iFood e 99Food dizem que são vítimas de tentativa de espionagem

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Consultorias internacionais estão procurando funcionários de aplicativos de entregas no Brasil para oferecer dinheiro em troca de informações sobre seus negócios.
A maioria delas tem sede na China, mas há também empresas sediadas no Japão, nos Estados Unidos e no Brasil.
Segundo o UOL apurou, funcionários do iFood e do 99Food receberam propostas que vão de US$ 250 a US$ 400 por conversas em vídeo de uma hora para fornecerem informações estratégicas das empresas em que trabalham.
Uma das mensagens vistas pela reportagem fala em pagar até R$ 5.500 a um executivo de alta cúpula das empresas de app, em troca de uma conversa de uma hora (leia mais abaixo).
As consultorias buscam informações como número de usuários, divisão de fatias de mercado, receita e custo de cada pedido, além de dados sobre mecanismos de medição do desempenho da operação.
Até entregadores são procurados com pedidos de envio de informações sobre suas entregas. Uma foto das rotas percorridas em um dia vale R$ 5.
A reportagem teve acesso a pelo menos 170 mensagens enviadas por mais de 30 consultorias diferentes a funcionários do iFood.
Outras dezenas de mensagens foram enviadas a empregados de diferentes setores do 99Food, de acordo com funcionários da empresa.
Conforme mostrou o UOL no início do mês, o mercado de aplicativos está em guerra nas ruas e nos tribunais. Atualmente, o iFood lidera o setor, seguido pelo Rappi.
Mas duas gigantes chinesas — a 99Food, controlada pela chinesa DiDi Global, e a Keeta, controlada pela Meituan — desembarcaram nas últimas semanas dispostas a roubar uma fatia deste mercado.
Das 170 mensagens obtidas pela reportagem, 139 foram enviadas por quatro empresas. A Six Degrees Intelligence enviou 52; a Archer, 41; a BCC, 36; e a CIC, dez.
O UOL procurou todas elas por email e por meio de seus perfis no LinkedIn, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
Apenas uma mensagem obtida pela reportagem traz a assinatura de um consultor que diz trabalhar para uma firma contratada pela Keeta.
Em nota, a empresa negou ter relações com a consultoria e disse que "não contrata empresas para abordar pessoas em seu nome para os fins citados pela reportagem".
"A Keeta adota as melhores práticas de mercado para o recrutamento de talentos, em conformidade com todas as exigências locais", afirma.

O 99Food informou que seus funcionários também receberam mensagens de consultorias internacionais, mas não soube dizer quantas pessoas foram abordadas e nem quantas mensagens foram enviadas.
A empresa negou contratar consultorias para procurar funcionários do iFood. Em nota, o aplicativo se disse "uma empresa brasileira com profundo entendimento do mercado brasileiro".
"A 99 afirma que não está conduzindo ou participando de qualquer iniciativa que envolva a interação com profissionais do mercado de delivery com o intuito de realizar consultoria ou qualquer tipo de obtenção de informações", diz a nota.
Funcionários da 99 na China também têm sido abordados por consultorias, conforme o relato de um profissional.
Por meio de nota, o iFood confirmou que seus funcionários vêm sendo abordados e chamou o caso de "espionagem corporativa". Disse que "está sendo alvo de um ataque coordenado e sistemático de consultorias".
O app encaminhou notificações extrajudiciais às empresas solicitando que parem de procurar seus funcionários.
As abordagens são consideradas ilegais e desleais pelos departamentos jurídicos e de compliance das empresas.
No Brasil, a Lei de Propriedade Intelectual tipifica como crime de concorrência desleal dar, prometer ou receber dinheiro ou "outra utilidade" em troca de oferecer vantagem a algum concorrente.
Também é crime se beneficiar de informações e dados confidenciais obtidos em razão do emprego ou de relação contratual.
O Código Penal ainda tipifica o crime de violação de segredo profissional.
A pena é prisão de três meses a um ano ou multa nos três casos.
Mais de R$ 5.000 por uma entrevista de emprego
A mensagem em que o consultor se identifica como intermediário da Keeta foi enviada por email a um executivo do iFood no primeiro semestre deste ano.
O consultor se apresentou como recrutador (headhunter) da consultoria GSR Technology, que tem sede em Shenzhen, na China. Ofereceu entre R$ 4.000,00 e R$ 5.500 para uma conversa de uma hora por meio do aplicativo Zoom.

