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O que vi e ouvi de um red pill ensinando como ser um 'homem de valor'

Nunca tive interesse pela tal "machosfera". Cheguei a ver coisas aqui e ali, mas sempre passei longe desse tipo de conteúdo.

Embora homem, eu não sou o público-alvo: vivo um relacionamento feliz com uma mulher feminista há mais de dez anos. Mesmo assim, esse universo veio até mim.

Começou quando comprei online algumas camisetas. Passei a receber propagandas após acessar o site e o Instagram da loja. Em uma delas, a estrela era um influenciador masculinista. Curioso, assisti até o fim. O vídeo apareceu de novo, de novo e de novo.

O algoritmo do Instagram entendeu que deveria me mostrar mais propagandas do tipo, mas com um pulo do gato: elas não anunciavam camisetas, mas influenciadores "red pill".

Eram anúncios de cursos para me transformar em um "homem de valor". Um macho alfa. Um grande conquistador de mulheres.

Achei aquilo muito bizarro e comentei no trabalho. Por coincidência, a repórter Marie Declercq, minha colega que já explorou todos os cantos da internet, produzia para o UOL uma reportagem sobre a normalização de conteúdos misóginos. Foi dela a sugestão: e se eu fizesse um desses cursos? Topei.

Escolhemos o material "Elite Masculina" do influenciador Thiago Schutz, uma das principais vozes masculinistas do Brasil.

Quem frequenta esse universo com certeza o conhece; quem é de fora talvez lembre dele pelo incidente que lhe rendeu o apelido "Calvo do Campari".

O jornalismo vive de prazos e não podia esperar meses até que eu me tornasse um "homem de verdade".

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Escolhemos então duas "jornadas": primeiro, como construir o máximo valor masculino e me tornar um "homem de valor"; depois, como conquistar a mulher que eu quisesse.

Eu não sei o que é um "homem de valor". Nunca tinha ouvido esse termo. Tive vontade de perguntar o que significa antes de começar o curso, e perguntei.

Thiago Schutz em imagem de divulgação de curso masculinista
Thiago Schutz em imagem de divulgação de curso masculinista Imagem: Reprodução

Schutz repassou minha dúvida ao ChatGPT logo na abertura: "homem de valor" é uma expressão sem conceito universal, que poderia mudar de uma cultura para outra, de uma época para outra.

E também era uma criação de "subculturas" da internet.

O influenciador não gostou da resposta. Chamou a ferramenta de enviesada, parte de um esforço para impedir que o masculinismo floresça.

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O curso logo informou quais são os dez pilares para a construção desse tal "homem de valor".

Admito que me surpreendi com alguns bons conselhos — básicos, mas que, pelo que ouço de amigas solteiras, ainda não chegaram a todos os homens.

Cuidar da aparência física, exercitar-se, vestir-se adequadamente, manter uma boa higiene dos dentes, tratar as pessoas com bom humor fazendo apenas piadas positivas sobre elas, ter autoconfiança, ser autêntico.

Toda essa cartilha essencial de civilidade fazia parte da aula, assim como a orientação de estudar para ser um homem interessante e ter boa capacidade de comunicação.

"Leitura de livro, por ser uma coisa chata, te força a ver cada linha", ensina Thiago Schutz.

Imagem usada no site de Thiago Schutz mostra homem diante do monte Cervino, nos Alpes suíços, para ilustrar 'evolução masculina'
Imagem usada no site de Thiago Schutz mostra homem diante do monte Cervino, nos Alpes suíços, para ilustrar 'evolução masculina' Imagem: Joshua Earle/Unsplash
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Nesse universo "red pill", o termo em inglês "red flag" (bandeira vermelha) é usado para descrever comportamentos indesejados de uma mulher que devem despertar alerta.

As "red flags" do curso de Schutz começam a aparecer no discurso quando ele decide abordar as mulheres.

Enquanto o homem tem de seguir aqueles dez pilares para projetar valor, as mulheres, segundo ele, se reduzem a três:

  1. Beleza física;
  2. Forma de se vestir (sem mostrar muito o corpo);
  3. Forma de se comportar em público (ela não deve interromper os homens, não pode falar alto).

