Fim do drive-in ou novo ciclo? Como a música ao vivo sobrevive na pandemia
O impacto do novo coronavírus no mercado de música ao vivo ainda é incalculável, mas seus efeitos práticos já têm mudado a relação entre público, artista e toda a cadeia produtiva desse setor que é líder no segmento na América Latina.
Com a natureza de seu funcionamento ligada a aglomerações, ainda proibidas para barrar o avanço da Covid-19, a roda agora gira nas telas da TV e do computador, e, para um público muito reduzido, em apresentações em drive-ins. Mas quem trabalha com esse mercado já vê essa onda passar.
"Os drive-ins param de fazer sentido quando os bares e restaurantes voltam a abrir no formato até as 22h da noite. Já há opções para quem quer entretenimento à noite", observa Luiz Restiffe, diretor comercial da Agência InHaus, uma das primeiras a organizar apresentações ao ar livre em São Paulo, no Parque Burle Marx. Nessa configuração, o espaço, que antes comportaria 8 mil pessoas, passa a receber no máximo 480 pessoas, distribuídas em até 120 carros.
Apesar de a estrutura de palco ser semelhante ao "antigo normal", o dinheiro que circula nada lembra os velhos tempos. A equipe técnica também foi reduzida pela metade e o faturamento chega a apenas 15% do valor anterior. "O drive-in é pouquíssimo rentável, mas a gente não queria deixar o mercado parar por completo, porque muitas pessoas dependem disso", explica Restiffe.
De olho em como fazer o mercado se recuperar (e manter a estimativa de faturamento em US$ 43,7 bilhões em 2021, segundo a PwC Brasil e especialista em Mídia e Entretenimento), muitos empresários agora pensam num novo ciclo e possibilidades.
Com base no plano de reabertura de São Paulo, existe a possibilidade de que cinemas e teatros possam abrir em outubro para um público (bem) reduzido. Como isso se daria ainda é conversado com cuidado, mas estima-se que esses locais poderiam funcionar com 35% da capacidade, a depender da evolução da pandemia na cidade e de como o próprio público vai reagir.
Virtual, até onde der
Entre críticas e a ansiedade de voltar ao "antigo normal", o virtual, por ora, vai ampliar seu campo. E há muitos modelos sendo testados lá fora. O rapper Travis Scott levou seu potente show para a plataforma de jogos Fortnite e atraiu quase 30 milhões de espectadores ao vivo. O cantor australiano Nick Cave fez uma apresentação sozinho, ao piano, num teatro vazio, e cobrou o ingresso virtual de US$ 20 para a exibição de seu filme-concerto.
À exceção dos artistas populares, como os sertanejos e os medalhões da MPB, que negociam diretamente seus cachês com os patrocinadores ou plataformas, o Brasil ainda tateia formatos possíveis para artistas menores, com áudio e imagem em alta qualidade e monetização diferente.
"A paralisação agravou e escancarou um problema que nós, artistas independentes, sempre enfrentamos, de dificuldade de acesso a patrocinadores e curadorias", observa o cantor paraense Arthur Nogueira. Ele tem feito apresentações intimistas a partir de uma pequena estrutura de som montada em casa. Cada show tem um tema e, dependendo do valor ingresso, é possível bater um papo com o artista depois. "Os vínculos que criei com o público nos últimos meses foram muito importantes e aprofundaram minha relação com ele. Apesar da distância física, esse formato nos aproximou mais."
Esse calor humano à distância é o que fez o Twitch, plataforma da Amazon, deslanchar as transmissões de partidas e campeonatos virtuais de games. Agora, o foco é na música. É lá que Marcelo D2 abriu aos fãs o processo de criação de seu novo disco, e onde DJs conseguem rentabilizar a versão virtual de suas festas.
A premissa é criar uma base robusta de fãs, que podem colaborar diretamente das mais diversas formas. Durante a pandemia, artistas como Russo Passapusso e Pitty passaram a ter programas fixos no Twitch e a ser tratados como uma espécie de influenciadores — quem se arrisca diz que a monetização pode ser maior do que se ganha nas plataformas de streaming de música.
"Temos que aproveitar esse momento que é contra nossa vontade para se comunicar de outra maneira. O público quer coisas que não sejam apenas a música. Nós, como fornecedores de conteúdo, e que geramos essa expectativa, às vezes contra nossa vontade, podemos oferecer mais", observa o cantor Chico César ao TAB.
Como muitos artistas, o compositor paraibano fez uma série de lives nas redes sociais, mas buscava um formato que pudesse entregar uma qualidade de som e áudio superiores às limitações do Instagram. "Para não ficar só na boa vontade. Fazer música, mas não ouvir a música", observa.
Após negar participações no formato drive-in, por causa da locomoção, Chico fez sua primeira live paga dentro da ShowlivrePlay, que desde abril já vendeu 40 mil ingressos para apresentações online. Sua live foi a mais "vendida" da plataforma.
"É como uma casa de shows virtual. A gente vende ingresso, remunera o artista, divide a bilheteria com ele e toda a graxa [como são chamados os técnicos]", explica Walter Abreu, diretor executivo e co-fundador da ShowLivre, que há mais de uma década produz e transmite música ao vivo pela internet, e agora aposta na versão "play", que permite remunerar as lives.
