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A internet que odeia mulheres: cultura red pill cresce e ataques viralizam

As mulheres são o alvo preferencial dos discursos de ódio na internet no Brasil.

Os chamados "masculinistas" se reúnem em comunidades digitais para questionar e combater o que veem como privilégios das mulheres na sociedade.

A onda misógina popularizou termos como "red pill" e seus porta-vozes, que incluem influenciadores como Thiago Schutz, o "Calvo do Campari", Rafael Aires e Júnior Masters, um dos criadores do Redcast

Juntos, os 11 principais canais desse segmento no YouTube somam mais de 4 milhões de seguidores, e seus vídeos, mais de 1 bilhão de visualizações.

O discurso hostil dos masculinistas ataca todas as mulheres brasileiras, em especial mães solo, mulheres acima de 30 anos, feministas e mulheres com atuação política no país, seja de esquerda ou de direita.

Normalizado em canais populares, esse discurso corre ainda mais solto no submundo digital de grupos misóginos que se multiplicam no Telegram.

Nos últimos três anos, o volume de mensagens de ódio contra mulheres nesse aplicativo superou em quatro vezes a soma das manifestações de racismo, xenofobia contra nordestinos, capacitismo e LGBTfobia.

Esse dado faz parte de um levantamento exclusivo para o UOL, feito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), em parceria com a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e apoio do InternetLab, centro de pesquisa de direito e tecnologia.

Foram analisadas mensagens enviadas entre 2021 e 2024 em mais de 1.000 canais e 400 grupos frequentados por brasileiros no Telegram.

271.281 mensagens enalteciam a violência contra mulheres, o antifeminismo e o machismo — contra 60.216 reproduzindo discursos de ódio contra outros grupos.

O Telegram serve para influenciadores famosos se comunicarem com o público sem atenuar o discurso, como fazem no YouTube. A partir daí, são sugeridos canais similares, o que facilita o contato dos usuários com mensagens ainda mais violentas.

O que está em questão é que o homem de valor não deve nem dar bom dia pra depósito de porra.
Mensagem postada em 28 de março de 2024, no grupo de Telegram criado por um influenciador com milhões de views no YouTube e TikTok

Segundo Leonardo Nascimento, pesquisador e coordenador do Laboratório de Humanidades da UFBA, é comum que mensagens misóginas como as citadas acima sejam compartilhadas em canais neonazistas.

"O Telegram é uma dobradiça. Conecta o que está na superfície com o conteúdo mais nocivo e escondido. É um prato cheio para se cair em discursos extremistas", explica o pesquisador.

A popularização dessas ideias tem efeito prático no cotidiano de brasileiras na internet.

Só em 2022, 28,6 mil denúncias de misoginia foram feitas à Safernet, serviço que defende direitos humanos no ambiente digital.

"A internet virou a maior inimiga das mulheres", diz ao UOL Cida Gonçalves, ministra das Mulheres. Em outubro de 2023, a pasta lançou a campanha "Brasil Sem Misoginia" para combater esse fenômeno.

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Imagem: Arte/UOL

Efeito Coach do Campari

O movimento masculinista no Brasil ficou ainda mais popular a partir de 2023, com a viralização de vídeos de Thiago Schutz.

Schutz, que até então falava com um público restrito mas engajado, viralizou quando, num trecho de entrevista a um podcast, relatou que certa vez uma mulher havia lhe oferecido uma cerveja, mas ele recusou, preferindo uma Campari tônica.

Thiago Schutz, o "Coach do Campari"
Thiago Schutz, o "Coach do Campari" Imagem: Reprodução/Instagram

O vídeo lhe rendeu o apelido de "Calvo do Campari" depois que a comediante Livia La Gatto fez piada com a fala. A reação dos seguidores, inflamados por Schutz, fez com que Livia abrisse um boletim de ocorrência contra o influenciador.

A polêmica levou a um pico de buscas no Google pelo termo "red pill".

"Red pill" (pílula vermelha, em português) é uma metáfora do filme "Matrix" (1999). Em uma das cenas, é oferecida uma escolha ao protagonista Neo: ou ele toma a pílula azul e acorda como se nada tivesse acontecido ou ingere a pílula vermelha e finalmente conhece o mundo real, escondido por trás de uma simulação.

Para os masculinistas, "tomar a red pill" é acordar para a realidade de um mundo que só favorece as mulheres. As regras do jogo seriam ditadas por elas, seja no amor, no sexo, no trabalho ou nos tribunais.

A alegoria da pílula vermelha começou a aparecer em blogs, livros e espaços virtuais a partir dos anos 2000. Na época, homens falavam em fóruns sobre estratégias de conquista e frustrações amorosas.

Para contornar essa suposta vantagem feminina, influencers autodenominados coaches se baseiam no conceito "red pill" para vender cursos e livros que ensinam homens a se valorizarem e terem sucesso em relacionamentos.

Schutz é autor de pelo menos três desses livros e classifica o movimento com um "efeito elástico", uma reação ao avanço do feminismo.

