Ruas aromáticas em São Paulo resistem, mesmo com poluição e máscara
A rua das Flores não tem jardim, canteiro ou flor. É um quarteirão espremido no centro de São Paulo que mal lembra uma das principais vias da cidade no século 19. Sua esquina com a rua Silveira Martins revela o segredo do nome: essa é a região que concentra as lojas que vendem essências. Alguns frascos vendidos ali reproduzem a identidade aromática de outros ambientes comerciais, como "shop. iguatemy", "dashu", "oskle", "les blanco" e "trusard" — a grafia errada na etiqueta é uma tentativa de escapar de processo das grifes.
O olfato entrou na lista das vítimas invisíveis da pandemia, seja porque a perda desse sentido é um dos sintomas da infecção, seja porque as máscaras nos separam do vírus, mas também das moléculas voláteis que são os cheiros do mundo. Acabamos embrulhados em nosso hálito.
As fossas nasais nos levam às profundezas da memória afetiva — os nervos olfativos são os únicos sensoriais diretamente ligados ao sistema límbico, responsável pelas emoções e lembranças. Um aroma pode trazer de volta, de forma detalhista, lugares e pessoas distantes no tempo e no espaço. O marketing olfativo, criado nos cassinos de Las Vegas (EUA) na década de 1970 para manter os apostadores gastando, foi adotado tanto por butiques refinadas quanto por hipermercados populares para fisgar os consumidores pelo sentimento.
Frutais de coco e manga embarcam os clientes para o verão nas lojas de chinelo. Companhias aéreas exalam florais relaxantes, como flor de laranjeira ou lavanda, para acalmar os passageiros antes da decolagem. Marcas de lingerie usam fragrância de rosas para criar uma sensação de confiança nas clientes.
Enquanto as brisas reais desaparecem por várias razões, como a falta de áreas verdes ou a regulação das emissões de fábricas e padarias, as atmosferas artificiais se espalharam pelo mundo como parte do chamado "design sinestésico", ferramenta que utiliza os cinco sentidos para associar marcas a determinadas sensações.
Da próxima vez que sentir aquele cheiro de pão fresco no supermercado, de café no posto de gasolina, de couro na loja de móveis sintéticos ou de pipoca no cinema fique sabendo que ele pode ser tão falso quanto os mundos paralelos, planos e inodoros saídos da internet.
Um sentido essencial
Para fregueses vegetarianos com recaídas sangrentas, o rótulo diz bem grande: "aroma idêntico ao natural de churrasco". Mais embaixo e em letras miúdas, o ingrediente principal descrito, para alívio deles, é "óleo de soja". Ao lado está o frasco de 96 ml de essência de manteiga, "em base de álcool". Na estante dos aromas alimentícios, a mistura de elementos é tão grande que confunde o visitante distraído.
A confusão de cheiros, aliás, é um dos efeitos colaterais da Covid-19 e seu ataque às vias respiratórias. Cerca de 80% dos contaminados sofrem anosmia, uma perda do olfato que pode demorar dias ou meses após o dano aos receptores nasais. Mas uma parte da estatística relatou distorções nos odores, como uma britânica que afirmou sentir cheiro de gasolina na carne. Isso acontece quando os feixes nervosos voltam a crescer e se embaralham na conexão com o cérebro. Muitos pacientes tiveram ansiedade com o quadro, podendo desenvolver até osmofobia, que é o medo de odores.
"Alguns colegas entraram em pânico porque perderam o olfato. Eles achavam que não conseguiriam mais cozinhar. Isso durou até três meses. Depois passou", conta Telma Shiraishi, chef do restaurante Aizomé, que participou de evento sobre os cheiros da cultura nipônica promovido pela Japan House, em São Paulo.
Quando se ergueram em dois pés, nossos antepassados privilegiaram a visão e se afastaram da terra, do olfato e da maioria dos outros mamíferos. Mas os cheiros continuaram essenciais para a vida. "O nariz é nossa proteção, nosso filtro, ele está perto da boca não por acaso. Ele ajuda a escolher os alimentos e os parceiros. Não tem a expressão 'rolou uma química'?", lembra Shiraishi.
Tradicionalmente, o paladar humano distingue quatro gostos. O doce é sinônimo de energia. O salgado, de equilíbrio mineral. Já o ácido e o amargo alertam o corpo. Mais recentemente, os japoneses convenceram o mundo que existe um quinto sabor, o umami, que seria a "deliciosidade" existente em alimentos curados, defumados ou cozidos, formando compostos que dão a percepção de "gostosura".
Os aromas são muitos mais. "Quando estudei na escola de perfumaria na França, em seis meses tinha que distinguir e memorizar mais de 400 cheiros naturais", relata a perfumista Sandra Casagrande. E olha que há o dobro de odores sintéticos.
A especialista, aliás, avisa que não se deve usar indistintamente aroma e fragrância como sinônimos. Aroma está relacionado à alimentação e envolve nariz e boca, enquanto fragrância é exclusiva do nariz e é utilizada para perfumes e odorizadores de ambiente. Também não são equivalentes as palavras especiaria, erva e condimento. Mas essa é uma história que acontece em outra região de São Paulo.
