Vai carpir um lote: agroginástica faz mutirão em horta urbana virar gincana
"Eu só não emagreço porque sou boca nervosa: quando sento é pra comer um pratão", dispara a pernambucana Vilma Martins, entre as chicórias e os alfaces do Viveiro Escola — uma horta comunitária mantida no meio de conjuntos habitacionais, viadutos e trilhos de trem em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.
Esse oásis verde contrasta com o deserto alimentar de botecos, lanchonetes e bombonières do entorno. "Quando eu cheguei nesse bairro, não tinha uma árvore. Hoje, me sinto em uma floresta", conta ao TAB, em uma das clareiras desse jardim cheio de particularidades. Um dos segredos guardados atrás das cercas vivas atende pelo nome de agroginástica.
O nome composto mais parece uma daqueles exercícios que entram e saem da moda tão rápido quanto a vontade de ficar em forma — tipo hidrocapoeira, lambaeróbica ou aeropilates. Já sua tradução para o inglês, agrogym, deixa um ar mais mercadológico, estilo jump, step, spinning e crossfit. Mas essa inovação não vai aparecer na academia mais próxima: a intenção é que suas ideias possam inspirar outros locais de agricultura urbana a aliar o trabalho pesado da terra com algumas noções de ergometria e de diversão.
"Quando tinha visita de escola aqui, a criançada fazia fila na bicicleta que tritura galhos e na bomba manual de água. Era uma festa", lembra a baiana Helena Caroba, fundadora da horta quando o terreno ali era só entulho das obras dos prédios vizinhos erguidos pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano).
Aula experimental
"Tacale pau, Rodrigo", incentivava Vilma, 50, enquanto, num esforço de reportagem, eu testava a bicicleta fixa. O suor já descia pelo meu braço, e os estímulos continuavam. "Nada como a força bruta de um homem para picar isso mais rápido. Arrocha", brincava Helena, 61. O segredo da bicicleta é pedalar forte, para girar a engrenagem, e só depois colocar os galhos. É importante pedalar firme e continuamente, afinal, há ramos de diversos tamanhos e diâmetros, e o dispositivo dá vários trancos.
Na hora da bomba d'água, o equipamento estava travado, e a manopla, desencaixada. O medo era usar força demais e quebrar o dispositivo. Uns ajustes depois, experimentei puxar manualmente do poço uma incrivelmente límpida água da várzea do Tietê — a região tem muitas nascentes que deságuam no rio poluído. A bomba manual é uma boa solução onde falta eletricidade e sobra energia humana.
Cartazes pela horta orientam o praticante sobre a posição e a força que deve aplicar nos aparelhos. Na bomba, o cálculo é que dez minutos subindo e descendo a manopla gaste 90 calorias. Já o mesmo tempo na bicicleta corresponde a 100 calorias. Além deles, há estações com pás, peneiras e baldes de transporte. No total, o visitante gastaria 50 minutos trabalhando o corpo e a terra. Confesso que não fiz o percurso completo. Perdi o foco e voltei para minhas entrevistas, anotações e imagens. Mas bem que estou precisando, depois de tantos meses do corpo em quarentena.
O circuito de exercícios surgiu de um projeto que reuniu agricultores, moradores, designers, ativistas, estudantes e professores de educação física — entre eles esteve Nuno Cobra Filho, um dos maiores nomes do treinamento físico e mental no Brasil.
Eles se reuniram durante um fim de semana em um hackathon (maratona hacker) para criar aparelhos que dessem à lavoura movimentos mais leves, eficientes e seguros. Um exemplo foi um sapato escavador, com a sola cheia de pinos, que afofa a terra e desenvolve as pernas ao mesmo tempo. E o melhor: a ideia surgiu de uma criança presente na reunião.
Braçal é legal
A expressão "vai carpir um lote", versão rural de "vai ver se estou na esquina", pode soar engraçada, mas esconde um assunto sério: muito devido ao passado escravista, o trabalho manual ficou desvalorizado no Brasil. Mesmo a agricultura que se elogia atualmente sai do campo mecanizado e pouco humanizado do agrobusiness, com boa parte da produção indo para exportação ou se transformando em ração para animais de criação.
