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Tabeliães deixam cartórios 'de lado' e mostram viagens no Instagram

Duas tabeliães de cidades mineiras têm sido vistas nas redes sociais priorizando outras atividades e viagens, o que contraria o princípio de que um tabelião deve garantir a disponibilidade e presença física no local de trabalho.

Marília Oliveira Leite Couto, responsável pelo Cartório de Protestos e Títulos de Cristina (MG), coordena um curso universitário em Belo Horizonte, a 400 km de distância.

Sua rotina em Belo Horizonte é confirmada por uma secretaria da coordenação de sua faculdade, que informa a sua presença diária no campus, a partir das 14h.

Ao UOL, ela afirmou que dá expediente no cartório semanalmente e que não há uma carga horária presencial fixa obrigatória. Disse ainda que mantém uma substituta para garantir a continuidade do serviço.

A reportagem, entretanto, ligou para o número do cartório registrado no site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) inúmeras vezes nas últimas semanas. Ninguém atendeu.

Já Martha Elias El Debs, responsável pelo Ofício do 1º Tabelionato de Protesto de Títulos de Ibiraci (MG), a mais de 400 km da capital, tem uma rotina intensa como jurista, mentora e professora.

Em seu perfil no Instagram, com 177 mil seguidores, ela compartilha fotos de viagens internacionais, da Austrália à Antártida, e se dedica a cursos online e pesquisas sobre sistemas cartoriais.

Procurada por telefone e email, Martha não respondeu ao UOL com que frequência trabalha em Ibiraci.

O que diz a regra

O CNJ informa que, embora não haja lei específica, a residência na localidade visa "garantir a disponibilidade, a continuidade e a presença física do delegatário, em consonância com os princípios da função notarial e registral".

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Se um titular se ausentar, a regra é que ele nomeie um tabelião substituto e comunique o órgão.

Tanto no cartório de Martha quanto no de Marília, não consta substituto no sistema do CNJ. Em cada um deles trabalham apenas dois funcionários.

Registro do cartório de Marilia Leite no CNJ, que diz que 'não possui substituto informado'
Registro do cartório de Marilia Leite no CNJ, que diz que 'não possui substituto informado' Imagem: Reprodução
Registro do cartório de Martha Delbs no CNJ, que diz que 'não possui substituto informado'
Registro do cartório de Martha Delbs no CNJ, que diz que 'não possui substituto informado' Imagem: Reprodução

Para a tabeliã Priscila Agapito, titular do 29º Tabelionato de Notas, de São Paulo, o cargo exige a presença.

A gente exerce um cargo público em caráter privado. A gente não bate cartão, mas tem de vir todos os dias ao cartório. Quando saio de férias, comunico o juiz, que publica no Diário Oficial que estou saindo de férias.
Priscila Agapito, tabeliã

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Para a advogada Samara Léda, de Brasília, que é especialista em direito disciplinar, notarial e registral, titulares precisam estar disponíveis para não prejudicar o interesse público.

O titular deve assegurar o funcionamento regular da serventia, nos horários estabelecidos, com atendimento eficiente ao público, estando disponível para situações que exijam sua presença e garantindo a supervisão adequada dos serviços.
Samara Léda, advogada especialista

Léda acrescenta que a responsabilidade do titular é maior que a de seus substitutos e escreventes. Segundo ela, os substitutos têm função limitada e, como funcionários contratados, são designados para atuar durante ausências ou impedimentos do titular.

Escreventes, por sua vez, exercem atividades administrativas e de apoio, e não possuem fé pública.

Post de Marília Leite na sexta 12 de julho de 2024, na Grécia, com a legenda: 'Meio-dia... pode olhar aí Bb... quem fez, fez... a partir de agora gratidão a Deus e telefone no modo [avião]'
Post de Marília Leite na sexta 12 de julho de 2024, na Grécia, com a legenda: 'Meio-dia... pode olhar aí Bb... quem fez, fez... a partir de agora gratidão a Deus e telefone no modo [avião]' Imagem: Reprodução

400 km de Belo Horizonte

Marília, a responsável pelo Cartório de Protestos e Títulos de Cristina, é bastante ativa no Instagram.

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Várias das fotos que publica em seu perfil têm localização em Nova Lima, região metropolitana de BH.

Ela afirma que, como a atribuição é administrativa, consegue acompanhar "em tempo real de qualquer lugar" tudo que está acontecendo no cartório que administra.

