Na manhã do dia em que tirou a própria vida, Vinícius Marinho Ferreira fez 13 apostas de R$ 1.000 cada, uma por minuto, no site Bet365. Perdeu todas.
Dois anos depois, a família de Vinícius, morto aos 28 anos, entende que ele estava em surto. A compulsão por jogar já durava um ano e o fez perder a casa, a esposa e a confiança de quem convivia com ele.
Como muitos brasileiros, ele estava obcecado em apostas e chegou ao limite.
Em países que vivem uma explosão de bets similar à do Brasil, cresce o número de jogadores compulsivos e de quem comete crimes e violências devido ao vício.
Análises nesses países indicam que viciados em jogos pensam mais em suicídio e praticam mais crimes do que quem joga apenas casualmente.
Entre os delitos estão pequenos furtos, roubo, homicídio, latrocínio (roubo seguido de morte), agressão e invasão de residência.
O UOL passou três meses avaliando ações e processos e ouvindo famílias, médicos, pesquisadores e juristas. O cenário preocupa.
Levantamento feito pela reportagem no site Similarweb entre junho e setembro indica que, em seis das dez casas de apostas online mais acessadas do mundo, o maior tráfego de usuários vem do Brasil — responsável, sozinho, por 38% desses acessos.
"Nunca vi nada parecido", afirma o carioca Roberto*, secretário do escritório de serviços dos Jogadores Anônimos e participante do grupo desde a primeira reunião no Brasil, em 1993.
"Em 11 meses, abrimos nove novos JAs em cidades diferentes. Diria que entre 70% a 80% dos participantes hoje têm problemas com jogos online."
Quem não procura ajuda, dizem, acaba em "cadeia ou caixão".
Roubo e tentativa de assassinato
No começo de 2023, Fátima* passou 40 dias sem sair da cama, depois de quase ser assassinada pelo ex-marido da sobrinha. O caso ocorreu em Itaberá (SP).
Luiz Carlos de Proença, 32, a havia procurado oferecendo ajuda para sacar dinheiro que ela teria a receber do governo.
Em vez disso, ele pegou o celular da vítima, entrou num aplicativo de banco, fez um empréstimo de R$ 7.535 e transferiu o dinheiro para a própria conta. Depois, tentou sufocá-la, usando um saco plástico. Não conseguiu, e ela o denunciou.
A sobrinha de Fátima disse que Luiz Carlos estava "completamente endividado em razão de ser viciado em jogos online de apostas". Ele foi condenado a 15 anos de prisão.
A reportagem procurou a defesa de Luiz Carlos, mas ela não foi encontrada até a publicação da reportagem. Caso haja retorno, o texto será atualizado.
"O jogo patológico está ligado à falta de noção da gravidade dos impulsos. A pessoa faz o que for para ter o dinheiro e o prazer de jogar de novo. Muitos pacientes só se dão conta disso quando sobrevivem a tentativa de suicídio ou vão presos", afirma a psiquiatra forense Gabrielle Foppa, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
"Estamos na fase dos chamados 'casos sentinelas', prenúncio de uma avalanche. Leva tempo para aferir, mas os crimes e suicídios decorrentes dessa epidemia vão crescer muito", diz Ronaldo Laranjeira, professor titular de psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Sentinela é um termo da epidemiologia e tem relação com o guarda, o sentinela, aquele que vai na frente e vê o inimigo primeiro.
Pessoas nessa situação tomam decisões impulsivas. Deixam de pagar o aluguel, de comprar o básico para a casa e podem caminhar para atividades ilícitas. A cada mês vamos ter mais e mais casos de desesperados.
Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp
'Lei não vai segurar nada'
Maior referência em jogo patológico do Brasil, o psiquiatra Hermano Tavares o compara à dependência química.
A única diferença é a aposta ser induzida pelo prazer derivado do ato, não por uma substância química. As consequências são similares.
"O jogador compulsivo tem até abstinência; 25% apresentam tremores, sudorese, arrepios", diz Tavares, fundador em 1998 do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico da USP (Universidade de São Paulo).
O endividamento é a dificuldade mais óbvia, mas Tavares ressalta que "nem de longe" é a única.
Desgaste de relações pessoais, profissionais e afetivas, desmoralização, prejuízo grave para a própria autoestima e autoimagem. Isso tudo muitas vezes leva a sentimentos depressivos e desejos de morte. Hermano Tavares psiquiatra
Segundo Tavares, 80% dos pacientes que o procuram confessaram já ter contemplado a ideia de encerrar a vida, e metade já se envolveu com alguma atividade ilegal para sustentar o jogo.
"Para a esmagadora maioria, isso é consequência da dependência. Só 2% já praticavam crimes antes de apostar."
O ambulatório da USP já atendeu cerca de 3.000 pacientes e está com agenda cheia.
Até 2018, quando o então presidente Michel Temer autorizou as apostas no Brasil, viciados em jogos online eram casos isolados. Hoje, correspondem a dois terços dos atendimentos.
