Como o Master construiu negócio bilionário com juro extorsivo no consignado

Ler resumo da notícia
O BRB, banco público de Brasília, está prestes a comprar uma fatia majoritária do Banco Master, controlado por Daniel Vorcaro.
A operação, no entanto, não é apenas uma transação financeira: envolve a saída do sócio Augusto Ferreira Lima e a divisão de um império construído em torno do crédito consignado para servidores públicos.
Para entender como tudo começou, é preciso voltar à Bahia — e a um supermercado estatal.
Conhecido como o "pai do Credcesta", Lima era o CEO do Master e se associou a Vorcaro levando para o negócio um convênio de exclusividade no cartão consignado de servidores públicos da Bahia.
Em pouco tempo, o negócio do consignado no setor público se transformou em uma das principais linhas de negócio do Master, com mais de uma centena de convênios pelo país.
Lima saiu do Master em julho para ter o seu próprio banco: o antigo Indusval, adquirido pelo Master e que, sob o comando de Lima, passa agora a se chamar Banco Pleno.
Levou ainda a marca e os principais convênios do Credcesta, cujas origens nebulosas remontam à privatização de uma rede de supermercados estatal da Bahia.
Privatizada pelo governo baiano a preço de banana, a rede estatal de supermercados Cesta do Povo foi arrematada por um laranja espanhol e se transformou na galinha dos ovos de ouro do Banco Master —e agora vai começar uma nova fase no Pleno.
A Cesta do Povo era uma herança dos tempos de inflação galopante. Foi fundada em 1979 pelo governador Antônio Carlos Magalhães com o intuito de interferir nos preços para tentar controlar a inflação.
A rede chegou a ser a maior da Bahia, com quase 300 unidades espalhadas pelo estado.

Em abril de 2018, o então governador da Bahia Rui Costa (PT), hoje ministro da Casa Civil, concluiu a privatização da Ebal (Empresa Baiana de Alimentos), estatal dona da rede de supermercados Cesta do Povo.
A Ebal chegou a dar prejuízos anuais da ordem de R$ 60 milhões e estancar essa sangria era uma prioridade da gestão de Costa.
Após duas tentativas fracassadas em quase três anos, o terceiro e último leilão atraiu um único proponente: o investidor espanhol Ignacio Morales, da NGV Participações.
Pauta sensível para um governo do PT, a privatização teve como foco a manutenção dos empregos. Restavam 49 unidades em 2018 e, conforme reportado pela imprensa na época, o comprador teria que manter pelo menos 30 lojas e cerca de 500 empregos.
No contrato que selou a venda, no entanto, não foi estabelecida nenhuma exigência no número de empregos a serem preservados.
Mas o filé mignon que despertou o apetite do mineiro Daniel Vorcaro, dono do Banco Master, não estava na Cesta do Povo, mas em um cartão de crédito consignado, o Credicesta, um dos primeiros cartões de benefícios para o setor público no Brasil, lançado em 2007.
O cartão foi criado para que os 380 mil servidores dos três Poderes na Bahia, entre ativos e inativos, fizessem compras no mercado estatal, com a fatura descontada na folha no dia do pagamento.
O cartão não tinha bandeiras como Mastercard ou Visa e não havia cobrança de juros.
Essas restrições no uso do cartão e exigências com a manutenção da operação dos mercados tornaram o leilão pouco atraente. Até que a SDE (Secretaria de Desenvolvimento Econômico), liderada pelo hoje senador Jaques Wagner (PT-BA), publicou alguns decretos e promoveu mudanças no edital original.
O governo baiano tornou o negócio muito mais atraente com quatro mudanças-chave:
- Assumiu todos os passivos da Ebal (trabalhistas, tributários e com fornecedores);
- Reduziu o preço mínimo do leilão de R$ 81 milhões para R$ 15 milhões;
- Estendeu de 5 para 15 anos o prazo de gestão do Credicesta;
- Transferiu o controle financeiro do cartão para o novo gestor.
Com isso, o risco ficou com o Estado — e o potencial de lucro, com o comprador.
Para coroar, um novo decreto eliminou as restrições do cartão —que poderia ser usado em qualquer comércio—, além de garantir uma exclusividade na margem de consignação de 30%.
O gestor do cartão estaria livre para cobrar juros, vender seguros e outros serviços.
O espanhol Morales arrematou a Ebal pelo preço mínimo sem nem mesmo ter acessado o dataroom do leilão, o espaço virtual com informações financeiras e confidenciais dos ativos que seriam leiloados.
Há mais de uma década, decisões judiciais com base no Código de Defesa do Consumidor e em uma circular do Banco Central afastam contratos de exclusividade no consignado, garantindo ao servidor ou pensionista o direito de escolher a instituição na hora de contratar um crédito na modalidade.
Uma concorrência maior se traduz em taxas de juros menores na ponta.
Mas na Bahia, sem concorrência, o Master cobra juros da ordem de 4,90% e 5,50% ao mês no Credcesta —valor considerado alto para um produto para o setor público, com garantia do desconto em folha.
No INSS, onde há um teto estabelecido pelo governo, os bancos não podem cobrar mais de 2,46% ao mês no cartão consignado ou cartão benefício.

