Prisão de Bolsonaro é precipitada, diz ex-premiê português José Sócrates
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Um texto do ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates (2005-2011) viralizou em grupos de WhatsApp de políticos na semana passada. Ele elogiava a posição do Brasil ante o tarifaço imposto por Donald Trump.
As mensagens de Sócrates ao Brasil foram lidas nos gabinetes do governo Lula (PT) como incentivo para resistir à pressão norte-americana.
O português diz, em entrevista ao UOL, que a crise com Washington é uma chance de o Brasil se consolidar como potência, liderar o Sul Global e influenciar a Europa.
Apesar de afirmar que não há como negociar com um país que quer interferir na Justiça de outro, ele tem críticas à atuação do ministro do STF Alexandre de Moraes.
Entende que a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é precipitada, que Moraes age de forma "inquisitorial" e que é estranho parcelas da esquerda o transformarem em ícone.
O ex-premiê pelo Partido Socialista, sigla que deixou em 2018, enfrenta julgamento em Portugal por supostos crimes de corrupção, fraude fiscal e lavagem de dinheiro durante seu governo —acusações que nega.
Presença frequente no Brasil, Sócrates lançou aqui dois livros pela editora Contracorrente: "Só Agora Começou" e "Crônicas de Tempos Sombrios - os Anos Bolsonaro".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida no estúdio do UOL, em São Paulo.

Tarifaço: oposição e governo devem se unir contra "ameaça externa"
Vejo por aí alguns falando em negociação. Mas que negociação? A questão que os EUA colocaram na mesa não tem nada a ver com economia. Querem interferir na Justiça brasileira.
Imagine o Brasil dizer "sim, senhor, vamos telefonar para o STF" e falar aos juízes "desculpem, mas vocês têm que parar com isso porque nossos vizinhos do Norte não gostam".
Quando um país como o Brasil é tratado desta forma, espera-se que oposição e governo se juntem para enfrentar a ameaça externa.
Quanto a Moraes, eu compreendo a polêmica, mas isso é problema dos brasileiros, não dos americanos. Mesmo quem está contra o ministro deveria se pôr ao lado do governo dizendo: "Isso é conosco".

"Não gosto das atitudes de Alexandre de Moraes"
Com devido respeito, não gosto das atitudes dele. Tenho resistência a aceitar que seja ao mesmo tempo juiz e investigador. É questão de civilização: separação do processo penal inquisitorial do processo penal acusatório.
No processo inquisitorial, quem acusava também julgava. Isso acabou. Os sistemas penais modernos, próprios da democracia, separam quem acusa de quem julga.
Hoje há uma mistura entre quem acusa e quem julga que é duvidosa. A autoridade do juiz deriva do fato de estar acima das partes. [Essa separação] também não acontecia na Lava Jato.
Estou de acordo com a defesa que Moraes fez do sistema eleitoral. Mas esse mérito não dispensa que olhemos de forma crítica para sua atuação.
Nunca tive simpatia por suas decisões e seu pensamento. Lembro-me bem do que dizia em 2015 sobre a Lava Jato [quando a apoiava]. E de repente vira um ícone da esquerda.
A esquerda arranja os seus ícones com muita facilidade. Não pertenço a essa esquerda que muda de opinião em relação às questões básicas, as das liberdades.
Havia uma esquerda que achava que essas liberdades eram burguesas. Até que o Lula foi preso e o PT sentiu na pele que as liberdades individuais são fundamentais.