Para Tavares, que participa de audiências no Senado e no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o tema, a regulamentação atual não freará o problema.
"Essa lei que está aí e a que entrará em vigor em 2025 não vão segurar nada. O ideal seria uma legislação tão sólida e restritiva quanto a que foi feita para o cigarro, sem publicidade e com venda controlada."
Procurado pela reportagem, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, representante de 75% do mercado de apostas esportivas online no Brasil, disse em nota que "defende integralmente a regulamentação do setor que entra em vigor em 1º de janeiro de 2025".
Afirma que a lei "trará elementos fundamentais para proteger os apostadores e combater o vício", como "bloqueio de cartão de crédito para pagamento de apostas", "manual para jogar com responsabilidade" e "reconhecimento facial, que impede apostas por menores de idade".
Autossequestro para tirar dinheiro da família
Agir por impulso e desespero foi a explicação dada à polícia por Dayverd da Silva, 21, de por que inventou o próprio sequestro.
O objetivo era extorquir a família se passando pelo sequestrador e conseguir devolver R$ 40 mil à empresa do sogro, onde trabalhava. Ele roubou o valor do caixa e o liquidou em um dia de apostas online.
O caso aconteceu em janeiro, no Rio. A reportagem teve acesso ao processo e à confissão de Dayverd.
Dayverd e seu advogado não quiseram falar com o UOL. Familiares também não responderam às mensagens e ligações.
No processo, ele disse à polícia ter contratado um morador de rua para bater nele com uma vareta de goiabeira e tirar fotos das lesões.
Foi para uma comunidade no Complexo do Alemão e mandou imagens e mensagens para uma sobrinha, passando-se pelo sequestrador e pedindo R$ 100 mil de resgate.
No dia seguinte, sem resposta, baixou o valor para R$ 40 mil, mas se arrependeu. À tarde, ainda se passando pelo suposto criminoso, avisou que seria liberto sem pagamento.
A família já tinha avisado a polícia, que procurou Dayverd para investigar. Na delegacia, ele confessou o crime. A punição: doar R$ 3.000 a uma instituição de caridade.
Uma mãe contra as bets
Depois de quase perder o filho em uma tentativa de suicídio em 2021, a dona de casa Sandra Filgueiras, 57, abriu processo contra a Sportingbet.
Sandra alega que cancelou a conta do filho e explicou a situação dele à plataforma, mas o perfil voltou a ser ativado, e o rapaz recebia bônus para voltar a jogar.
Ele já tinha perdido R$ 1 milhão em apostas — dinheiro ganho como prêmio em competições de pôquer.
Meu filho tem uma doença séria, é viciado em jogos, e isso o levou à depressão. Quando tudo aconteceu, passei muitas noites chorando de soluçar, mas entendi que preciso lutar. Sandra Filgueiras dona de casa
No final de outubro, o Ministério Público da Bahia se manifestou pela procedência pela ação de danos morais. O valor pedido é de R$ 36 mil, valor idêntico ao que foi perdido desde que a mãe solicitou o cancelamento da conta do filho.
Em nota enviada à reportagem, a Sportingbet afirma que "lamenta o ocorrido" e que a "preocupação principal é com o bem-estar dos usuários e em garantir que nossos apostadores encontrem sempre um ambiente seguro".
"Embora entendamos que agimos dentro dos padrões legais de proteção ao consumidor e de jogo responsável, reconhecemos que havia espaço para melhorar a comunicação das operadoras com seus clientes."
Um dos advogados de Sandra, Arthur Reis afirma que processar as casas de apostas é direito do consumidor e de quem se sentir lesado pela empresa.
"Se várias pessoas entrarem com ações, isso pressiona a Justiça a começar a trabalhar em favor dos usuários. É um desafio, mas precisa ser pautado", opina Reis.
O advogado da família de Vinícius, que pede R$ 3,8 milhões após seu suicídio, diz o mesmo. "Todos que sofrem danos, objetivos ou subjetivos, têm o direito de ser indenizados", diz Luiz Carlos da Silva.
Agora, o objetivo de Sandra é depor na CPI das Bets para fazer com que o governo endureça as leis.
"Não dá para um viciado ficar recebendo mensagem de bônus da bet, como aconteceu com meu filho. Parece corriqueiro mas, para um viciado, é um gatilho perigoso."
A CPI das Bets no Senado começou em 12 novembro. A relatoria ficou a cargo da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que tem levantado a bandeira de uma maior atenção ao crescimento e expansão das casas de apostas no país.
A parlamentar pretende convocar envolvidos com casas de apostas, inclusive influenciadores digitais como a advogada Deolane Bezerra, presa e solta em setembro por suspeita de envolvimento com lavagem de dinheiro ligada a Esportes da Sorte.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das pessoas citadas
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Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
Para casos de jogo patológico, uma das orientações é buscar grupos de apoio, como os seguintes:
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