O encontro entre o mineiro e o baiano
Velho conhecido nas rodas da política da Bahia, Augusto Lima entrou formalmente na sociedade com Daniel Vorcaro no Banco Máxima em 2019. Mas a ligação dos dois vem de antes.
Em julho de 2018, apenas três meses após o leilão de privatização da Ebal, o Máxima assume o registro do domínio dos sites Credicesta.com.br e Credcesta.com.br.
O registro em nome do Máxima foi realizado por Marcelo Maia Souza Marques no dia 12 de julho de 2018, conforme consta em uma consulta de domínio no site Hostinger.
Marques vem a ser também irmão do procurador-geral de Justiça da Bahia, Pedro Maia Souza Marques.
Ao se associar ao Máxima, Lima trouxe uma carteira de R$ 165,7 milhões e, principalmente, acesso a convênios com o setor público.
Curiosamente, ele não aparece como sócio nem da Ebal, nem da NGV, nem da PKL One —empresa que hoje gere o Credcesta. A PKL One é financiada por um fundo da Reag Investimentos, cujos cotistas são anônimos.
O acerto armado com o espanhol Morales para a compra da Ebal contou ainda com Joel Feldman, executivo baiano que na época era o presidente da Abase (Associação Bahiana de Supermercados). Feldman entrou no negócio para tocar a rede de supermercado propriamente dita.
Como detentora dos direitos de exploração comercial do Credicesta e da exclusividade da margem consignável, a Cesta do Povo precisava (e ainda precisa) se manter viva.
Apesar de não ter seu nome nos registros societários das empresas ligadas ao Credcesta, é possível rastrear as ligações de Lima com o negócio desde o seu início.
A NGV tem nos seus quadros Nayanne Britto, que atuou em um escritório renomado da Bahia, o Gabino Kruschewsky Advogados. André Kruschewsky, advogado de Lima, foi sócio do escritório por 17 anos antes de assumir o cargo de diretor jurídico do Máxima/Master, em dezembro de 2018.
André tinha ainda como sócio no escritório um outro procurador da Bahia, Eugênio Kruschewsky.
A Ebal também tem uma Kruschewsky em seus quadros: Luiá Kruschewsky Monteiro. Ela é também gerente jurídica e de compliance do Grupo Terra Firme, empresa de Augusto Lima. Uma outra funcionária de Lima no mesmo grupo, Andrea Lima Novaes, está à frente da PKL One.
Com a venda para o BRB, a PKL One e todos os convênios a ela associados, como o da Bahia, ficarão com Augusto no Banco Pleno.
As ligações de Lima com o Credicesta, no entanto, só se tornam públicas a partir de 2021, quando Vorcaro concedeu uma série de entrevistas anunciando que o Máxima, que ele adquiriu em 2019, passaria a se chamar Master.
À repórter Consuelo Dieguez, da revista piauí, Vorcaro descreve o amigo e sócio Augusto Lima como um empresário que "tinha uns dois fundos na Bahia" e que "conseguira um negócio interessante na área de crédito consignado".
Vorcaro comete uma incorreção: diz à revista que conheceu Lima apenas em meados de 2019 —mas, um ano antes, já havia obtido o registro dos domínios da Credcesta na internet.
A exclusividade do Credicesta —que ao entrar para a carteira do Master virou Credcesta— garantiu boas margens ao Master.
O banco rapidamente expandiu sua atuação no consignado público junto a prefeituras e governos do Norte e Nordeste, a ponto de o produto se transformar na linha mais importante da carteira de crédito da instituição.
Até 2018, o banco de Vorcaro não tinha nenhuma operação de crédito consignado. Ao final de 2023, a carteira do consignado já estava em R$ 2,5 bilhões, com a inclusão de contratos junto ao INSS e também aos governos estaduais de Rio, Minas e São Paulo.
Em alguns estados, como Rio, Amazonas e Amapá, Lima e Vorcaro conseguiram garantir não apenas contratos vantajosos para empréstimos com desconto na folha do setor público, como também capitalizaram o banco vendendo títulos para os fundos de pensão dos servidores.
Hoje a Credcesta soma 144 contratos firmados com prefeituras, governos estaduais e outros entes públicos pelo país.
Além do governo da Bahia, o banco tem exclusividade garantida por decreto em pelo menos dois municípios do estado (Lauro de Freitas e Vitória da Conquista, ambos governados pelo União Brasil).
Há ainda cerca de 60 contratos com estados e municípios, governados pelos mais diferentes partidos, onde o banco opera sozinho na prática. Concorrentes tentam entrar, mas esbarram em entraves burocráticos.
No ano passado, alguns meses antes do anúncio de um acordo de venda do Master para o BRB, o Master vendeu R$ 8 bilhões em carteiras de crédito em diferentes modalidades para o banco estatal brasiliense.
Com isso, a carteira do consignado do Master recuou para R$ 919 milhões.
Augusto Lima e o Master foram procurados pela reportagem, mas não se manifestaram.
O ministro Rui Costa e o senador Jaques Wagner também foram procurados para comentar as decisões durante a privatização, mas quiseram se manifestar. Ignacio Morales e Joel Feldman, executivo ligado à Ebal, não retornaram os contatos.
Venda para o BRB
O BRB anunciou a compra de 58% do Banco Master no final de março, em uma operação que envolvia originalmente R$ 50 bilhões em ativos —deixando de fora R$ 23 bilhões considerados problemáticos e de baixa liquidez.
Em meio a negociações com o Banco Central para a aprovação da operação, essa proporção se inverteu e o BRB estaria negociando ficar com pouco menos de R$ 25 bilhões em ativos —deixando R$ 48 bilhões de fora.
Além da definição dos ativos para a fusão com o BRB, a operação selou a saída de Augusto Lima da sociedade.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.