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Ninguém mais ouve um álbum inteiro, só o brasileiro. "Culpa" é do sertanejo

Com toda sua discografia no formato ao vivo, Marília Mendonça impulsiona o hábito do brasileiro em ouvir um álbum na íntegra. Na foto, show na Praça da Estação, em Belo Horizonte - Flavio Tavares / O Tempo
Com toda sua discografia no formato ao vivo, Marília Mendonça impulsiona o hábito do brasileiro em ouvir um álbum na íntegra. Na foto, show na Praça da Estação, em Belo Horizonte Imagem: Flavio Tavares / O Tempo

Tiago Dias

Do TAB

03/03/2020 04h00

Muito se discute sobre a forma como consumimos música na era do streaming. Saudosistas do vinil e do CD defendem que a melhor forma de se conhecer a fundo algum artista é com a imersão em um álbum completo. Mas, num mundo dominado por playlists forjadas por algoritmos e catalogadas conforme o humor dos ouvintes, a importância de se ouvir um trabalho completo parece perdido — à exceção do Brasil.

Um levantamento inédito feito pela plataforma Deezer com 8 mil usuários nos Estados Unidos, França, Alemanha e Brasil, mostra o óbvio. Mais da metade dos entrevistados ouve menos álbuns hoje do que há 10 anos. E 40% disseram preferir dar o play em playlists a ouvir álbum de um determinado artista. As razões são muitas e vão desde a falta de tempo do ouvinte aos próprios músicos que, na visão dos usuários, já não produzem mais álbuns como antes.

Apesar de aqui ser a terra onde o funk e o hit do Carnaval pingam de forma viral e fugaz no YouTube e nas plataformas, o Brasil ainda consome mais álbuns completos do que a média global. Um total de 21% dos entrevistados brasileiros afirmou que no último mês ouviu 15 álbuns ou mais na ordem. Na França, a mesma porcentagem disse não ter ouvido um álbum sequer no mesmo período

O motivo para que no Brasil esse hábito não tenha se perdido por completo no ambiente do streaming é apenas um: 44% dos brasileiros ouvidos na pesquisa indicam o sertanejo como o gênero preferido na hora de escolher ouvir um disco inteiro. E não é à toa. É desse segmento que sai a maior parte dos lançamentos no formato tradicional, ao lado do pop (36%), rock (33%) e gospel (30%), seguindo também a ordem de preferência dos entrevistados.

"O rock, que já teve um momento mais forte do que hoje em dia aqui no país, também aparece na pesquisa global como um dos fortes na preferência de quem ouve álbuns completos: o que nos leva a análise de que os roqueiros têm um comportamento diferente. Digamos que sejam mais fiéis à obra completa", observa Polyana Ferrari, gerente de comunicação da Deezer no Brasil.

Por mais fiéis que os roqueiros sejam, o gênero não aparece na lista dos álbuns mais ouvidos de 2019. Para se ter uma ideia, dos 20 mais ouvidos na Deezer, apenas quatro não são do sertanejo. Em primeiríssimo lugar, a cantora mais popular do Brasil. Marília Mendonça, liderou as plataformas digitais com seu quarto trabalho, "Todos os Cantos", onde cada canção foi gravada ao vivo em um estado brasileiro.

Seria esse o conceito que chama os ouvintes a dar o play, de cabo a rabo, num disco de sertanejo? "Não me parece que o sertanejo tenha preocupação com o conceito do disco", observa o jornalista André Piunti, especialista e pesquisador de música sertaneja. "No fundo, eles tentam gravar todas as músicas que tenham alguma chance de ser um hit, esperando que todas estourem. Esse é o conceito, se é que dá para chamar assim."

Luan Santana durante turnê de "Nosso Tempo É Hoje", em 2014, um álbum ao vivo -- e conceitual - Rodrigo dos Anjos/AgNews - Rodrigo dos Anjos/AgNews
Imagem: Rodrigo dos Anjos/AgNews

Surra de hits

Diferentemente do funk, onde os singles se atropelam em lançamentos quase simultâneos, a estratégia aqui é aglutinar o número máximo de hits, retendo o ouvinte até a última faixa. Para que essa experiência dê certo, é necessário manter a energia no topo do começo ao fim, e nada melhor do que uma gravação ao vivo, cheio de gritos, coros e falas do artista para manter a "vibe" no lugar.