Edu Guedes Fit
As ruas Mercúrio, Santa Rosa e perpendiculares só se esvaziam fora do horário comercial. Mesmo com as portas de aço fechadas, os comércios da Zona Cerealista continuam exalando pimentas, hortelãs e manjericões. Dentro descansam tonéis de pistache iraniano, orégano peruano e lentilha canadense, além dos potes com tempero "Edu Guedes Fit", "Ana Maria Braga Sem Sódio" e "Palmirinha em Pó".
A região é conhecida pela venda a granel de produtos dos cinco continentes do globo e das cinco regiões do Brasil, principalmente grãos, oleaginosas e temperos, mas é bom não confundir os termos. As ervas são folhas, frescas ou secas, usadas para culinária ou medicina popular, como salsinha, cebolinha e tomilho. Já as especiarias são sementes, cascas, raízes e outras partes dos vegetais utilizadas em cosméticos, medicamentos e condimentos, que são temperos elaborados.
"Já me acostumei tanto que não sinto cheiro nenhum", lamenta Fátima Oliveira, vendedora de uma casa de chás. Nos corredores, as populares camomila e cidreira são facilmente perceptíveis, mas há pacotes com unha-de-gato, pé-de-perdiz, nó-de-cachorro, escada-de-macaco e assa-peixe que nem aspirando fundo na embalagem plástica sai uma pista no meio da "sinfonia" de odores.
O linguajar dos especialistas retira dos outros sentidos várias expressões. Das artes plásticas tomam emprestado, por exemplo, a "paleta de aromas", as "nuances herbáceas" e as "modulações resinosas". Da música pegam termos como notas (de âmbar, de musgo, de mar) e acordes (amadeirados, terrosos) para tentar descrever o intangível.
Uma brisa de caramelo
A área é como uma península, cercada por dois lados pela inhaca dos rios Tietê e Tamanduateí, mas um vento doce e aconchegante invade quem dobra a esquina da Canindé, rua de mesmo nome que o bairro. Desde 1940 situadas ali, as chaminés da fábrica de biscoito Bela Vista viraram imensos incensos caramelizados em meio à fedentina.
"Me deu até saudade de quando dava minha caminhada matinal e passava pela porta da indústria. Anos atrás, o cheiro vinha até minha janela, mas construíram um prédio e não chega mais", conta, à porta de sua casa, o aposentado Ivo Siqueira, na vizinhança há 30 anos, mas sem sair para a calçada há nove meses por conta do vírus que agora passeia pelo ar.
O aroma de biscoito (e suas notas de manteiga e baunilha) é muito usado por construtoras nos apartamentos decorados dos novos empreendimentos para criar um clima de lar e conforto e fisgar casaizinhos sonhadores.
O ambiente idealizado para uns, porém, pode se transfigurar em algo desagradável para outros. "Quando mudei pra cá, nos primeiros dias era um cheiro gostoso. Hoje acho enjoativo. Nem biscoito eu como mais", se queixa o imigrante peruano Lucho Palacios, que mora em um sobrado bem ao lado. Palacios sente falta mesmo é do aroma de arroz com pato, prato que sua mãe faz e que ele não come há cinco anos, desde que trocou Trujillo, no norte do Peru, por São Paulo — o que mostra que o olfato é algo carregado de reminiscências e totalmente pessoal.
As lufadas açucaradas do Canindé já foram mais fortes, mas a legislação foi, ao longo das décadas, obrigando a instalação de filtros e exaustores. Muitas indústrias alimentícias abandonaram São Paulo pela quantidade de regras, restrições e fiscalizações. A qualidade do ar pode ter melhorado por um lado, mas a diversidade olfativa nunca foi a mesma. Antigos moradores de bairros como a Mooca ou a Lapa contam suas reminiscências pelas "fumacinhas cheirosas" da torrefação de café ou do cozimento dos molhos de tomate das indústrias e comércio. Até os cheiros de plástico e tinta trazem o passado de uma cidade que agora é pós-industrial.
As chaminés atuais são os canos de escape dos carros. Junto com o miasma saído de bueiros, córregos e rios, essa poluição prejudica o sentido que é puramente químico. Atualmente, poucos bairros ajardinados têm o privilégio de respirar oxigênio com toques de jasmim, dama-da-noite ou madressilva, sem ter saído de algum spray enlatado.
Mas as queixas dos paulistanos flutuam no ar desde muito. Em edição de junho de 1863, o jornal "O Doze de Maio" publicou artigo sobre o bairro da Luz dizendo que "antigamente quando se passava em noite de lua ahi por essas ruas, sentia-se o aroma das flores de laranjeiras dos quintaes", para logo reclamar que a "camara municipal mandou fazer umas cavernas a que se deu o nome de bocas de lobo, que são insupportaveis pelo aroma que exhalão".
Naquela época, os "melhoramentos hygienicos" combatiam os surtos de cólera que assolavam o Brasil, e acreditava-se na teoria miasmática, com a doença sendo transmitida por "eflúvios pelo ar" — depois descobriu-se que o vibrião colérico vinha pela água e alimentos contaminados. Hoje em dia, a pandemia vem sim pelo ar, mas há quem acredite em curas por rezas, feijões mágicos e vermífugos. Sempre há algo no ar que não cheira bem.
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