Prisão de Bolsonaro é "desproporcional"
O poder judicial deve ser sóbrio e não reagir à primeira provocação. A prisão [domiciliar] de Bolsonaro é uma precipitação, uma atitude desproporcional.
A ordem [de usar redes sociais] foi desrespeitada, mas justifica metê-lo na prisão?
Fui muito crítico de Bolsonaro, achei o governo dele horrível. Mas acho um erro a esquerda ficar satisfeita com a prisão. Essa beligerância da política brasileira não é boa.
"Brasil não aceitou a humilhação"
A União Europeia ajoelhou perante os EUA, enquanto o Brasil não fez isso. O Brasil resistiu. Só há humilhação quando houver humilhados.
Para haver humilhados é preciso que estes aceitem a humilhação. O Brasil não aceitou. O país tem um longo passado em que pode reclamar de ter sido humilhado por potências europeias. Mas nunca humilhou ninguém.
Por isso, tem todas as condições para reagir a esta imposição sem sentido e racionalidade econômica. A razão de ser das tarifas é assumidamente política.
Usar um instrumento comercial como um instrumento de política externa é uma desgraça. A primeira vítima desta atuação é a Ordem Ocidental, são os EUA.
Quem criou o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial foram os EUA e a Europa. A atuação dos EUA é daqueles que sentem que estão perdendo o jogo, mesmo tendo criado as regras.
"Atitude brasileira fala para o mundo"
Quem olha para a política externa brasileira percebe que o país a conduz com sobriedade e moderação, sendo alvo de uma agressão injustificada.
Se houvesse razão econômica, éramos capazes de compreender. Mas quem tem superávit são os EUA. Quem poderia se queixar era o Brasil.
O Brasil está vendo muito bem esta oportunidade para se colocar como potência que ocupa espaço legitimamente. Que não aceita que o direito internacional seja tirado da mesa para ser submetido pela força e brutalidade.
Esta atitude brasileira fala para o mundo. É engano pensar que o Brasil se comporta para ser apreciado no chamado Sul Global.
Metade do Ocidente olha para o Brasil com a expectativa de que não se não ajoelhe porque a posição americana é repulsiva. Que país deseja interferir na política de outro para exigir que sua Justiça mude de opinião? Não me lembro de precedentes. Isso é chocante.
"Falta ao Brasil se convencer de que é uma potência"
Metade dos EUA não quer ver o Brasil humilhado e olha com admiração para a posição digna de como Lula conduz a questão. Se há uma coisa que os americanos detestam é o servilismo.
A tradição política dos EUA é valorizar autonomia individual. Não há respeito pela covardia.
O Brasil é uma potência. O que falta ao país é convencer os brasileiros disso. O Brasil tem 220 milhões de pessoas. Isso lhe dá especial responsabilidade.
Por que brasileiros em Portugal votam na extrema direita
São os imigrantes que acham que o discurso contra a imigração é com os outros. Consideram-se imigrantes de primeira, contra aqueles que não têm ligação cultural com Portugal, como os da África e do Oriente.
Quem assiste à discriminação em Portugal ainda não viu nada. Está só no começo. Vem aí a lama. Começa com os discursos, depois vem a ação [o pacote anti-imigração recém-aprovado no Parlamento português]. É um fenômeno que vai se acentuar e ao qual o Brasil deve estar muito atento.
"Declínio" da Europa
De todos os atores políticos mundiais, a Europa foi quem mais perdeu nos últimos tempos. Construímos o chamado modelo social europeu [sistemas públicos de educação e saúde]. Falávamos disso com orgulho. Tudo acabou em 2008, com a crise financeira.
A extrema direita ajudou nisso dizendo que os auxílios sociais eram estímulo à preguiça —o que vocês ouviram sobre o Bolsa Família.
A Europa era o parceiro júnior dos EUA. Éramos o "soft power". Éramos aquele ator político para o qual todo o mundo se podia virar na expectativa de que dali viria a defesa do direito internacional, do multilateralismo, das instituições. Éramos os "nice guys".
Os EUA tinham inclinação a recorrer a soluções de força. Nós [Europa] éramos a via diplomática. De repente, passamos a não ser nada.
O último momento em que a Europa brilhou foi quando nos opusemos à Guerra do Iraque. Ninguém ocupa esse lugar. Ficou vazio. A Ordem Ocidental, que era estável, está em declínio. Está tudo em mutação.

O papel da China na economia global
Nos últimos 40 anos, houve uma transferência da riqueza mundial do Ocidente para o Oriente. Vejo nos EUA e na Europa incapacidade para aceitar isso.
Se a China foi a grande vencedora da globalização, isso só pode ter sido por batota [fraude], na opinião do presidente americano. Mas não foi isso.
A China fez bem o seu trabalho e ganhou a batalha da globalização com as regras e as instituições ocidentais. É uma ordem ocidental. A atuação dos EUA deslegitima essa ordem. Sua liderança está sendo posta em causa, porque ninguém a leva a sério.
O mundo olha para os EUA como alguém que está esperneando para conseguir manter a posição de liderança.
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