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O crime chocante que escancara o privilégio dos militares no Brasil

Na noite de 22 de janeiro de 1995, assaltantes liderados pelo então cabo do Exército Celio da Silva Cabral renderam 37 passageiros de um ônibus na rodovia Belém-Brasília, na altura de Nova Olinda (TO).

O grupo era formado por estudantes e professores que voltavam a Crixás (GO) após uma excursão pelo litoral nordestino.

Os criminosos armados estupraram quatro mulheres — três menores de idade —, agrediram cinco homens e roubaram bens, talões de cheque e dinheiro.

A tragédia não resultou em punição.

Ao contrário: uma investigação do UOL descobriu que Celio, condenado a 66 anos de prisão em 1997, nunca chegou a cumprir a pena.

Hoje, sua filha recebe pensão mensal de R$ 3.800 do Exército.

Um levantamento do UOL apurou que R$ 19,7 milhões foram pagos pelo Exército em 2023 a parentes de 303 militares expulsos da corporação.

Isso acontece mesmo com condenados por crimes graves, como Celio.

Cejane Gomes, que ficou parcialmente incapacitada após ser baleada pelo cabo, nunca recebeu compensação financeira adequada.

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Imagem: Arte/UOL

'Tinha que pagar era para mim'

Cejane, na época com 21 anos, ocupava a primeira cadeira atrás do motorista e viu o primeiro assaltante entrar de coturno preto lustrado.

Soube de cara que se tratava de um militar.

Ela foi arrastada para uma moita de tucum perto da estrada e estuprada por um dos assaltantes.

Ao tentar se aproximar do ônibus, acabou baleada por Celio. A bala atravessou sua barriga, e ela caiu inconsciente. Os bandidos fugiram.

"Parecia um pesadelo do qual eu nunca ia acordar", conta Cejane, que trabalha como manicure e ainda mora em Crixás.

Cabral foi preso preventivamente no batalhão do Exército em que trabalhava. Cejane nunca mais ouviu falar dele, mas imaginava que estivesse preso.

Ela também não sabia que, desde 2003, Wanessa Marinho Cabral, filha do seu algoz, recebe pensão do Exército.

"Tinha que pagar era para mim, que levei o tiro", diz Cejane, ao saber das informações levantadas pelo UOL.

Ela perdeu um rim em decorrência do ferimento. Teve sequelas e se tornou estéril.

Na época, sua família teve de vender móveis da casa para bancar parte dos tratamentos médicos e psicológicos.

Imagem aérea de Crixás
Imagem aérea de Crixás Imagem: Ana Lima / UOL

Herança antecipada

Os quase R$ 20 milhões pagos às famílias de militares permanentemente dispensados são uma espécie de herança antecipada, derivada de uma brecha na regra da previdência militar.

Militares na ativa contribuem mensalmente com 10,5% do salário para que herdeiros recebam pensão após sua morte.

Mas a lei 3.765/60, promulgada por Juscelino Kubitschek, garante que militares expulsos mantenham o direito à pensão, com pagamento que começa ainda em vida.

Militares das três Forças são enquadrados na categoria "mortos fictos", originalmente reservada a militares desaparecidos sem comprovação de óbito.

Nesse processo, o Exército envia ao TCU um documento que contém uma "data de óbito" fictícia, que coincide com a data da expulsão do militar.

O benefício é vitalício para o cônjuge. Filhos recebem até os 24 anos, segundo a regra vigente.

A título de comparação, parentes que dependem economicamente de condenados civis (contribuintes do INSS) só podem ganhar um auxílio-reclusão de, no máximo, um salário mínimo.

Na média, o benefício paga R$ 5.000 aos militares expulsos, mas as pensões podem chegar a R$ 30 mil por mês.

Dados pouco transparentes

O detalhamento dos pagamentos era mantido em sigilo pelo Exército, mesmo após a Aeronáutica e a Marinha terem revelado dados de seus servidores, conforme já mostrou o UOL.

Não é possível saber quantos beneficiados foram expulsos do Exército por crimes e quantos efetivamente desapareceram, já que a instituição diz não ter dados consolidados.