"A gente está quase sendo escravizado aqui. Chega, já deu tempo de as mulheres buscarem direitos iguais. Nós, homens, queremos direitos iguais", diz Thiago Schutz, em entrevista ao UOL.

Apesar da popularidade, o influenciador não é o mais seguido nas redes sociais. Quem ocupa o posto é Rafael Aires, o Antiotário, com mais de um milhão de inscritos no YouTube e o dobro disso no TikTok.

É em um grupo de Telegram criado por ele, com 61 mil seguidores, que as mulheres costumam ser chamadas de "depósito de porra".

Aires não respondeu ao pedido de entrevista do UOL.

Influenciador masculinista Rafael Aires em vídeo
Influenciador masculinista Rafael Aires em vídeo Imagem: Reprodução

Normalização e monetização

Os influenciadores masculinistas dependem de plataformas populares e do apoio de seguidores para normalizar e compartilhar o discurso misógino.

Essa distribuição de ódio pode ser monetizada de diversas formas nas plataformas: visualizações, doações em lives, parcerias ou venda de produtos e "atendimentos" pessoais.

Além do YouTube, a aposta dos influenciadores é na venda de e-books, cursos, mentorias e parcerias comerciais com marcas de suplementos e profissionais independentes.

"Minhas mentorias têm mais de 200 pessoas por mês", conta Schutz, que não quis revelar o valor delas. "É mais de R$ 1.000 [por pessoa]."

Há incentivo para que trechos de vídeos de criadores sejam espalhados em outras redes em busca de monetização.

Os principais canais masculinistas podem faturar em média de US$ 3.000 a US$ 50 mil por ano, segundo o Social Blade, uma plataforma de análise de mídias sociais.

Mas a estimativa não é segura.

"É muito difícil saber um valor exato. Pode variar de país, demografia da pessoa, o tipo de anunciante escolhido pelo criador de conteúdo", explica o cientista de dados Manoel Horta Ribeiro, doutorando em ciências da computação na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça.

Câmara de eco

A tática de comunicação dos principais influenciadores red pills não é sofisticada, mas é efetiva para disseminação nas redes.

O conteúdo consiste em transmissões ao vivo de conversas com convidados, vídeos de reação a questões supostamente polêmicas e cortes de podcast.

Júnior Masters, um dos criadores do Redcast
Júnior Masters, um dos criadores do Redcast Imagem: Reprodução/YouTube

É como se o universo masculinista se retroalimentasse diariamente para confirmar a própria visão de mundo e capturar o espectador.

"As plataformas facilitam a construção dessas comunidades, formando as câmaras de eco. Indivíduos repercutem entre si assuntos e isso vai criando um ecossistema", explica Luciane Belin, pesquisadora da Netlab da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Essas câmaras de eco se estendem principalmente para o Telegram. Sem controle rigoroso, a plataforma criou as condições ideais para grupos neonazistas, antissemitas, fascistas e masculinistas, dizem pesquisadores.

Grande parte desses segmentos estão interligados, afirma Leonardo Nascimento, do Laboratório de Humanidades da UFBA.

Espaço de desabafo

Passada a primeira camada do discurso de ódio, é frequente nessas comunidades a presença de homens com problemas de socialização e sem dinheiro e acesso a tratamentos de saúde mental.

Na ausência de programas e políticas públicas de acolhimento, um dos caminhos pode ser seguir os conselhos de "desenvolvimento masculino" de influenciadores.

"Homens precisam pedir ajuda, mas precisam pedir ajuda para as pessoas certas", afirma Thiago Schutz.

"Se estou emocionalmente sobrecarregado e pensando em tirar minha própria vida, vou sentar com uma psicóloga de 25 anos, recém-formada numa faculdade federal, enviesada pelo feminismo? Não quero falar de sentimentos. Sou um homem, racional. Quero resolver o problema", diz.

Intervalos de envio de conteúdo misógino nas mensagens do Telegram abrem espaço para desabafos sobre problemas de socialização no trabalho, na faculdade ou em casa.

"Homens também sofrem com a masculinidade. A diferença é que eles transformam esse sofrimento em mais violência. A mulher sofre duas vezes: a violência do patriarcado e a violência daquele homem", explica Bruna Camilo, pesquisadora de estudos de gênero na PUC-MG.

Indicadores socioeconômicos do Dieese de 2023 revelam que mulheres ganham 21% menos que homens, realizando o mesmo trabalho, apesar de 50,8% delas liderarem lares.

E mais: 53,6% dos feminicídios são praticados pelos próprios companheiros, apontam dados de 2022 do Fórum de Segurança Pública.

Apesar disso, quanto mais tempo um usuário se mantém nessas câmaras de eco, mais difícil deixar de pensar que mulheres são inimigas, frisa Bruna.

Em uma troca de mensagens em um canal de Telegram em 2021, o administrador adverte para quem observa: "A 'red pill' vai ficar famosa e muitos homens vão pesquisar e aderir ao movimento. (...) As mulheres são só o primeiro nível".

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