Assim como quase toda sua geração, Marília Mendonça não tem um disco pensado em estúdio na sua discografia. Sua estreia se deu justamente com um álbum chamado apenas de "Ao Vivo", lançado em 2016. Ainda desconhecida, a estratégia do repertório certeiro lhe rendeu, de cara, dois mega hits, "Como Faz com Ela" e "Infiel". Mas, ao contrário do que dizia o título do álbum, ele foi gravado longe dos palcos, e sim num estúdio, numa tacada só — um esquema bastante usado em discos sertanejos na década passada, quando a tecnologia e o dinheiro ainda era empecilhos para uma gravação bem feita de um show.

A Bíblia do sertanejo universitário

Os dados da pesquisa dizem muito sobre o comportamento do ouvinte brasileiro, mas revela mais sobre como se alimenta a indústria de sucesso do sertanejo — hoje, o gênero musical que é preferência de 33% dos brasileiros, segundo pesquisa da J.Leiva sobre os nossos hábitos culturais, detalhada nesta edição do TAB Explica.

A geração que deu início a essa hegemonia musical, chamada de sertanejo universitário, teve como pedra angular justamente um disco ao vivo. Lançado em 2001, "Acústico - Ao Vivo" fez a dupla Bruno e Marrone se tornar nacionalmente conhecida, vender mais de 3 milhões de cópias (em um momento em que a indústria fonográfica ruía com a proliferação da pirataria e do mp3) e a popularizar o formato no segmento. Se quem não gostava do ritmo se lembra até hoje de "Dormi na Praça", imagina o impacto para uma geração de novos músicos e cantores.

"A galera que apareceu alguns anos depois, em 2005, já chamados de universitários, bebeu tudo daquela fonte. Era um disco acústico mais cru, mais roots, não muito rebuscado. Aquilo ali influenciou o universitário que gravava na garagem, no barzinho com amigos", observa Piunti. "Não tem aquela perfeição da produção depois, por isso casa muito com essa geração. A galera gosta da festa, gosta do barulho de copo de cerveja, gente gritando. Pouca gente dessa geração nova fez disco de estúdio." O formato virou regra também com artistas do samba e do pagode, como Ferrugem e Dilsinho.

Blener Maycom, produtor responsável pelos hits "50 Reais" e "Jenifer", que impulsionaram a carreira de Naiara Azevedo e Gabriel Diniz, diz que a energia de uma gravação ao vivo é a base do sucesso dessas músicas.

"No estúdio não tem esse calor do público, então não tem adrenalina. A gente gosta de gravar ao vivo para exatamente pegar o artista como ele é, para que não aconteça, como em muitos casos, você ir ao show, ver que a energia do artista é uma, e quando você escuta no CD ver que não tem nada a ver. Nós do sertanejo queremos aproximar o máximo o artista do show", explica o produtor.

O produtor Dudu Borges segura a placa de diamante duplo de João Gustavo & Murilo, pela marca de 250 milhões de execuções no streaming de Lençol Dobrado - Breno Wallace - Breno Wallace
O produtor Dudu Borges segura a placa de diamante duplo de João Gustavo & Murilo, pela marca de 250 milhões de execuções no streaming de Lençol Dobrado
Imagem: Breno Wallace

Show é o que importa

"Conceito, coesão e aclamação". É assim que muitos fãs do pop comentam quando um álbum completo, como o de Anitta e Ariana Grande — as únicas do gênero a figurar na lista dos álbuns mais ouvidos de 2019 da Deezer— é lançado.

No caso do sertanejo, o formato de um disco ao vivo pode não render produção esmerada e inovação musical, mas garante a ovação dos seguidores. Mais importante, faz girar a principal roda dessa engrenagem: a agenda de shows.

