Fernanda Torres: 'Censura era um fantasma, minha mãe foi ameaçada de morte'
Para Fernanda Torres, 59, o filme "Ainda Estou Aqui" é a cara do Brasil: um retrato incômodo de um país que sempre tenta "esconder sua sujeira embaixo do tapete" para evitar a "explosão social".
Fernanda interpreta Eunice Paiva, viúva do deputado Rubens Paiva, morto pela ditadura militar em 1971. O exército não admite o crime e ela tem que criar cinco filhos sozinha, sem explicar a ausência do pai.
Um dos filhos é o escritor Marcelo Rubens Paiva, que contou a história em livro de 2015. A adaptação para o cinema, dirigida por Walter Salles, evita o "melodrama" e segue o "silêncio de Eunice", diz Fernanda.
"Ainda Estou Aqui" ganhou com Murilo Hauser e Heitor Lorega o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza, onde foi aplaudido por mais de dez minutos. Agora, a equipe está em campanha por indicações ao Oscar.
Fernanda Torres fez uma pausa para falar ao UOL sobre sua visão do Brasil a partir do filme, sua própria infância durante a ditadura e sua carreira entre o drama e a comédia.
Leia os principais trechos abaixo.
Drama sem melodrama
Fernanda Torres - A Eunice representa uma heroína contraditória que nunca existiu para o Brasil, fez coisas incríveis e nunca soubemos.
O Walter nos obrigou a não fazer um melodrama. A câmera não empurra as emoções, a música não sente por você. O silêncio de Eunice faz com que você sinta por ela. Ele provoca uma empatia genuína.
Ela representa essa compreensão trágica de que a vida exige continuidade mesmo após a tragédia, sem espaço para piedade ou fraqueza. Entende que precisa seguir adiante, apesar de tudo, e que não pode contar aos filhos de 9 a 18 anos o que aconteceu com o pai.
Ela quer preservar a inocência deles e os ensina que a vida segue. É uma posição muito grega, trágica e feminina ao mesmo tempo. E o filme mostra essa transformação: ela deixa de ser apenas dona de casa e mãe para ser pai também, se tornando uma mulher inteira.
Atuação da mãe, Fernanda Montenegro
O rosto da mamãe é como se fosse um retrato de todos os papéis que ela já fez na vida. Um ator velho carrega milhões de almas dentro de si.
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Quero receberE ao mesmo tempo, tem um vazio absoluto [ela interpreta Eunice já mais velha, com Alzheimer]. A ideia de ver minha mãe "vazia" naquele papel é algo muito impactante.
O rosto da mamãe representa tanto a memória da Eunice, que se foi, quanto a nossa memória dela, que ela carrega em si. Ver aquele rosto vazio é um choque, emocionante."
Criança na ditadura
Eu cresci na ditadura militar. Para sair do Brasil você tinha que pagar um imposto compulsório. O Brasil era uma espécie de prisão, fechado para o mundo.
Nasci no Rio, mas meus pais foram para São Paulo trabalhar. Em 1970, quando a coisa piorou, o sócio do meu pai, Maurício Segall, foi preso, como Rubens Paiva, porque estava ligado à guerrilha de alguma forma.
Eu tinha cinco anos e não entendia bem o que estava acontecendo, por que mudamos de São Paulo, por que vivíamos sem meu pai.
A censura era um fantasma na minha família. Você fazia uma peça de teatro e, no dia da estreia, o censor podia proibir. Meu pai produziu "Calabar" com Rui Guerra e Chico Buarque e quase foi à falência porque foi proibido.
Cresci com aqueles figurinos num galpão na casa da minha avó, esperando para um dia serem usados.
Mais tarde, meus pais, que estavam fazendo uma peça do Millôr Fernandes, receberam ameaças de morte se minha mãe subisse ao palco.
Meus pais contavam uma história maravilhosa de uma reunião de classe artística. Estavam no Teatro Ruth Escobar, quando alguém anunciou: "Gente, avisaram que tem uma bomba no teatro." A [atriz] Lélia Abramo disse: "Vamos ficar, resistir e morrer pela revolução!".
Minha mãe olhou para o meu pai e disse: "Fernando, nós temos duas crianças em casa; vamos embora." [Risos] Foi um período assim, de medo.
Mas, no auge da ditadura mesmo, eu era muito criança. Quando realmente despertei, foi na adolescência, com a anistia e a volta dos movimentos estudantis, o BRock.
Eu sou dessa época, da luz que aparece depois de conhecer a escuridão, da saída da ditadura para a falência econômica do Brasil. Saímos da ditadura e entramos numa longa depressão econômica.
Assim como Eunice, o Brasil é um país que engole o choro?
O Brasil é o país do conchavo e sempre tenta resolver os problemas para que nada exploda. Há essa constante preocupação com a explosão social, então procuramos soluções para que tudo se mantenha igual, sem grandes rupturas.
O Brasil é o "homem cordial" do [historiador] Sérgio Buarque de Holanda, com tudo de bom e ruim que isso carrega.
A Comissão da Verdade, que o filme aborda, foi o momento em que a família de Rubens Paiva finalmente entendeu o que aconteceu com ele.
Eu acho que o Brasil, muitas vezes, chora, sim, desesperado. O que temos são soluções que varrem a sujeira para esconder debaixo do tapete, arrumam a casa para seguir em frente, mas o filme mostra algo diferente.
Fernanda e o Brasil entre comédia e tragédia
Devo minha "sobrevida" com as novas gerações a essa coisa incrível chamada meme. Considero o meme e a figurinha como uma linguagem superior.
Esses dois personagens [Vani, de "Os Normais", e Fátima, de "Entre Tapas e Beijos"] viraram icônicas através dos memes. Eu gosto de fazer comédia porque ela torna a TV uma indústria mais leve.
Mas nunca dividi essa coisa do ator cômico versus o ator sério. Gene Wilder, por exemplo, é sempre trágico e hilário ao mesmo tempo. No entanto, no cinema, minha trajetória foi mais dramática.
Hoje, o cinema nacional se dividiu: filmes de classe média são comédias, e os dramas focam nas questões sociais. Faz sentido, afinal, que drama uma burguesia teria diante dos problemas sociais do Brasil?
Então, o cinema foi para os temas sociais, e o drama de uma mulher branca perdeu espaço.
O que o Walter fez foi encontrar uma história pessoal digna de ser contada: uma mulher de uma família burguesa, progressista e branca, que entende que a violência que sofreu é a mesma das periferias, a violência de Estado.
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