A proposta insinuava um convite para participar de um processo seletivo e também a realização de uma entrevista.
Segundo o recrutador, o assunto da conversa seria a montagem de um time local de Pesquisa e Desenvolvimento da Keeta.
"Você estaria interessado em conversar com eles e dar alguns conselhos?", pergunta o recrutador, no email.
"Haverá grandes oportunidades para você com um pacote muito competitivo!!!", conclui a mensagem, com três exclamações.
Procurada, a GSR Technology não respondeu à tentativa de contato até a publicação desta reportagem.
Abordagem padrão
O email não segue o padrão observado pela reportagem em outras mensagens.
Quase todas foram enviadas pelo LinkedIn e nenhuma falava em processo seletivo.
As ofertas enviadas pelas consultorias são sempre feitas de forma clara: participar de uma reunião virtual de uma ou duas horas para responder a perguntas sobre o negócio do empregador do destinatário das mensagens em troca de dinheiro.
Em algumas abordagens, como as da consultoria Arches, as perguntas são menos específicas e falam mais de estratégia.
A empresa tem sede em Tóquio, mas escritórios em Xangai, Hong Kong, Singapura, Vietnã e Coreia do Sul, além de Uzbequistão e Bogotá, na Colômbia.
A consultoria quer saber o número de usuários do iFood separados por classe social, o crescimento do uso da plataforma nos últimos 24 meses e a lógica de precificação da taxa cobrada do consumidor pelo iFood.
Em algumas mensagens, a consultoria pergunta se o profissional acredita que os comerciantes estariam dispostos a dividir o custo dessa taxa com os consumidores.
No caso da Archer, algumas mensagens falam em remuneração de US$ 350 por hora. Em outras, é pedido que o funcionário do iFood diga quanto pretende cobrar, caso aceite participar da conversa.
Mas há casos de perguntas específicas, como a maioria das mensagens da Six Degrees Intelligence, empresa com sede em Pequim.
Nas abordagens, as perguntas vão desde quais as métricas usadas para medir o desempenho financeiro da empresa e as estratégias de mercado até questões mais específicas do setor.

As abordagens da BCC Global (sigla para Business Connect China) falam ainda sobre o uso de chatbots de inteligência artificial no mercado brasileiro, "incluindo impacto nas vendas de pedidos de comida para viagem pelo WhatsApp, autoresponders e gerenciamento de produtos para serviços de comida para viagem".
Perguntam ainda sobre os principais participantes do mercado, volume de pedidos, número de comerciantes cadastrados, cobertura das cidades, "taxas e modelos de cooperação no mercado brasileiro de SaaS [software como serviço, na sigla em inglês] para restaurantes".

A reportagem teve acesso ainda a uma mensagem em que uma consultora da BCC pergunta detalhes sobre as relações do iFood com o McDonald's e com o Burger King - quer saber sobre "zonas de marca" e detalhes de campanhas de marketing, como público alvo, compra de mídia, retorno sobre investimento e retenção de usuários.
Oferece US$ 300 por hora de conversa por telefone, com pagamento depositado em até 15 dias úteis.
Em nota, o Burger King disse não ter qualquer relação com a BCC. O McDonald's foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação desta reportagem.

No Brasil
Entre as consultorias identificadas pela reportagem, há seis brasileiras. Nesses casos, a oferta não especifica valores a serem pagos em troca de informações.
A que chega mais perto disso é a consultoria Verus Nexus, com sede em São Paulo. Nas mensagens enviadas a funcionários do iFood, os representantes da firma perguntam se o profissional poderia participar de uma consultoria remunerada de uma hora.
Em nota, a Verus Nexus disse que não comentaria o caso.
"Por política de confidencialidade, não comentamos, confirmamos ou negamos relações com clientes, projetos específicos, comunicações privadas, volumes de contatos ou cronogramas".
Os consultores da Compass Advisors, também com sede em São Paulo, registraram nas mensagens enviadas a funcionários do iFood que trabalham para fundos de investimento "que adorariam ouvir suas perspectivas sobre o segmento de farmácia por uma lente de e-commerce/delivery".
A empresa disse ao UOL que "nunca teve contrato" com a DiDi Global ou com a Meituan. Afirmou que trabalha com fundos de investimentos que a contratam "de forma recorrente para pesquisa, diligência e projetos estratégicos".
"Em uma ocasião, houve uma demanda sobre o crescente uso de entregas/marketplaces para farmácias que levou à busca por líderes do setor (incluindo diferentes players de delivery). O próprio iFood nos informou que não havia problema na abordagem em si, mas que seus colaboradores não poderiam participar", conclui a nota.
A empresa informou ainda que consulta profissionais de maneira diversificada, e não apenas empregados de determinada companhia.
As conversas, diz a Compass, não abordam temas sensíveis e são sempre confidenciais e estruturadas.
"Os especialistas recebem previamente o tema e o interlocutor para avaliar se estão confortáveis e sem conflito com eventuais não-competes [proibição de trabalhar para concorrentes] ou NDAs [cláusulas contratuais que proíbem a divulgação de determinadas informações]", afirma.
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