Policiais que denunciaram assédio relatam perseguição: 'Me chamam de X9'
Ler resumo da notícia
Uma em cada quatro pessoas que denunciam crimes sexuais nas forças de segurança sofreu ou sofre com a perseguição institucional, indica levantamento inédito feito pelo UOL.
Em números absolutos, a reportagem identificou 27 relatos de vítimas que disseram terem sido perseguidas no ambiente de trabalho após relatar o assédio. Foram identificados 41 agentes que passaram por tratamento psicológico ou psiquiátrico.
A reportagem analisou casos envolvendo 107 vítimas e 51 servidores denunciados. Apenas 22 acusados sentaram no banco dos réus, com 12 condenações e dez absolvições.
A pesquisa "Assédio nas polícias brasileiras: o efeito do silenciamento", do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, também indica uma cultura de omissão e abandono.
O estudo da pesquisadora Kerlly Santos ouviu 64 profissionais das forças de segurança, e 75% delas disseram ter sofrido retaliação. Dezessete pessoas relataram ter virado alvo de investigação interna após a denúncia, como sindicância ou processo administrativo.

'Fiquei isolada'
A investigadora Paula* disse ter sido assediada sexualmente por cinco anos pelo delegado Newton de Calasans Júnior em uma delegacia no interior de São Paulo.
Ela só decidiu denunciá-lo em julho de 2019, quando já tinha crises de pânico só de ouvir a voz dele.
"Quando ficou sabendo da denúncia, ele chegou cantando pneu no estacionamento da delegacia. E gritava: 'Vem me cumprimentar! Mas não me abraça porque agora qualquer coisa é assédio".
Ela disse que, após o caso vir à tona, passou a sofrer perseguição dos próprios colegas de trabalho.
Quando saí da delegacia para trabalhar em outra cidade, o pessoal me recebeu como X9. Para eles, eu era dedo-duro. Quase todos os dias, os pneus da minha moto eram cortados. Nos corredores, ouvia comentários do tipo: 'E aí? Vai derrubar quem agora?'. Fiquei isolada. Paula investigadora da Polícia Civil de SP
Newton de Calasans Júnior foi acusado por uma das suas três vítimas citadas no processo de trabalhar alcoolizado.
"Nada o intimidava. Ele bebia e ia trabalhar com odor de álcool. Outras funcionárias também sofriam assédio e tinham medo de denunciar", disse outra vítima.
Ele foi condenado por importunação sexual em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a três anos e sete meses em regime aberto, com pena convertida por prestação de serviços à comunidade.
O advogado Alexandre Valverde, que representa o delegado no processo criminal, alegou inocência do seu cliente. Mas disse que não irá fornecer detalhes sobre o caso porque o processo tramitou em segredo de Justiça.
Ele também foi condenado na esfera cível a pagar indenização para duas vítimas. A pena para cada servidora foi reduzida de R$ 1 milhão para R$ 200 mil em segunda instância. Procurado, o advogado que o representa no processo cível não respondeu aos questionamentos.
Acima da lei?
Quando já era alvo de investigação, um delegado se comportava como se estivesse acima da lei em um ambiente onde as vítimas também precisavam conviver com a perseguição institucional.
O delegado Aderson Moises Vieira descumpriu ordem judicial e foi três vezes à sede da Polícia Civil em Tupi Paulista (SP), onde estavam uma das vítimas e testemunhas de crimes sexuais atribuídos a ele.
Em julho de 2024, foi condenado a quatro anos e oito meses de reclusão por assédio sexual e importunação sexual contra quatro policiais civis do sexo feminino.
O advogado Cícero Ferreira da Silva, que o representou em uma audiência, disse que o delegado foi julgado à revelia porque não compareceu ao Tribunal de Justiça para se defender.
Os delegados Aderson e Newton se enquadram no perfil analisado pelo UOL, que indica que 97% das vítimas foram assediadas por pessoas em cargos de chefia.

