
Apontado como a principal preocupação dos brasileiros, o tema da segurança pública está na boca de prefeitos de todo o país, que passaram a turbinar guardas municipais com fuzis, pistolas automáticas, grupos de elite e viaturas com características de polícia militar.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 23,7% dos municípios brasileiros (1.322) tinham suas próprias tropas de segurança em 2023, data da última Pesquisa de Informações Básicas Municipais.
Cerca de 30% dessas guardas são armadas —o número aumenta a cada ano.
No estado de São Paulo, onde há 222 grupos de guardas municipais segundo a AGM Brasil (Associação dos Guardas Municipais do Brasil), cidades como Guarulhos, Osasco, São Bernardo do Campo, Campinas e a capital armaram suas guardas com carabinas e fuzis.

O efetivo de guardas também impressiona: em 2023, as prefeituras comandavam mais de 101 mil homens —quase um quarto do número de policiais militares (404 mil), mostra estudo do Fórum Brasileiro da Segurança Pública.
O que também só cresce é o gasto das prefeituras com a área.

A participação municipal no financiamento da segurança subiu de 8% para 11% entre 2019 e 2023.
As investidas dos prefeitos numa área que compete mais aos governos estadual e federal foram criticadas pelo secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo.
Em evento promovido pela OAB-SP em abril, o ex-procurador-geral de São Paulo defendeu a atuação das guardas, mas criticou o que chamou de "populismo".
Que os nossos prefeitos parem de fazer populismo, parem de usar a segurança pública como plataforma política e parem de dizer que só eles vão resolver a segurança pública. Mário Sarrubbo secretário nacional de Segurança Pública
Dessa disputa de competências, até cidades pequenas querem participar. Águas de São Pedro, com 2.780 moradores, não registra um homicídio doloso desde 2001, quando o governo estadual passou a divulgar as estatísticas criminais.
Em março, porém, o prefeito João Victor Barboza (PL) inaugurou um estande de tiro digital, no valor de R$ 300 mil, para treinamento dos guardas municipais.

Tiro, porrada e bomba
As guardas municipais são instituições civis, mas geralmente seguem o modelo militar.
Uniformes, viaturas, armamento, cânticos de guerra e até nomes dos agrupamentos —como Iope (Inspetoria de Operações Especiais) e Romu (Ronda Ostensiva Municipal)— dificultam a distinção entre guardas e policiais nas ruas.
E não é por acaso.
O visual reflete o discurso e as práticas do comandante direto - que geralmente é um policial civil ou militar da reserva —e do responsável político da vez.

Em março, ao anunciar o armamento da instituição de Maricá (RJ), o prefeito Washington Quaquá, vice-presidente do PT, gravou um vídeo sonorizado com o tema do filme "Tropa de Elite", da banda Tihuana.
Maricá, nós vamos armar a Guarda Municipal! Não vamos dar mole para a bandidagem. Nossa cidade terá uma segurança forte e preparada. Bandido em Maricá não terá vez! Washington Quaquá prefeito de Maricá
O tom político dos anúncios relativos à segurança virou padrão. Em maio de 2024, meses antes de se reeleger, o prefeito de São José (SC), Orvino Coelho de Ávila (PSD), chegou a posar para fotos e vídeos empunhando um fuzil.
"Olha a cara de felicidade", disse, exibindo a arma. "Aqui a gente não dá tempo de o crime se organizar."
No estado de São Paulo, a última cidade a equipar sua guarda com fuzis foi Vargem Grande Paulista (50 mil habitantes), que recebeu quatro armas desse tipo em 13 de abril.
A capital, no entanto, é a recordista no ranking. A gestão Ricardo Nunes (MDB) gastou R$ 2,5 milhões desde 2021 para comprar 80 unidades. Segundo o prefeito, até agora nenhum disparo precisou ser efetuado.

Secretário de Defesa Social e Trânsito de Curitiba, Rafael Vianna afirma que o fuzil serve para demonstrar força.
"Ele causa impacto em situações de maior risco e impede que a violência escale, mesmo que não seja utilizado", diz.
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, destaca que o processo de mimetização das guardas em relação à PM é essencialmente político, mas equivocado.
"Tem muitas outras coisas para um município investir, como cuidar da zeladoria da cidade, torná-la limpa e iluminada. E, se for para enfrentar o crime, não é com a guarda exclusivamente. As áreas de fiscalização, por exemplo, têm um papel muito relevante. O problema é que não geram visibilidade nas redes sociais."
Proposta de Lula 'empodera' guardas municipais
Segundo a Constituição, os estados e o Distrito Federal ainda são os principais responsáveis por zelar pela segurança da população. Municípios e União também participam, em menor escala. Mas isso já começou a mudar.
Com a criação do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), em 2018, os municípios têm incentivo fiscal para atuar na área.
O governo federal já repassou, de lá para cá, R$ 366 milhões às cidades, a partir de 224 convênios com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Desde 2023, as guardas municipais também têm sido contempladas pela pasta com viaturas, drones, munições e armamento.
A pressão de prefeitos e deputados federais ainda levou o governo Lula a incluir as guardas municipais na lista de órgãos responsáveis pela segurança, em proposta encaminhada ao Congresso no final de abril.
Se aprovada, a PEC da Segurança tende a "empoderar" ainda mais as corporações e liberar prefeitos a transformarem suas tropas em verdadeiras polícias —com ou sem aval para adotar oficialmente o nome.
Isso porque o texto elaborado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, foi alterado.
A proposta agora permite que as instituições façam policiamento ostensivo e não apenas comunitário e preventivo.
Nenhuma outra lei nacional libera essa função, que é típica da PM.
Os guardas, portanto, ficam oficialmente liberados a patrulhar as ruas, fazer prisões em flagrante, bloquear vias e abordar suspeitos —exatamente como faz um policial militar.
A PEC do governo Lula segue o caminho aberto pelo STF, em julgamento de fevereiro.
Ao avaliar um recurso extraordinário sobre as atribuições da Guarda Municipal, apresentado pela Câmara Municipal de São Paulo em 2010, a corte validou o chamado "poder de polícia" dos agentes das guardas.
"O Supremo, mais uma vez, legislou um pouquinho ao falar em policiamento ostensivo, já que nenhuma lei ou decreto libera essa prática. A própria Constituição não fala em policiamento ostensivo. Ele proveu o recurso de 2004 e foi além", destaca o criminalista Alberto Toron.

Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-SP, o advogado ressalta que o alcance das guardas é discutido há pelo menos 20 anos, quando a capital paulista aprovou uma lei que definiu a instituição como órgão de segurança pública (em desacordo com a Constituição) e a liberou a fazer policiamento preventivo e comunitário.
Apesar de o artigo que define tais atribuições ter sido considerado inconstitucional na época pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (o caso foi remetido ao STF e julgado nesse ano), prefeitos de todo o país começaram a tratar suas tropas como polícia.
"É quando aquela guarda patrimonial começa a ganhar uma feição de polícia propriamente dita. Não pelo nome, mas pelo conteúdo de suas atividades, pela sua substância", completa Toron.
É daí que derivam os projetos de diversas prefeituras pelo país, como o de São Paulo, de mudar o nome de Guarda para Polícia Municipal.
Presidente da AGM Brasil, Reinaldo Monteiro considera o debate desvirtuado.
"O STF apenas reconheceu as atribuições já praticadas pelas guardas. Usar isso para alterar o nome da instituição não leva a lugar nenhum. É puro marketing político dos prefeitos. O que temos de discutir é como deve ser gasto o dinheiro da segurança pelos municípios", diz.
Para a coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Martins, é legítimo que os municípios promovam ações para aumentar a segurança da população. Ela destaca, porém, que não se enfrenta a violência e a criminalidade só com investimento em policiamento.
"Não dá para cada prefeito ter a sua própria 'guarda pretoriana'. Me parece que esses políticos buscam se beneficiar politicamente dessa insegurança que as pessoas sentem oferecendo uma solução que é aparente e não vai resolver."

Segurança como plataforma política
Em São Paulo, cidade com o maior número de guardas do país, Nunes escolheu a segurança pública como a principal plataforma política de seu segundo mandato.
E promete investir R$ 1,45 bilhão neste ano com o custeio da Guarda Municipal e com o financiamento do Smart Sampa, programa de videomonitoramento que conta com 25 mil câmeras espalhadas pelas ruas da cidade.
"A nossa 'polícia municipal' hoje conta com 7.500 homens e mulheres e é maior que a polícia militar de dez estados", ressaltou Nunes, em entrevista ao Canal UOL.
Para alardear os resultados positivos do Smart Sampa, o prefeito instalou em fevereiro um painel no centro da cidade com números de foragidos capturados e prisões em flagrante.
"Nossa cidade hoje é mais segura que Nova York."

Principal indicador de violência, a taxa de homicídios está mesmo em queda na capital paulista.
Em 2024, foram 4,6 casos a cada 100 mil habitantes, ainda acima do percentual de Nova York, que foi de 3,8, segundo dados da organização Council on Criminal Justice (CCJ).
Estatísticas oficiais do primeiro trimestre deste ano, no entanto, mostram alta de 15,4% no número de estupros, de 11% no número de homicídios e de 4,6% nos casos de furtos, na comparação com o mesmo período do ano passado.
Destacar ações na área da segurança é apontado por aliados como estratégia antecipada do emedebista para uma eventual campanha ao governo estadual, em 2026.
Nunes nega, mas segue a cartilha de outros potenciais candidatos em seus estados, como os prefeitos Eduardo Paes (PSD), do Rio, e João Campos (PSB), do Recife.
Paes já até aprovou uma lei na Câmara Municipal do Rio para equipar a guarda, que até agora utiliza apenas armas não letais.

A mesma decisão foi tomada por Campos, que firmou convênio com a Polícia Federal para dar início ao armamento dos 1.700 homens e mulheres que compõem a instituição.
"Todo agente público de segurança armado na capital utilizará também uma 'bodycam' [câmera corporal], recurso que garante a transparência da ação ostensiva e preserva a integridade tanto dos guardas como dos cidadãos", informou a prefeitura do Recife.

Nem os números nem o contexto atual convenceram Ricardo Lewandowski de que a guarda, na prática, já é polícia.
"Polícia investiga, executa mandado de busca e apreensão, de prisão. É esse o papel que se quer dar às guardas municipais? Não creio. Ela continua sendo essencialmente uma guarda patrimonial, de caráter municipal, civil por natureza, e que vai ajudar no patrulhamento das ruas e praças públicas", declarou em São Paulo, durante encontro com a sociedade civil, em abril.
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