"A transmissão online num primeiro momento gera uma certa frustração, e o objetivo é buscar novas experiências para essa prática. Então temos o chat, vídeos de bastidores, ingressos que permitem um 'meet and greet' com o artista no Zoom, como se você pudesse entrar no camarim dele. Ficou claro para os artistas que o relacionamento mais próximo é muito importante", observa Abreu.
Ele enxerga que a pandemia vai trazer mudanças substanciais não só na forma do público assistir a um show. "O modelo de artistas que gravam um disco por ano vai dar lugar ao artista que produz conteúdos com regularidade, que faz versões diferentes, que faz coisas inusitadas e que mantém frequência de publicação, porque as redes sociais têm essa velocidade", observa.
Abreu também está de olho na volta dos teatros — e acredita que, com a reabertura para um público reduzido, a transmissão via pay-per-view pode entrar de vez na cultura dos eventos ao vivo. "Na nossa experiência nesses meses, 75% do consumo tem sido de fora do eixo Rio-SP. É um dado interessante e promissor, porque essas pessoas têm dificuldade de acessar grandes shows."
Um festival que é um programa de TV
O Coala Festival tinha muitas ideias para sua sétima edição, em setembro: um novo palco, programação que se estendia pela semana e a transmissão dos shows na TV a cabo pela primeira vez. Com a chegada da pandemia, a transmissão deixou de ser um extra e passou a ser o veículo principal.
A data foi mantida e cinco artistas do line-up serão as atrações da edição virtual, que acontece em um espaço verde, em local mantido em sigilo em São Paulo. Os palcos foram redesenhados para integrarem melhor à natureza. Tudo para oferecer uma "experiência", item fundamental num festival.
"Estamos pensando o Coala como um programa de TV, na linguagem da MTV, buscando referências em grandes transmissões que existem lá fora, inclusive no esporte. O grande desafio é fazer uma experiência compartilhada, sentir que você está vivendo aquilo com outras pessoas. Estamos criando um festival virtual, não uma live", afirma Gabriel Andrade, um dos fundadores e curador.
A live de Caetano Veloso, transmitida pela GloboPlay, serviu de exemplo: monopolizou as redes sociais, e, em alguns bairros em São Paulo e no Rio, houve um ruidoso aplauso após as canções. Andrade aposta que o line-up do Coala, que costura novos (como MC Nego Bala) e importantes nomes da música brasileira (Novos Baianos em homenagem a Moraes Moreira e Gilberto Gil em encontro com o trio Gilsons são os headliners este ano), pode fazer o mesmo barulho.
E como ganhar dinheiro fazendo uma transmissão gratuita? Para Andrade, não é ano de lucro. "Se tudo der certo, mais pessoas vão conhecer. A gente tinha um sonho de internacionalizar o festival, então vai ser o primeiro passo, porque a galera de outro país pode conhecer o Coala online", observa. "Espero que em 2021 a gente volte tudo. Se não voltar, essa experiência já consegue instrumentalizar o festival para mais um ano de pandemia."
Outro festival dedicado à música brasileira, o Nômade fez diferente e abriu a venda de ingressos para sua próxima edição, com nomes confirmados de Caetano Veloso e Elza Soares, mesmo sem data prevista.
Uma das possibilidades é que o festival aconteça só em 2021 para um público reduzido. Muitos formatos estão sendo pensados, inclusive de marcação no chão ou cercas para grupos de até quatro pessoas, a exemplo do show do cantor Sam Fender em Newcastle, na Inglaterra, na última quarta-feira (12).
A estratégia das vendas era conscientizar o público (12 mil pessoas) a apoiar a indústria neste momento delicado. Dessa forma, o festival conseguiu pagar adiantadamente a equipe de segurança, limpeza, técnicos e parte dos cachês. "Quando os eventos voltarem, a gente precisa desse cara do bastidor com saúde financeira trabalhando com a gente, e não quebrado, senão a indústria como um todo quebra", diz Juliano Libman, sócio da Agência Inhaus, organizadora do evento.
Profissional de áudio e técnico de monitor, Lazzaro Jesus é um dos afetados nesse setor invisível, difícil de contabilizar, mas com perrengues bem fáceis de serem percebidos. Ele faz as contas: uma equipe técnica, que tem em média de 12 a 32 pessoas, cai para 10% numa produção durante a pandemia.
"Muitas equipes fixas foram despedidas com a promessa de recontratação quando os shows voltarem ao normal. A maioria dos freelancers são microempreendedores e, como todos, estão sem apoio do governo. Muitos não se enquadram no auxílio emergencial nem na Lei Aldir Blanc", explica.
Jesus é idealizador do Backstage Invisível, iniciativa que surgiu na urgência de garantir auxílio aos profissionais paralisados, mas que acabou ganhando status de ONG. A campanha tem entrado em algumas lives e alcançou seu pico de doações durante a live de Gilberto Gil, que disponibilizou, na transmissão, um QR Code para doações "Agora estamos no momento do desaquecimento. As doações estão diminuindo e nossa ideia é dar assistência continuada para as famílias cadastradas."
Para o músico Chico César, a pandemia fará com que a indústria absorva por completo o virtual como possibilidade de trabalho. O que falta é encontrar uma forma para que quem fica atrás das cortinas. "É o pessoal mais prejudicado, não só financeiramente, mas porque está impedido de se manifestar, de se expressar através do seu trabalho. Vai ficando uma coisa muito represada. A gente vai ter de olhar com urgência para esse setor."
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