'Senna': como Hollywood rodou e a Netflix conquistou uma família implacável
A estreia da série "Senna" na Netflix, nesta sexta-feira (29), é a manobra final de um rali de três décadas para recriar a aura de um dos maiores ídolos brasileiros em uma produção de ficção.
Projetos de filmes em Hollywood que envolviam astros como Antonio Banderas e Sylvester Stallone rodaram no caminho, ainda nos anos 1990.
O controle implacável da família sobre a imagem e história de Senna, junto do alto custo para reconstituir as corridas de Fórmula 1, sempre foram os maiores obstáculos.
No fim, a série foi viabilizada no Brasil por produtores que souberam conceder e investir da forma que os Senna esperavam.
"Normalmente produtoras estrangeiras compram direitos e contam a história como querem. Isso não funcionaria com a gente", avalia a sobrinha Bianca Senna, diretora da empresa que cuida da marca do tricampeão.
Projetos andaram e voltaram ao zero até o formato da série atual, que não nasceu na Netflix e demorou 12 anos para ficar pronta. O serviço de streaming entrou no projeto em 2019.
A plataforma não revela o custo, mas diz que "Senna" é a produção mais cara da história da empresa no Brasil, carro-chefe de um investimento de R$ 1 bilhão no país entre 2023 e 2024.
O consenso com os herdeiros teve dois pontos: mostrar um Senna emotivo, "menos cabeça e mais coração", que eles não viam nos roteiros anteriores, e ter uma produção do tamanho da carreira do ídolo.
A série tem 231 atores de nove países e 14 mil figurantes. As gravações aconteceram no Brasil, Argentina, Uruguai, Reino Unido e Mônaco.
Como Hollywood rodou
"A família queria participar e ter certeza de que [a série] faria jus à personalidade do Ayrton. Durante esses anos, alguns roteiros saíram muito fora disso. Por isso demorou bastante", afirma Bianca.
Em 1996, Viviane Senna, mãe de Bianca, anunciou que Antonio Banderas viveria Ayrton no cinema. Era um projeto do ator espanhol e do diretor norte-americano Michael Mann ("O Informante" e "Ferrari").
Correndo por fora, o diretor finlandês Renny Harlin, parceiro de Sylvester Stallone em "Risco Total", não teve o ok da família.
Harlin e Stallone, fã de Senna, desistiram da história do ídolo, mas fizeram um filme de corrida de Fórmula Indy, "Alta Velocidade" (2001). Custou US$ 94 milhões e foi um fracasso: arrecadou US$ 54 milhões de bilheteria.
A "bomba" de Stallone afundou a ideia de Banderas. A produção não se acertava com a família, enquanto Hollywood perdia a fé no tema.
"[Em 2001] Fizeram um filme muito ruim sobre automobilismo, e Hollywood se convenceu de que a F1 era um assunto ruim", disse Banderas ao UOL, em 2015.
Viviane lembrou ao UOL, em 2010, que a Warner, que faria o filme com Banderas, tinha uma "abordagem comercial demais" que "não refletia o Ayrton".
"Não dava para aprovar, então não chegamos a um acordo", ela disse.
Documentário comedido, mas vitorioso
Sem acordo nem recursos, a ideia de um Senna ficcional voltava ao zero. A família liberou uma ideia mais barata e simples: o documentário de 2010 dirigido pelo inglês Asif Kapadia (de "Amy" e "Diego Maradona").
O filme não trouxe grandes revelações sobre Senna. A obra mostra as etapas básicas da criação de um ídolo obstinado pela vitória em um país derrotado pela crise econômica.
O roteiro autorizado mostra as brigas de Senna com dirigentes da Fórmula 1 e com o francês Alain Prost, além das críticas do rival ao estilo agressivo de Senna.
A história ignora a rivalidade com Nelson Piquet e pouco retrata o namoro com Adriane Galisteu. Desviando de polêmicas, ganhou o prêmio de melhor documentário no Bafta, o mais importante do cinema britânico.
O fio narrativo de Kapadia ajudou a desatar o nó da futura ficção. O inglês foi chamado para opinar no roteiro da nova série, com caminho semelhante, que passa batido da mesma forma por Piquet e Galisteu.
Brasileiros assumem missão
Em 2012, os produtores executivos e irmãos paulistanos Fabiano e Caio Gullane (de "Que Horas Ela Volta?" e "Carandiru") começaram a pensar no projeto de um filme ficcional sobre Senna.
Foi uma lenta aproximação e "construção de confiança", define Bianca.
Em paralelo, um roteirista com ousadia juvenil —à la Senna— ajudou no acordo. "Eu era um moleque de 22 anos que achava que ia fazer um filme do Senna", lembra o paulistano Álvaro Mamute.
"Fiz um roteiro em casa e rodei a internet toda atrás do email da Bianca em 2017. Por algum motivo ela respondeu e mostrei a ela", conta Mamute.
A sobrinha do piloto confiou e o indicou o jovem fã à equipe de roteiristas da Gullane Filmes.
Além de confiança, era necessário dinheiro. Em 2019, o projeto deu a sorte de entrar a reboque na corrida dos streamings de vídeo no Brasil.