Tratadas como criminosas
Jaqueline Rodrigues, investigadora da Polícia Civil de Minas Gerais, disse que passou a ser alvo de perseguição institucional após denunciar o colega Geraldo Modesto Brum em junho de 2020.
De abril de 2023 a maio deste ano, ela disse que passou a ser alvo de processos administrativos "sem fundamento", só para abalar a sua credibilidade. Já são mais de 30 ações, segundo a policial.
Em uma delas, mantida sob sigilo na Justiça, há um pedido para que ela perca seu porte de arma, ainda que tenha medida cautelar de proteção contra o policial que ela acusa.
Estou com medo de ser morta e minha história morrer comigo. Eu sou a prova de que nenhuma mulher pode denunciar assédio na Polícia Civil de Minas Gerais. Há uma inversão de valores, fazendo com que as vítimas sejam tratadas como criminosas. O assédio sexual nas polícias é sistemático e, na maioria dos casos, há impunidade.
Jaqueline Evangelista Rodrigues
Geraldo Modesto Brum foi condenado em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais a 1 ano e 2 meses.
A pena foi convertida em prestação de serviços comunitários. Ele segue trabalhando normalmente e ainda pode recorrer da decisão.
O advogado Thiago Sellera, que representa o investigador, diz que ele é inocente e responsabiliza a vítima pela denúncia. "Ela é uma pessoa problemática, que está assumindo uma versão de vitimismo. O que ela busca é holofote."
Procurada, a Polícia Civil de Minas Gerais negou perseguição institucional e disse que "todas as denúncias apresentadas pela servidora são rigorosamente apuradas pela corregedoria".

'O que resta é a aposentadoria'
A ex-soldado Jessica Paulo do Nascimento, da PM de São Paulo, disse que decidiu sair da corporação meses após denunciar o coronel Cássio Pereira Novaes por assédio sexual em 2021.
A ex-PM disse que passou a receber advertências sem fundamento, o que teria motivado a sua desistência de seguir carreira na corporação.
Ao denunciar um oficial da PM, fiquei marcada com aquele 'x' nas costas. Senti que a intenção era inverter a situação e me deixar com a ficha marcada para afetar a minha credibilidade.
Jessica Paulo do Nascimento
Jessica agora busca indenização de R$ 3,5 milhões em outro processo na Justiça por danos morais e materiais.
O advogado Mauro Ribas, que defende o coronel Cássio Novaes, disse ter recorrido à condenação para provar a inocência do oficial da PM de São Paulo.
Violência estatal
Especialista em casos de violações de direitos humanos, a advogada Talitha Camargo da Fonseca diz que as vítimas também precisam enfrentar a violência estatal ao encontrarem na tentativa de volta ao trabalho um ambiente tóxico, que deveria acolhê-las.
Segundo ela, o que resta para a servidora que sofre violência reiteradamente é a aposentadoria integral.
"Só que a maioria dessas vítimas é formada por mulheres jovens, obrigadas a abreviar a carreira que escolheram."
'Não são vistas como vítimas'
A juíza Mariana Aquino, da Justiça Militar do Rio de Janeiro, disse que a perseguição institucional faz parte de casos envolvendo denúncias por assédio sexual nas forças de segurança.
"É muito difícil denunciar, porque as mulheres sabem que não são vistas como vítimas. Elas sabem que vão ser julgadas, mesmo quando são atacadas. É um meio corporativista e machista, onde há dificuldade para abrir investigação com perspectiva de gênero".
Nos últimos cinco anos, Aquino vem divulgando uma cartilha com informações sobre crimes contra a dignidade sexual nos quartéis e em organizações militares para conscientizar os comandantes.
Apesar das dificuldades, ela diz ver "amadurecimento institucional", embora reconheça que o assunto ainda precisa ser tratado com mais seriedade pelas forças de segurança.

O Caso Rafaela Drummond
O caso envolvendo a suspeita de assédio contra a escrivã Rafaela Drummond, encontrada morta em casa após cometer suicídio em junho de 2023, foi arquivado pela Justiça. Mas deixou como legado a luta contra crimes sexuais nas instituições policiais.
Aldair Drummond, pai de Rafaela, abriu um instituto para oferecer suporte psicológico às vítimas desse tipo de violência.
"Após a morte da minha filha, outras mulheres passaram a ter coragem para denunciar. O maior problema é que muitos agressores continuam impunes dos crimes que cometeram. E a vítima fica desacreditada".
Em dezembro de 2024, foi aprovada a Lei Rafaela Drummond, como ficou conhecido o projeto de lei complementar que prevê medidas de combate e punição para servidores que praticarem assédio contra colegas de trabalho.
No dia 10 de julho, ocorrerá uma audiência pública na Câmara dos Deputados em Brasília para debater o combate ao assédio e à violência de gênero nas forças policiais.
"A cultura machista presente em algumas instituições policiais contribui para a normalização dessas condutas, dificultando que as vítimas se sintam seguras para denunciar", diz o documento da comissão de legislação participativa.
*nomes alterados para proteger a identidade das vítimas
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.