Na pesquisa da Deezer, 85% dos brasileiros disseram que procuram ouvir um álbum inteiro antes ou depois de assistir aos artistas ao vivo. "Se faz mais álbuns no sertanejo porque é necessário abastecer o fã com conteúdo, para que quando ela for ao show ela tenha interesse e cante mais de uma música", observa Dudu Borges, considerado um dos magos da produção no segmento. Ele esteve à frente de álbuns de Luan Santana, como "Nosso Tempo é Hoje" e "1977" — com repertórios costurados por um roteiro ou temática, algo raro nicho.

Em 2019, com seu projeto Analaga, Borges surpreendeu ao misturar elementos eletrônicos com o sertanejo da dupla João Gustavo e Murilo. Emplacou a música "Lençol Dobrado", e o EP conceitual "Espelho no Teto", entre os mais ouvidos nas plataformas.

"O artista que realmente se sustenta de música, e não de publicidade e marca, precisa de um álbum para poder ter 15 músicas, levar seis para o palco e aumentar seu repertório", explica Borges. "Mas o risco para um arranjo diferente já está difícil, imagina em relação ao público. O pessoal tem medo de errar, por isso gravam sempre ao vivo."

Errar a estratégia de lançamento é algo fora de cogitação dentro da mega estrutura que o sertanejo ergueu com o universitário. Na visão do jornalista André Piunti, a pressão para um artista ou dupla estourar é muito grande. "Os investimentos no sertanejo costumam ser um pouco acima de artistas de outros gêneros. Como 90% das duplas têm o principal faturamento vindo dos shows, o retorno precisa ser alto para o negócio valer a pena", observa.

Com muitos hits na manga, os artistas sertanejos também dominam tranquilamente a preferência por playlists. Das cinco mais ouvidas na Deezer, três são dedicadas ao ritmo. De uns dois anos pra cá, alguns sertanejos se movimentaram em relação a isso, como o caso de Jorge e Mateus, que lançam versões exclusivas em EPs para plataformas como o Spotify, e a própria Marília Mendonça, que lançou a conta-gotas, em partes e singles, o álbum mais ouvido de 2019.

No entanto, o mercado ainda vê força no formato, mesmo com o streaming superando as vendas físicas. Em artigo publicado na última semana, o site americano de música Pitchfork analisa que o formato disco não vai morrer, mas vai passar a ser mais desmembrado. "Agora há outra tendência crescente: álbuns lançados em pedaços", diz a publicação.

Ainda assim, Piunti enxerga o álbum ao vivo como o grande carro-chefe na manutenção do gênero no topo da preferência popular. "Poderia viver de outra maneira, mas o sertanejo sobrevive nesse padrão tão gigante de público porque ele é uma música de festa", observa.

Top 20 álbuns mais ouvidos em 2019 *

  1. Marília Mendonça, "Todos os Cantos, Vol. 1"
  2. Gusttavo Lima, "O Embaixador"
  3. Zé Neto e Cristiano, "Esquece o Mundo Lá Fora"
  4. Matheus e Kauan, "Tem Moda Pra Tudo"
  5. Ferrugem, "Prazer, Eu Sou Ferrugem"
  6. Jorge & Mateus, "Terra Sem Cep"
  7. Henrique & Juliano, "Menos é Mais"
  8. Zé Neto & Cristiano, "Acústico de Novo"
  9. Dilsinho, "Terra do Nunca"
  10. Henrique e Juliano, "O Céu Explica Tudo"
  11. Matheus e Kauan, "Intensamente Hoje!"
  12. Anitta, "Kisses" **
  13. Luan Santana, "Live-Móvel"
  14. Felipe Araújo, "Por Inteiro"
  15. Wesley Safadão, "WS Mais Uma Vez"
  16. Diego & Victor Hugo, "Querosene e o Violão" **
  17. João Gustavo e Murilo, "Espelho no Teto" **
  18. Ariana Grande, "Thank u, Next" **
  19. Marília Mendonça, "Realidade - Ao Vivo"
  20. Zé Neto e Cristiano, "Esquece o Mundo Lá Fora"

*na plataforma Deezer
** álbuns gravados em estúdio