A música pós-pandemia: conteúdo multiplataforma não será apenas uma escolha
Você abre o Instagram e, para chegar aos stories dos seus amigos, primeiro tem que vencer a correnteza de uma lista interminável de lives. Bem-vindo às redes sociais durante a pandemia do novo coronavírus.
Músicos vêm usando a ferramenta de transmissão ao vivo para se aproximar dos seguidores, manter seu trabalho ativo e, em alguns casos, até ganhar dinheiro enquanto os shows na vida real estão em pausa. E o Brasil parece ser o país mais empolgado com as apresentações online: até o início de maio, as lives de Marília Mendonça e Jorge e Mateus eram as mais vistas do mundo, com 3,3 milhões e 3,1 milhões de visitas simultâneas, respectivamente.
Juntar centenas ou milhares de pessoas em frente a um palco deve ser um dos últimos passos da reabertura da quarentena em diversos países, e mesmo quando isso ocorrer é provável que muita gente não se sinta segura em meio a multidões. "Eu tinha ingressos para dois shows em setembro e, independente de ter [os shows] ou não, eu não vou", lamenta Fábian Chelkanoff Thier, coordenador do curso de jornalismo e professor da especialização em Influência Digital: Conteúdo e Estratégia da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Mesmo assim, é difícil encontrar alguém que acredite que as transmissões online possam tomar espaço dos shows ao vivo quando eles voltarem. O que deve ocorrer é uma mistura cada vez maior de plataformas para entregar conteúdo aos fãs. Essa é a opinião de Thier e também a de Ricardo Barberena, diretor do Instituto de Cultura da PUC-RS, e do rapper Rashid, que conversaram com TAB para falar sobre como a pandemia pode mudar a cara da música.
COMO ERA: Projetos multiplataforma já vinham rolando pelo mundo, num momento em que os álbuns voltavam a ganhar força depois da primazia dos singles, observa Rashid. "De 2019 para cá, parecia que os álbuns estavam voltando, esse valor do álbum mesmo. Pra gente [músico] sempre foi importante, a gente é super apegado com o disco e com a ideia que liga aquele trabalho. Mas, nos últimos três ou quatro anos, os singles tinham assumido", analisa.
É fato que artistas vêm pensando em produtos mais completos e disponíveis em diferentes mídias há algum tempo, mesmo que tenham ganhado o público mais recentemente. Em 2008, Brian Eno lançou o app Bloom, que permite tocar na tela para modificar sons nas músicas. Em 2011, Björk trabalhou com o multimídia (também incluindo um app) no álbum "Biophilia". De Paul McCartney a Emicida, diversos artistas vinham experimentando projetos que envolviam vídeo, texto, áudio e outros recursos para expandir o conteúdo.
Rashid lançou, entre 2019 e 2020, "Tão Real", um projeto multimídia dividido em temporadas, envolvendo além das músicas um documentário, podcast e conteúdo para as redes sociais. "A gente precisou pensar em cada plataforma e como ela se comunica com um jeito diferente com o público. Pensamos em como cobrir tudo isso com conteúdos que caminhassem na mesma direção", conta.
COMO SE ADAPTOU: Durante a pandemia de Covid-19, artistas que não pensavam a fundo para além das músicas precisaram correr atrás disso. Além das lives de shows, tem quem grave videoclipes no isolamento ou encontre outras soluções para se manter ativo.
"A questão principal é que a pandemia coloca uma porção de dúvidas. Primeiro tem o lance de cada pessoa ter ou não condições ideais para gravar em casa. Isso já é um baita empecilho, que interrompe o trabalho", diz Rashid. O rapper afirma que, mesmo quem consegue continuar trabalhando remotamente, como ele, começa a se perguntar se este é o momento de lançar conteúdo novo. "Ao mesmo tempo em que muita gente está em casa — e inclusive mais pessoas deveriam estar —, será que elas estão dispostas a dar atenção para um álbum agora? Será que não estão preocupadas com outra coisa?." Rashid relata que precisou repensar um clipe que tinha planejado gravar — agora deverá ser feito em animação — e, claro, não pôde levar "Tão Real" para a estrada. O artista está mantendo o contato com os fãs pelas lives — tanto com papos sobre composição, dicas de voz para cantores iniciantes, quanto com conversas diretas com grupos de fãs. Barberena, da PUCRS, diz gostar muito dos vídeos que vão além do show e abrem espaço para outras questões da pandemia. "A live como testemunho, como faz a Teresa Cristina, por exemplo, eu acho espetacular. Parece uma instalação da Marina Abramovic", opina. "Ela está lá, todos os dias, chorando, trocando experiências, rindo. É uma experimentação do mundo, ela fica ali três horas fazendo companhia para as pessoas."
COMO VAI SER: As predições mais negativas para a música no futuro são as que apontam que os shows ao vivo podem demorar muito para voltar. Os três entrevistados concordam. "Se por um lado tem muita gente com uma carência enorme de ver um espetáculo ao vivo, tem esse outro lado de que, até passarmos esse momento mais traumático, a partilha do convívio é muito dolorosa. Você vê alguém próximo e tem certo desconforto", observa Barberena.
Até lá, a proximidade com o público que as lives de conversa proporcionam têm agradado e podem vir para ficar. Tanto Barberena quanto Thier e Rashid ressaltam que as lives de show podem ser uma boa saída para lançar um trabalho com maior alcance, mesmo quando os shows voltarem a ser realidade (afinal, elas podem ser vistas em qualquer lugar do mundo com conexão à internet). Uma coisa é certa: trabalhar em diversas plataformas deve ser essencial, e não mais uma opção.
"Não acho que todo mundo é obrigado a ter um tino empreendedor ou youtuber, mas os tempos modernos estão de fato nos obrigando a ser geradores de conteúdo", diz Rashid. "Tem artista que já é um fenômeno e não precisa se desdobrar assim, mas não é meu caso. Não sei dizer se isso é bom ou ruim, mas não é mais dado o direito ao artista de continuar fazendo apenas arte."
Com isso, Thier aponta que surgem novas responsabilidades. "Aqueles artistas que forem orientados e souberem fazer [conteúdo multiplataforma], vão ganhar mais. E acho — é só um achismo mesmo — que eles vão precisar tomar um cuidado ainda maior com suas ações. Com o público mais próximo e com mais relevância na internet, você perde milhares de seguidores muito rápido, e isso vai ser um baque maior", afirma o professor.
Mesmo com as mudanças, eles são unânimes em dizer que o virtual não tem chance de substituir por completo as apresentações na vida real. "Na minha visão, a música é isso aí. A música é uma parada coletiva que, por mais que eu faça, quando eu coloco no mundo ela é de todos nós", diz Rashid. "No palco, a música está acontecendo como ela deve acontecer — você esquece quem está do seu lado, de onde veio, a condição social."
Fontes: Fábian Chelkanoff Thier, coordenador do curso de jornalismo e professor da especialização em Influência Digital: Conteúdo e Estratégia da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Ricardo Barberena, diretor do Instituto de Cultura da PUC-RS e Rashid, rapper.
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