Após aprender os dez pilares do homem de valor, parti para um objetivo mais ousado: a "masterclass", que prometia ensinar a conquistar qualquer mulher.

A lição propõe um passo a passo para conhecer mulheres no Instagram, levá-las ao WhatsApp, dali para um encontro e, por fim, para a cama.

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O tom e a postura corporal de Schutz são diferentes aqui. "A maior parte das mulheres hoje em dia só querem pau e água. Só serve pra sexo", diz ele, logo nos primeiros minutos.

Uma afirmação é apresentada como teoria: mulheres não buscam sexo.

Na verdade, elas dão o sexo em troca de atenção de homens. Os homens, por sua vez, dão atenção em troca de sexo. Alguns conselhos da construção do homem de valor se repetem.

Há um passo a passo de como ir do Instagram ao sexo, enfatizando que o homem deve tentar múltiplas conquistas ao mesmo tempo.

Representação do que seria um 'homem fraco' publicada no site de Thiago Schutz
Representação do que seria um 'homem fraco' publicada no site de Thiago Schutz Imagem: Reprodução

É possível perceber no material "didático" uma preocupação em fugir de comportamentos misóginos.

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Há uma conversa sobre consentimento e em deixar a mulher no controle dos encontros, sobre tratá-la com educação mesmo que a interação não tenha o final desejado.

Falam da importância de garantir que ela chegue em casa com segurança. Outra vez coisa simples, básica, sobre civilização.

Mas, conforme o tempo passa — e são três horas e meia de aula —, as tais "red flags" das quais os homens devem fugir vão virando degraus em uma descida insólita, em espiral, rumo a um abismo escuro.

"Mulheres são distrações que vão te consumir dinheiro"; "a parte lixo feminina é manipuladora; se você decifrar uma mulher, consegue lidar com qualquer inimigo"; "mulheres não gostam de responder mensagens difíceis"; "mulher é preguiçosa, quer emoção"; "se a transa for muito boa, não se iluda; se a mulher transa bem é porque já praticou com vários caras".

Quando percebi, a coisa tinha se radicalizado.

"Gosto de mulher que cozinhe pra mim. Já peguei mulher vagabunda pra caralho, que não cozinha, não gosta de cozinhar. É bucha", dizia Schutz.

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"Não tem mulher perfeita. Existem mulheres mais maleáveis, que você consegue ajustar o comportamento."

Este é o conselho final do influenciador: encontrar mulheres que sejam um pouco mais suscetíveis ao molde criado pelas presenças masculinas.

Repórter do UOL sentiu raiva e ressentimento no discurso de Thiago Schutz
Repórter do UOL sentiu raiva e ressentimento no discurso de Thiago Schutz Imagem: Reprodução

Mas cuidado: "A mulher, quando é rodada, não é questão só de quantos paus já entrou [sic] nela. Ela é difícil de ser moldada. Arredia, dá dor de cabeça, fala 'não vou cozinhar pra macho'. Quando as coisas ficarem difíceis, vai procurar outro pau".

Soa muito misógino porque é muito misógino.

A tentativa de expressar esse tipo de coisa e, ao mesmo tempo, blindar-se das consequências do cancelamento gera um discurso bipolar que não se sustenta.

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"Adoro mulher, mas toda mulher é chata. Amo mulher, mas mulher é um pé no saco." Esquisito.

A jornada custou R$ 90. Reforçou algumas coisas que eu já sabia. Preciso me vestir melhor, andar com cabelo e barba mais ajustados.

Não me tornei macho alfa nem me sinto capaz de conquistar a mulher que quiser — na realidade, estou com a mulher que sempre quis conquistar. Acho que nem ele nem ninguém teriam o poder de ensinar isso.

Posso estar errado, mas senti nos ensinamentos raiva e ressentimento.

Meu conselho — grátis — de homem sem valor para Thiago Schutz: procure uma forma de entender e processar tudo isso.

Faça terapia.

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