Cartórios avançam em correção de certidão de óbitos da ditadura militar

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A correção de certidões de óbitos e desaparecidos da ditadura militar está entrando em fase final, após decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de dezembro de 2024. As retificações acontecem após 11 anos da orientação dada pela CNV (Comissão Nacional da Verdade).
O que aconteceu
Certidões de óbito de 434 mortos e desaparecidos na ditadura militar precisavam de correção, segundo o CNJ. O Conselho determinou, em 2024, que o novo documento deve mostrar que o Estado brasileiro foi responsável pela morte. Em janeiro, o CNJ formalizou ao Operador Nacional de Registro Civil de Pessoas Naturais (ONRCPN) a medida que autoriza a modificação da causa da morte na certidão de óbito dessas pessoas.
Número de mortes foi apontado no relatório da CNV, finalizado em 2014. A comissão, que durou dois anos e sete meses, reconheceu as mais de 400 mortes no relatório final entregue à então presidente Dilma Rousseff (PT).
A retificação das certidões de óbito foi uma das 29 orientações que a comissão fez. Antes da nova decisão, a lei anterior, sancionada em 1995, fazia com que certidões de óbito reconhecessem como mortas "as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988".
Cerca de 300 retificações foram feitas até o começo deste mês. A estimativa é de Gustavo Fiscarelli, vice-presidente da ONRCPN e secretário nacional da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), que reúne os cartórios do Brasil.
A certidão de óbito do ex-deputado federal Rubens Paiva foi uma das primeiras a serem corrigidas. A história dele ganhou ainda mais visibilidade com o filme "Ainda Estou Aqui".
[Morte] não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.
Causa da morte nas certidões de óbito corrigidas
O ministro Luís Roberto Barroso presidente do CNJ, falou em "reparação moral" no caso dos mortos e desaparecidos da ditadura. "Embora nunca tenha havido um pedido formal de desculpas, como deveria ter havido, pelo menos nós, do CNJ, tomamos as providências possíveis de reparação moral dessas pessoas que foram perseguidas e sofreram o desaparecimento forçado", disse durante a aprovação do ato, em dezembro de 2024.
Cruzamento de dados acelerou o processo
Cruzamento de dados apontou que cerca de 330 certidões de óbitos estavam prontas para serem retificadas nos cartórios. Fiscarelli afirma que as localizações das certidões possibilitaram que ofícios fossem enviados aos cartórios, em lotes, para realizar as correções.
Famílias ou interessados pelas 434 certidões devem ter acesso aos documentos atualizados sem procurar cartórios. Na comunicação encaminhada pela Arpen aos cartórios, foram apontadas especificamente quais certidões devem ser retificadas, sem necessidade de pedido por parte de familiares. Com a retificação concluída, os documentos irão para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Com isso, o prazo para as retificações terminou no dia 1º de julho. Todos os cartórios detentores dos registros foram notificados das correções até o fim de maio.
Mês de julho servirá para checar se todas as certidões de óbito retificadas estão corretas. De acordo com a Arpen, a expectativa é de que até o fim do mês haja "entre 70% e 80%" dos documentos já retificados, com as certidões prontas para serem disponibilizadas à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Certidões não encontradas
Das 434 certidões de óbito, cerca de 80 não foram encontradas, aponta Fiscarelli. "Nestes casos, teremos que disparar as buscas manuais junto aos cartórios antes de proceder à determinação da lavratura para evitar o duplo registro."
Arpen afirma que há casos sem registro original de óbito —o que levaria a fazer um novo registro. "Atualmente, estamos em uma etapa complementar de verificação manual dos casos remanescentes nos quais não foi possível localizar a certidão original de óbito —nem pela Central de Informações do Registro Civil nem pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos", diz Fiscarelli. "Esses casos indicam a necessidade da criação de novos registros, e não de simples retificação."
Por ser um trâmite diferente, casos de novos registros terão "cronograma próprio". "Os casos que envolvem a criação de novos registros seguirão um cronograma próprio, em uma segunda fase do processo. A previsão é que todo o trabalho seja concluído até o final de 2025, conforme as determinações do CNJ", diz Fiscarelli. Contudo, ele calcula que o processo completo deve terminar até dezembro, incluindo correções e novos registros.
Filme foi importante para correções, diz historiadora
Ganhador do Oscar de Melhor Filme Internacional, "Ainda Estou Aqui" mostrou o que foi a ditadura, analisa professora. "O filme teve um papel muito importante porque ganhou notoriedade. Talvez a equipe do filme não tivesse noção do que iria acontecer. O filme deu uma dimensão histórica muito grave", analisa Maria Aparecida de Aquino, professora titular aposentada da Faculdade de História da Universidade de São Paulo.
Mais do que corrigir as certidões, o Estado assume a "culpabilidade" pelo que aconteceu na ditadura, afirma ela. "Isso é uma representação de que o Estado assume a culpabilidade sobre o que aconteceu a partir de 1964", diz Aquino. "Tem uma força muito grande, porque apresenta uma culpabilidade do Estado. O Estado afirma que, depois de 1964, cometeu uma série de crimes. Tem um peso muito forte, muito grande."
Com as certidões, Brasil pode fazer uma reflexão do que foi o período, diz Aquino. "Quando você vê algumas manifestações, como o 8 de Janeiro, alguns colocam: 'Que saudade dos militares'. Quando você vê isso, você vai ao encontro de uma realidade nossa, que é a de não fazer a reflexão do que foi a ditadura. As pessoas [que pedem a ditadura de volta] não sabem o que foi isso."
Comissão investigou violações dos direitos humanos
Instituída em 2012, a Comissão Nacional da Verdade apurou fatos ocorridos em 1946 e 1988. Os trabalhos foram encerrados em 2014 e, ao todo, 377 pessoas envolvidas em violações dos direitos humanos foram identificadas. Militares, médicos-legistas e diplomatas são citados, entre outros funcionários públicos.
Pouco mais de um terço das vítimas reconhecidas pela CNV eram estudantes. Estavam nessa condição 152 dos 434 mortos e desaparecidos identificados pelo grupo. Operários, camponeses e até militares são outras ocupações recorrentes entre aqueles que foram alvo da repressão ao longo da ditadura.
Sete conselheiros indicados pela então presidente Dilma Rousseff (PT) integraram o grupo. Com formação em áreas como direito e ciência política, os cinco homens e duas mulheres reuniram documentos, realizaram entrevistas e promoveram atividades com o objetivo de esclarecer o que aconteceu durante a ditadura.
Comissão não teve caráter punitivo. À época, representantes do governo afirmaram que a prioridade era esclarecer os fatos ocorridos para "aprimorar a democracia". A adoção do formato foi estratégica, visto que o grupo trabalhou sob pressão dos militares, que são contra investigações ligadas a esse período.
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