Diversão drive-in é passado, futuro ou sintetiza as incertezas de ambos?
Foi em janeiro que ouvi pelo rádio, preso no carro e no trânsito, a notícia de um vírus que se espalhava pelo mundo e vinha a caminho do Brasil. O ano assustador está se acabando e continuo dentro da bolha sobre rodas, dessa vez dentro do único veículo na sessão de cinema das 18h45, em Alphaville, bairro nobre entre Santana de Parnaíba e Barueri (SP).
"É só sintonizar o rádio que você escuta o som do filme", passa a instrução o manobrista que está agora no papel de lanterninha no estacionamento que virou cinema drive-in.
O pôr do sol cinzento emoldura o telão, onde um personagem de"Tenet" dispara a frase: "Nós vivemos em um mundo crepuscular". Dois helicópteros atravessam a paisagem corporativa, e suas luzes e sons parecem fazer parte do filme de ação. O vento noturno entra pela janela e lembra o ar-condicionado das salas de exibição.
O escapismo, porém, não existe mais. Além do hálito da máscara e do álcool em gel, os escritórios vazios da vizinhança e os poucos clientes mensalistas partindo com seus carros, no meio da sessão, não deixam esquecer que estamos entre uma onda e outra de uma pandemia.
O próprio ambiente enlatado e acolchoado do carro virou mais um item do protocolo de segurança desse estado estacionário em que a civilização parou.
No filme, o protagonista vive duas narrativas simultâneas, uma delas reversa. O enredo é complexo. A realidade, porém, ajuda a explicá-lo. As cancelas de estacionamento se converteram em catracas de cinema deste mundo em que as noções de passado e futuro se apagam.
O entretenimento drive-in é sinal dos tempos: uma curiosidade de arquivo ressurge no presente, ganha força, logo começa a desaparecer, mas dá sinais, de alguma forma, de que pode perdurar. O pior de tudo é que dá para trocar o sujeito da frase anterior por "pandemia".
Estádio, hospital e drive-in
Apartado entre os anos do calendário, 2020 teve rave, comício, rodeio, culto evangélico, noite de terror, show sertanejo, escola de samba e chegada do Papai Noel... tudo em formato drive-in. O espectador converteu-se num transformer, com buzinas no lugar dos gritos, os faróis fazendo as vezes das lanternas de celular e os ingressos cobrados por carro, não por pessoa.
O caso do estádio do Pacaembu é exemplar: após três meses servindo como hospital de campanha, já em julho as enfermarias com respiradores foram trocadas por vagas para assistir a shows e filmes. Hoje (17) às 20h30, por exemplo, há por lá a exibição gratuita do filme "Odeio o Verão", dentro do Festival de Cinema Italiano.
Até abril último, o único cinema drive-in da América Latina estava em Brasília, sobrevivente residual de uma cidade projetada para carros. Depois do boom dos anos 1960, os drive-ins foram fechando e, a partir dos anos 1980, os frequentadores iam mais pelo escurinho do local. No final, esse tipo de entretenimento virou no Brasil sinônimo de motel para quem tem muita flexibilidade e pouco dinheiro.
Local de mentalidade automotiva, Alphaville já projeta uma vida pós-pandêmica. Por lá, a empresária Tina Alvarenga viu seus dois negócios empacarem na quarentena. A Alpha Filmes, distribuidora do premiadíssimo "Parasita", freou seus lançamentos. Além disso, o estacionamento Super Park Juruá diminuiu de 200 para 10 clientes mensalistas, com funcionários dos escritórios em home office. Alvarenga decidiu juntar os dois empreendimentos e criar o Alpha Cine Drive-in.
"Vários shoppings pegaram seus estacionamentos para a exibição quando as salas tiveram que fechar. Agora, com o cinema voltando, eles desativaram isso. Pelo que vi, este é o único cinema drive-in atualmente na Grande São Paulo. Investi, comprei projetor digital e acredito que é uma opção de lazer para a família na pandemia e depois dela", relata Tina.
A empresária percebeu que filmes infantis nos fins de semana atraem mais público — as sessões noturnas acontecem de terça-feira a domingo. Nessa época do ano, porém, ela tem sido procurada com outra demanda: escolas do entorno que buscam uma forma segura de fazer a formatura de suas turmas. "Estou aceitando o que vier, desde que não atrapalhe a programação."
Dinossauros no trânsito
Outra prova de que o mercado infantil é um nicho a ser explorado no formato drive-in é o Jurassic Safari Experience, show com 50 bonecões de dinossauros correndo em volta dos veículos. Com sessão de hora em hora, os ingressos esgotam com antecedência. A temporada no Parque Burle Marx, no Morumbi, foi prolongada até fevereiro. Após o sucesso paulistano, o espetáculo vai ser replicado no Rio em 2021, em um shopping da Barra da Tijuca.
Há bonecos mecânicos e outros manipulados por humanos. "As réplicas possibilitam interação com o público sem levar perigo de contágio. Esse é um dos segredos de tanta procura", opina Diego Biaginni, diretor do show.
O entra e sai de veículos a cada sessão congestiona o portão de entrada que está bem ao lado da marginal Pinheiros. Os adultos ao volante ficam estressados. E só relaxam quando entram no caminho de terra entre as árvores do parque. Agora é hora de as crianças ficarem nervosas, com as primeiras réplicas cheias de dentes surgindo no cenário.
"Vejo crianças pulando no colo da mãe e chorando, mas outras ficam na janela chamando os dinos mais carnívoros como se fossem pets", conta o ator André Almeida, que faz o papel de jovem cientista que clona e cuida das espécies.
Nos dias de chuva, ele diz que se sente falando sozinho, com o espectador atrás do limpador de pára-brisa. "Para as pessoas, é o momento de esquecer de tudo o que está acontecendo lá fora e viver outra experiência", reflete. O mundo contemporâneo parece mais assustador que o de 150 milhões de anos atrás.
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