditada por ele.

O governo de Roraima afirmou que apura a conduta do policial Luis Oliveira e que a rede garante a liberdade e o respeito a todas as manifestações religiosas.

O Ministério Público do estado informou não haver nenhum procedimento aberto a respeito.

'Guerra ideológica' chegou ao Congresso

Em outubro de 2024, a missionária Michele Collins (PP-PE), que exercia a função de deputada federal à época, apresentou um projeto de lei para liberar ritos religiosos voluntários, incluindo devocionais, em escolas públicas e privadas de todo o país.

A proposta prevê multa de até R$ 6.000 e abertura de processo administrativo contra o gestor que se negar a liberar o encontro.

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Michele Collins (PP), que atuou como deputada federal por Pernambuco
Michele Collins (PP), que atuou como deputada federal por Pernambuco Imagem: Divulgação

Tempos depois, a deputada Clarissa Tércio (PP-PE) sugeriu tipificar como infração administrativa o "ultraje" de impedir tais eventos.

Uma audiência pública convocada pelo MP para discutir o tema, no final de novembro, foi encerrada antecipadamente em função dos embates acalorados.

Nada foi decidido, o que prova que o assunto vai continuar mobilizando muita gente.

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