Mas, ao contrário da propaganda, é a agricultura familiar que mais contribui na alimentação do brasileiro, responsável por 70% do que chega à mesa no país, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Nessa conta, as hortas nas periferias, como as muitas que se espalham na zona leste paulistana, ganham cada vez mais importância e expandem o cinturão verde para dentro das metrópoles.
Helena Caroba é a veterana no GAU (Grupo de Agricultoras Urbanas). Desde 2009, está na lida que criou a horta em São Miguel Paulista. "Foi um trabalho de formiga mesmo. Com muita luta, os bracinhos dessas mulheres guerreiras ergueram tudo isso", diz a baiana de Serrolândia.
A maioria da população ali é de gente desterrada do Nordeste que encontrou seu chão na realidade sem reboco da periferia da maior cidade do país. "Essa plantação me faz lembrar da roça que cresci no sertão", conta a também baiana Maria Joana Paixão, 58, que migrou e trabalhou como empregada doméstica até se aposentar. "Eu estava na depressão. Não comia nem dormia. O médico passou umas pílulas, mas eu não queria ficar igual às minhas filhas, que vivem na base de remédio pra cabeça. Era para eu estar doidinha se não fosse uma vizinha me trazer pra horta."
As fazendeiras urbanas tiveram ajuda de várias ONGs para montar a estrutura atual, que inclui até cozinha e refeitório para elaborar e oferecer sua produção quando há visita de grupos. A última obra foi justamente a construção, em 2019, do circuito de agroginástica — uma ideia do São Paulo Lab que teve a parceria das organizações Coexistir, Quebrada Sustentável e o patrocínio do Instituto Jatobás.
"Esse projeto reúne alimentação, exercício, trabalho comunitário e educação. Tem muita energia, aplicada com propósito. E a ideia é ter equipamentos que usem a força humana, de forma equilibrada, nos vários processos do plantio. É uma academia a céu aberto que ainda estimula os mutirões para ajudar as agricultoras", afirma Maria Augusta Bueno, 48, designer que fundou o São Paulo Lab.
A energia está em você
No lugar de eletricidade ou do combustível, são pedaladas que movimentam o triturador por lá. Por um funil, entram os ramos secos da poda. Na outra ponta da engenhoca, sai uma palha que serve de cobertura vegetal para o solo. A bicicleta apelidada de "papa-galhos" foi o primeiro protótipo do circuito.
Em 2017, Maria Augusta criou o modelo para uma horta à beira da rodovia Anchieta, no bairro de São Manoel, em Santos. Convidada a fazer uma oficina sobre o invento, ela replicou o mecanismo em uma plantação pública em Berlim (Alemanha). "Foi uma exportação de inovação social, no sentido contrário, afinal, na maioria das vezes a gente é que importa as ideias de fora. Sei que os alemães fizeram outras dessas bicicletas", conta a designer.
Depois, ela desenvolveu o exemplar de São Miguel Paulista, com a ajuda de um serralheiro do bairro. O projeto é aberto, para qualquer pessoa acessar e copiar, mas Maria Augusta adverte que o miolo do triturador é o mais difícil de fazer.
Outro item do circuito de hidroginástica que tem seu projeto acessível é a bomba manual de água. Além de deixar os braços "bombados", ela ajuda na retirada da água de um poço e envio para a irrigação da horta. O dispositivo foi desenvolvido pelo ativista Edison Urbano, que cria e divulga projetos renováveis de baixo custo.
"O engajamento da população em qualquer horta comunitária é sempre o mais desafiador. A agroginástica ajuda, transformando o mutirão em uma gincana e trazendo uma razão a mais para produzir seu próprio alimento", argumenta Maria Augusta.
Nesse período de pandemia e isolamento, a horta entrou com um processo de certificado orgânico, para poder comercializar melhor sua produção, e quer também reformar alguns aparelhos para quando as visitas voltem.
"Esse cantinho é meu paraíso. Ele já me curou de muita coisa." Helena olha com orgulho o jardim que é nutritivo, medicinal e ornamental, afinal, as plantas podem ser tudo isso.
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