Martha, que se identifica como jurista e mentora no Instagram, é responsável pela E-dren, que promove cursos online preparatórios para concursos de cartórios.

Em seu perfil, a tabeliã compartilha mensagens motivacionais e fotos de viagens internacionais, da Austrália à Antártida —no Instagram, ela conta como operam os cartórios pelo mundo.

Ela também é coordenadora de um curso de pós-graduação na Faculdade Baiana de Direito.

Depois de buscar a informação por telefone, a reportagem perguntou, por email, com que frequência a titular está presencialmente no cartório, e quem a substitui no caso de ausência.

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Martha não respondeu às perguntas do UOL, mas destacou que é autora de 35 obras jurídicas, dá aulas "de modo 100% online" e está desenvolvendo uma pesquisa sobre sistemas cartoriais de 92 países.

Post de Martha Debs referente a viagem à Antárdida em fevereiro de 2024
Post de Martha Debs referente a viagem à Antárdida em fevereiro de 2024 Imagem: Reprodução

Atividade 'peculiar'

Segundo dados públicos dos cartórios no CNJ de 2024, o cartório de Martha arrecadou R$ 154 mil; o de Marília, R$ 289 mil.

"O valor divulgado pelo CNJ não representa o que efetivamente recebemos", diz Marília, por email.

"Após gerirmos a serventia e arcarmos com todos os impostos, a receita líquida corresponde, em média, a 20% a 30% do valor bruto informado. Por isso, muitos de nós mantemos outras atividades profissionais", acrescenta.

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A natureza jurídica da atividade extrajudicial é bastante peculiar. Não batemos ponto, mas também não gozamos de férias, licenças médicas ou maternidade/paternidade, tampouco recebemos décimo terceiro ou qualquer direito semelhante ao de servidores públicos, ou celetistas. Somos delegatários, fiscalizados pelo Tribunal de Justiça, e não estamos sujeitos a aposentadoria compulsória e nem mesmo ao teto de pagamento do funcionalismo público, porque não somos funcionários públicos. É uma atividade que exige dedicação, disciplina e responsabilidade permanentes, mas que me orgulho de exercer com zelo e transparência.
Marília Oliveira Leite Couto, tabeliã

Post de Marília Leite na segunda 4 de agosto de 2025 no Le Cordon Bleu de São Paulo
Post de Marília Leite na segunda 4 de agosto de 2025 no Le Cordon Bleu de São Paulo Imagem: Reprodução

'Abandono'

Em Minas Gerais, a regra diz que o substituto pode assumir atos no caso de "afastamento ou impedimento do titular".

"Considera-se ausência aquela justificada e previamente comunicada ao diretor do foro", diz o texto

Fontes da área ouvidas pela reportagem acrescentam que, embora titulares de cartórios possam exercer outros ofícios, ainda não há previsão legal para o home office.

Muitas vezes, dizem as fontes, o titular trata o cartório de uma cidade pequena como um tipo de trampolim. Ele assume a delegação enquanto estuda para outros concursos em cidades maiores, o que é legítimo.

O que fere o princípio da profissão, segundo as fontes, é o "abandono".

Samara Léda também diz que tabeliães podem ter outras fontes de renda --entre as atividades permitidas estão as acadêmicas, artísticas e culturais.

Mas isso só pode ocorrer quando não há conflito de interesses e quando elas não comprometam a regularidade e "a garantia de disponibilidade para atender integralmente às demandas da serventia".

O deputado estadual Roberto Andrade (Avante, à época; hoje no PRD) propôs no fim de 2022 um projeto de lei que prevê teletrabalho para tabeliães, parado na Comissão de Constituição e Justiça desde 2023.

Andrade foi presidente da Serjus-Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Estado de Minas Gerais) entre 2007 e 2018.

Para Rogério Bacelar, presidente da Anoreg-BR (Associação dos Notários e Registradores do Brasil), o teletrabalho deve ser analisado com cautela.

"Embora a tecnologia permita atos digitais e centrais interligadas, a função notarial e registral exige a presença física do delegatário para assegurar a pessoalidade e a fé pública nos atendimentos presenciais", afirma.

Post de Martha Debs na Bahia em setembro de 2023
Post de Martha Debs na Bahia em setembro de 2023 Imagem: Reprodução
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