Netflix busca brasilidade
A Netflix virou parceira da Gullane porque buscava investir no país para seguir na frente de concorrentes externos, como Prime, da Amazon, e internos, como Globoplay.
Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix no Brasil, explica que buscava histórias grandiosas, mas com cara local. Senna era a oportunidade perfeita. O projeto cresceu de filme para uma série.
Como modelo para "Senna", ela cita "Round 6", série feita para os sul-coreanos que virou a mais vista do mundo em 2021. A fórmula é mirar um sucesso local e, com sorte, expandir em impacto global.
"A gente sabe que os brasileiros gostam de se ver refletidos na tela. É fácil se distrair com um olhar universal e fazer uma série genérica", destaca Elisabetta.
A Netflix também estava animada com o sucesso da série documental "F1: Dirigir para Viver" —produzida pelo britânico James Gay-Rees, o mesmo do documentário de 2010.
Elisabetta assumiu a Netflix no Brasil em 2021. A série tinha sido anunciada um ano antes, mas nem havia roteiros aprovados.
Ela fechou com o ator Gabriel Leone (de "Verdades Secretas", "Dom" e "Ferrari") e o diretor-geral Vicente Amorim ("A Princesa de Yakuza" e "Irmã Dulce").
Afinal, quem era Ayrton Senna?
A relação entre família, produtores e Netflix estreitou de vez. "Com a entrada do Vicente e do Gabriel, a gente teve a segurança de que todos estavam alinhados no que é o personagem do Ayrton", diz Bianca.
A família abriu um acervo privado de Ayrton para Vicente e Gabriel. Bianca lembra que eles queriam "desmistificar a personalidade" de Senna e "quebrar preconceitos" sobre ele.
"No trabalho, ele vivia sob muita pressão, então era sério, fechado. Por isso as pessoas acham que ele era só 'mental', racional, mas ele era o oposto disso: muito mais emocional, coração", defende a sobrinha.
"Como ele era muito privado, as pessoas não sabiam disso. Essa era nossa maior preocupação."
Eles buscavam recriar a vida íntima de Ayrton, que nem o documentário autorizado havia explorado. "O Gabriel me ligava várias vezes para perguntar: 'Como ele reagiria aqui?'."
"Ter acesso a cartas, gravações telefônicas e o convívio com elas abriu uma intimidade fundamental para mim. Não estava escutando as histórias do Ayrton piloto, mas do irmão, do tio, do jeito dele", diz o ator.
Para Vicente Amorim, o piloto calculista e o jovem passional eram o mesmo Senna. "O coração respinga e influi no lado técnico, nas relações familiares, amorosas e até na luta política dele na Fórmula 1."
O desafio de Gabriel foi encarnar essa figura que fala com calma sobre o carro com engenheiros e, logo depois, grita com desespero sobre regras com dirigentes.
"Por mais que ele seja posto num lugar santificado, acho que ele era quase o oposto disso. Era esse piloto genial, mas tinha uma forma honesta de se expressar que o conectava com as pessoas", diz Gabriel.
Ajuda argentina
Os roteiros dos seis episódios só começaram a ser escritos no início de 2023. No segundo semestre, aconteceram as gravações.
Mesmo com o bolso aberto da Netflix, seria inviável gravar em todas as pistas originais. "Começamos a pesquisa nos circuitos europeus e logo entendemos que não seria a melhor estratégia", diz Caio Gullane.
"Por isso, aprofundamos a pesquisa na América do Sul e encontramos na Argentina autódromos viáveis", diz o produtor.
Outro motivo foi o engenheiro argentino Tulio Crespi, 86, ex-piloto fanático por réplicas, que ajudou a recriar os 22 carros usados na série.
A questão Galisteu
Os carros e manobras da vida real são recriados com detalhismo. As relações pessoais não têm a mesma precisão.
Um exemplo é a representação das duas namoradas mais famosas: Xuxa e Adriane Galisteu. A primeira, mais próxima da família, aparece proporcionalmente muito mais do que a segunda.
Ao UOL Adriane diz que nunca foi procurada pela equipe da série, mas não quis falar mais sobre o assunto.
Vicente justifica: "Não mostramos o ano de 1993. Por acaso, é o ano em que a relação com a Adriane foi mais intensa. E de 1994 a gente escolheu mostrar só o fim de semana de Ímola [da morte do piloto]".
A temporada ignorada pela série é considerada por jornalistas e fãs como uma das melhores de Senna na Fórmula 1, mesmo sem o brasileiro ter conquistado o título.
A invasão na pista de Interlagos após vitória sob chuva torrencial e as quatro ultrapassagens na primeira volta em Donington Park, na Inglaterra, fazem parte da antologia do esporte brasileiro.
"É uma pena que as pessoas fiquem com uma preocupação tão grande sobre isso [a relação com Galisteu], porque não foi por isso que o Ayrton virou quem ele é", diz Bianca.
Vicente diz que os herdeiros participaram "de forma positiva, mas nunca impositiva". Elisabetta diz que o trabalho com a família foi menos de aprovação e "mais de troca".
Bianca é mais direta. Diz ter chorado de alegria com a edição final e ressalta: "A família participou da construção de todos os roteiros, deu todas as aprovações".
* Colaborou Weslley Neto
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