Os casos mais frequentes listados pelo UOL são de crimes financeiros — estelionato, peculato e corrupção —, seguidos por tráfico de drogas, homicídios e crimes sexuais como estupro e assédio.

"A filha [de Celio] recebe até hoje o prêmio da punição dele?", questiona Osvanir Rocha Neves de Souza, 49, um dos passageiros agredidos pelo ex-cabo.

Osvanir Rocha Neves de Souza, um dos passageiros do ônibus assaltado pelo ex-cabo do Exécito Celio da Silva Cabral, em 1995
Osvanir Rocha Neves de Souza, um dos passageiros do ônibus assaltado pelo ex-cabo do Exécito Celio da Silva Cabral, em 1995 Imagem: Ana Lima/UOL

Fuga do batalhão

O último rastro de Celio da Silva Cabral é o 50º Batalhão de Infantaria de Selva, em Imperatriz (MA), onde trabalhava.

Segundo o processo de execução penal, um oficial de Justiça o prendeu preventivamente em 3 de fevereiro de 1995.

A polícia conseguiu chegar até ele reconstituindo a cadeia de transmissão dos talões de cheque roubados.

Condenado por roubo, estupro, lesão corporal grave e atentado violento ao pudor, o militar foi recolhido "ao xadrez" do batalhão, segundo um ofício.

Ele seria "entregue à autoridade policial" assim que o comando entrasse em contato com "o Escalão Superior, a fim de cumprir normas internas referentes ao assunto".

O processo transitou em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso) em junho de 1999.

Só em março de 2000 o Ministério Público do Tocantins solicitou à Justiça que ele fosse encaminhado a Penitenciária de Pedrinhas, em São Luís (MA), argumentando que o Batalhão "não é estabelecimento penal".

O representante do MP destacou na carta a "periculosidade do sentenciado", um homem que, segundo a Justiça, tinha "personalidade vil, despojada de qualquer sentimento humano".

O cabo, no entanto, nunca chegou ao presídio.

Segundo o Exército, Celio foi excluído da corporação e entregue "à autoridade policial" em 18 de abril de 2000, "em bom estado físico e mental". Desde então, não teve mais notícias de seu paradeiro.

A Justiça considera essa data como o dia da fuga de Celio.

O advogado Ronaldo Ferreira Marinho confirmou ao UOL que seu cliente fugiu, mas disse não saber como ele conseguiu escapar, nem se ele teve ajuda de integrantes da Força.

A reportagem pediu entrevista com Celio, mas o advogado negou — o ex-cabo não iria querer falar.

O Exército também não explica como foi possível entregar o detento à polícia no dia 18 de abril se o delegado só recebeu a guia de execução penal de Celio no dia 26, como consta no processo a que o UOL teve acesso.

Paradeiro revelado

Hoje, aos 64, o ex-militar mora em Marabá (PA). Segundo o advogado, Celio nunca saiu do estado — e lá permanece, em contato com a família.

Antes do crime, Celio já havia se separado da esposa e instituído a filha mais nova como sua dependente e "herdeira" no Exército.

A Justiça só percebeu que Celio estava foragido oito anos após a fuga, quando o processo mudou de comarca e de juiz.

Na época, o responsável pela Penitenciária de Pedrinhas respondeu um ofício dizendo que ali não havia registro do sentenciado.

O Exército reforçou que havia entregado Celio às autoridades quando solicitado.

Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária do Maranhão confirmou que não havia registro do ex-militar nas cadeias do estado.

Celio foi procurado pela Justiça até julho de 2022, quando sua pena prescreveu.

Ele sempre se declarou inocente e frisa que não deve nada à Justiça. Seu advogado afirma que o inquérito foi "mal conduzido"; a sentença, "escrotamente mal feita", e a condenação, injusta.

Cenilda Gomes e o recorte de jornal com a foto de sua irmã, Cejane, e a notícia do crime em Nova Olinda (TO)
Cenilda Gomes e o recorte de jornal com a foto de sua irmã, Cejane, e a notícia do crime em Nova Olinda (TO) Imagem: Ana Lima / UOL

Viagem que marcou uma cidade

As excursões de fim de ano eram tradição na cidade de Crixás. Foi a irmã Cenilda quem convenceu Cejane a participar da viagem, em 1995.

