Jogo do bicho vai morrer, e bets dominaram sonhos do povo, diz historiador
"O jogo do bicho vai acabar", disse o historiador Luiz Antonio Simas em uma palestra no bairro do Bixiga, em São Paulo, no meio de uma rua em que ainda funciona uma banca de bicho.
No evento de lançamento de "Maldito Invento dum Baronete - Uma Breve História do Jogo do Bicho" (Ed. Mórula), o carioca explicou a previsão sobre o tema de seu livro.
O bicho deixou de renovar seu público e se choca com um esvaziamento da cultura de rua e com "um processo violento de entrada das bets no mercado", ele descreve.
"O mundo está sendo observado pela tela. A rua não está sendo frequentada. A cidade é pensada a partir da circulação do carro e da mercadoria. O bicho é um sintoma", diz Simas.
O livro descreve um momento de debate intenso no país: quais jogos devem ser legais ou clandestinos? Poderia ser o Brasil de 2024, mas era o de 1895.
Há 130 anos, o jogo do bicho virou fenômeno popular, mesmo ilegal. A elite o reprimiu com "critérios vagos sobre interesse público, moralidade, civilização, família, crime, bem comum e degeneração".
"A repressão foi em cima da loteria mais pobre e negra — o jogo do bicho", Simas resume.
O mergulho do livro na cultura dos apostadores não ignora os objetivos capitalistas do banqueiro, dos barões do século 19 às associações criminosas dos séculos 20 e 21.
O historiador indica semelhanças e diferenças na entrevista entre o velho mundo do bicho e o novo universo do "tigrinho" e jogos de celular.
Ambos responderiam de forma lúdica aos sonhos de pessoas que vivem à margem do projeto brasileiro de exclusão social.
Mas, enquanto o bicho é um jogo de apostas baixas e de socialização na rua, as bets sugam dinheiro e jogam a cultura coletiva na experiência individual da tela.
Simas aparece em produções recentes de TV sobre o jogo do bicho, como a série "Vale o Escrito", sucesso em streaming em 2023, que será exibida na TV Globo a partir de 29 de outubro.
Mesmo sendo entrevistado e elogiando os programas, Simas diz que eles o incomodam por tratarem o jogo do bicho apenas como "a história do crime no Brasil".
O que ele propõe no livro é uma "história social do jogo do bicho". Antes da palestra — ou "aula de rua", como o professor e escritor prefere chamar — , ele falou com o UOL.
UOL - Seu livro narra outro momento em que o Brasil tentava decidir qual jogo seria "bom" ou não para o país. Você mostra uma contradição entre o jogo do bicho e o turfe.
Luiz Antonio Simas - Em 1892, já havia muitas loterias no Rio. O bicho surge visando atrair gente para o Jardim Zoológico de Vila Isabel. Era um empreendimento capitalista do Barão de Mauá, que loteou o bairro para vender terreno.
Mas, em pouco tempo, ele toma as ruas e se populariza demais. Vira a loteria de uma cidade pobre, de descendentes de africanos. Em 1895, ele já começa a ser proibido.
O que espanta é a quantidade de loterias legalizadas que havia, mas a repressão vai exatamente na mais pobre e negra. Você só consegue entender isso num contexto em que havia uma criminalização de todas as práticas lúdicas e culturais não brancas.
No turfe, já havia denúncia de manipulação de resultados, e não tinha a menor restrição — pelo contrário, era considerado elegante apostar em cavalos.
Engraçado que os bicheiros hoje têm muita atração por cavalo. Até porque o embrião de cavalo é um dos mercados que mais favorecem a lavagem de dinheiro. É uma ciranda.
A primeira frase do seu livro é: "Só existe jogo do bicho porque primeiro a gente sonha". O sonho do pobre é o pesadelo do rico?
É por aí. Era um momento em que o Brasil pensava um projeto civilizatório. Para as elites e uma geração de intelectuais, ele só seria viável com o apagamento das culturas não brancas.
Se você me pergunta uma frase que sintetiza o livro, é a seguinte: não era uma política de combate à pobreza, era uma política de combate ao pobre.
Estamos conversando aqui no bairro do Bixiga, em SP, onde vi outro dia esta cena: num bar de forró, um cara na plateia dava tragos no narguilé e jogava no tigrinho, parecia em transe. Remete ao que você fala da festa, do sonho no jogo do bicho.
E de andar no fio da navalha, do perigo. Se você discutir o tigrinho hoje, vai pensar nesse aspecto lúdico do jogo do bicho. Não é loteria de número. É uma lógica onírica, do animal.
Isso cruza com muita coisa: o sonho, o extraordinário, a superstição, a magia cigana, a macumba.
A história cultural do jogo do bicho é muito interessante. São práticas culturais que incomodam, subalternizadas, da qual o jogo faz parte, para o bem ou para o mal.
É um incômodo que não parece que vai passar.
O cara [jogador] praticamente não tem chance de projeção social pela via formal. O país é um projeto de exclusão. Você quer o quê? O jogo do bicho, no auge, era um mercado informal que empregava 300 mil pessoas no Rio.
Até hoje é uma loteria de pobre, barata. Ninguém joga uma fortuna no jogo do bicho, ao contrário do tigrinho e essas coisas.
É o garçom que quer um dinheirinho da cerveja. É a senhorinha que sonhou com o falecido marido e vai apostar no número do túmulo. Práticas culturais de rua que a gente tem tendência a desconsiderar.
Você citou uma incoerência de 1895 e eu cito uma de 2024: entre as bets aprovadas pelo governo está uma chamada 'Bicho no Pix'.
Olha isso. É importante citar uma coisa sobre o jogo hoje. Falo com conhecimento de causa e contato com gente nas entranhas do negócio. Eu acho que o jogo do bicho propriamente dito vai acabar.
Primeiro porque já não rende mais para os banqueiros. Chamar de "banqueiro do bicho" hoje é quase vício de linguagem. O bicho não chega a representar 10% do faturamento de um cara de primeira linha.
E, ao contrário das bets, ele não renovou público. Para escrever esse livro, eu passava as tardes em uma banca, e não tem apostador com menos de 40 anos.
Mas as outras loterias, e as que porventura se inspiram no bicho, estão com tudo.
Essa energia do sonho popular vai para as bets? O universo digital pode dominar esse buraco que vai ficar?
Sim, porque é humano. Não adianta achar que vai lidar com isso simplesmente com política pública de repressão.
Existem outras camadas difíceis. A gente está falando de um país tremendamente excludente, em que o próprio direito ao sonho é roubado.
Você diz que não quer ser inocente ao contar a história do bicho. Como?
Você não pode contar uma história que considere a questão exclusivamente criminal, nem romantizar e desconsiderar que ela cria teias com organizações criminosas.
É complexo: ele nem se resume ao crime e nem deixa de ter aspectos que envolvem uma série impactante de atividades ilícitas.
Evitar essa inocência também é importante hoje, na nova discussão sobre qual jogo deve ser legal ou não?
Sim, que a gente entenda a complexidade histórica. A gente vive num país marcado por essa carga de exclusão social. Outras dimensões do jogo devem ser consideradas. Ignorar o sonho do povo não vai funcionar.
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