A turma visitou toda a costa do Nordeste e deveria fazer o mesmo caminho de volta pela Bahia.

No 12º dia, porém, resolveu voltar pela região Norte para visitar o Jalapão (TO).

O ônibus, que parou num posto de gasolina da estrada para abastecer, foi avistado pelos quatro criminosos, que estavam num restaurante ao lado.

Segundo a investigação, eles estavam embriagados e decidiram seguir o ônibus de viagem para o assaltar. Levaram R$ 225 (cerca de R$ 1.500 hoje).

Como reação ao baixo valor reunido, os bandidos desferiram socos, pontapés e coronhadas em quase todos os passageiros. Também atiraram no teto do ônibus.

Cejane foi puxada pelos cabelos até o lado de fora, onde foi obrigada a descarregar as malas e colocá-las no carro dos bandidos.

"Umas duas até que eu levei, mas aí — não sei se eles estavam drogados ou se era pinga — começaram os estupros."

Depois dela, foi a vez de uma menina de 13 anos. Com a arma apontada para a cabeça da vítima, Celio a forçou a praticar sexo oral e depois a estuprou.

Dois dos assaltantes se revezaram no estupro de uma jovem de 17 anos.

Os agressores também a obrigaram a praticar sexo oral, deram chutes nas costas da vítima e tapas em seu rosto. Quando ela tentou fugir, a agrediram com uma vara.

"Eles xingavam muito", lembra Cejane. "Com tanta violência, não tem como você gritar, só encolhe e reza pra ver se sobrevive."

Mutirão para resgatar as vítimas

Duas horas depois, os quatro assaltantes fugiram. As vítimas permaneceram em choque na beira da estrada. A coordenadora da excursão, uma professora, caminhou até a rodovia pedindo socorro.

Cejane, baleada, foi levada a um posto de saúde em Araguaína (TO). Luzair Torquato, 53, acompanhou Cejane na caminhonete.

Moradoras da cidade fizeram um mutirão para resgatar as outras vítimas durante a madrugada. Os passageiros ficaram abrigados em uma escola até conseguirem um avião para voltar a Crixás.

Dos quatro assaltantes, apenas o ex-militar Celio foi encontrado e preso na época.

Julio Cesar Ferreira Marinho, outro assaltante, foi preso em 2017 em Mato Grosso.

Caracterizado como "pistoleiro profissional", ele usava o nome de Nonato Ferreira de Oliveira e portava documentos falsos expedidos no Pará.

Em 2019, a Justiça considerou que quatro de seus cinco crimes haviam prescrito — incluindo a pena de 66 anos pelos crimes cometidos contra os moradores de Crixás.

A Justiça entendeu que ele deveria cumprir apenas a sentença de 9 anos e 4 meses por um roubo.

Em 2020, essa pena também prescreveu, e desde então ele está em liberdade. O advogado de Julio Cesar é o mesmo que passou a defender o ex-cabo Celio da Silva Cabral em 2020.

Os outros dois criminosos, ambos policiais militares, nunca foram presos.

Segundo o inquérito, Valdenor Ferreira Marinho Júnior e Marcos Alves de Sousa se identificavam como "sargento" e "tenente" durante o assalto.

'Ele sabia que não ia ser punido'

Osvanir foi um dos convocados para fazer o reconhecimento do cabo do Exército que havia lhe agredido.

"Ele repetia que eu estava enganado. E ainda dizia que era da Farda [do Exército] e teria como se safar de tudo que acontecesse ali. O tempo todo ele sabia que não ia ser punido", conta Osvanir.

As vítimas sentiram medo e frustração após o julgamento. Elas relataram ao UOL ter recebido várias ligações anônimas ameaçando-as de morte.

Com sequelas físicas e psicológicas, Cejane hoje tem trauma de militares.

"Não confio mais em polícia nenhuma. Para mim, todos vão fazer a mesma coisa que fizeram comigo. Quando eu vejo um coturno eu até...", diz, baixando os olhos, sem completar a frase.

Wanessa Marinho Cabral foi procurada por telefone durante duas semanas e por meio das redes sociais, mas não respondeu ao contato da reportagem.

Procurado, o Exército confirma o pagamento do benefício, sem mais explicações.

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