Caso Rubens Paiva: Brasil paga R$ 1,8 mi ao ano de pensão a torturadores
O Estado brasilero gasta mais de R$ 1,8 milhão por ano com o pagamento de aposentadorias e pensões aos militares e seus dependentes acusados de torturar, matar e ocultar o corpo do deputado Rubens Paiva, retratado no filme "Ainda Estou Aqui".
Nenhum dos envolvidos foi julgado, 53 anos após o crime.
Preso em 20 de janeiro de 1971 em sua própria casa, no Rio, o parlamentar era um dos símbolos da resistência à ditadura militar (1964-1985).
Segundo relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade em 2014, Paiva morreu em decorrência de um quadro de hemorragia abdominal, provocada pelas torturas sofridas imediatamente após a prisão.
No comando do DOI-I (Destacamento de Operações e Informações do 1º Exército), para onde Paiva foi levado, estava o então major José Antônio Nogueira Belham.
Reformado em 1997 — quando alcançou o posto de "marechal", a maior patente do Exército —, o militar tem 90 anos hoje e recebe uma aposentadoria de R$ 35.991,46, segundo o Portal da Transparência.
Belham e Rubens Paim Sampaio, ex-integrante do Centro de Informações do Exército no Rio, foram denunciados pelo Ministério Público Federal do Rio, em 2014, por homicídio e ocultação de cadáver — o corpo de Paiva nunca foi encontrado.
Outros três militares envolvidos também viraram réus no processo.
O caso está parado no Supremo Tribunal Federal, em Brasília.
Documentos e relatos obtidos pela CNV apontam Sampaio como um dos torturadores mais violentos do regime.
Ele teria participado de dezenas de outros assassinatos em uma residência de alto padrão em Petrópolis (RJ) que ficou conhecida como a "Casa da Morte".
Reformado em 2017 como general de brigada e já falecido, Sampaio deixou pensão para a viúva e três filhas. Somados, os benefícios chegam a R$ 30.195,20 por mês.
Associação criminosa
Ao todo, são cinco os militares tornados réus pela morte de Rubens Paiva em 2014 — o ex-tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, apontado como o principal torturador de Paiva, morreu antes da denúncia.
Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza completam a lista. Eles foram acusados de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada.
Além de Belham, apenas o major Jacy está vivo, segundo a defesa. Aposentado desde 1996, recebe R$ 23.457,15 por mês. As viúvas e filhas de Raymundo Ronaldo Campos e Jurandyr Ochsendorf e Souza viraram pensionistas.
Se condenados em vida, os acusados poderiam pegar de 10 anos a 37 anos de prisão, cada.
O MPF-RJ também pediu à época que os denunciados tivessem suas aposentadorias cassadas, assim como as medalhas e condecorações concedidas a eles ao longo da carreira.
Sampaio, por exemplo, foi homenageado em vida com a Medalha do Pacificador, dedicada a "militares que tenham se distinguido por atos pessoais de abnegação, coragem e bravura, com risco de vida".
Apenas no mês passado — com a repercussão gerada pelo filme que narra a luta de Eunice Paiva, mulher de Rubens, pela elucidação do desaparecimento do marido —, o ministro Alexandre de Moraes pediu parecer à PGR (Procuradoria-Geral da República) sobre o julgamento dos cinco militares.
Lei da Anistia
Procurada pelo UOL, a defesa dos envolvidos não quis se pronunciar. A tese sustentada pelo advogado Rodrigo Roca é a de que o processo deve ser extinto em função da Lei da Anistia.
Aprovada em 1979, a legislação concedeu perdão a todos os perseguidos políticos, mas também aos agentes da repressão que cometeram torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos até aquele ano.
Para o Ministério Público Federal, porém, trata-se de um crime contra a humanidade, imune a anistias e sem possibilidade de prescrição.
A demora em punir representantes do Estado que prenderam, torturaram e mataram críticos políticos durante a ditadura tem reflexos atualmente, diz o advogado e professor Pedro Dallari, que atuou como coordenador da CNV.
"A impunidade dos responsáveis não só frustrou a promoção da Justiça, como preservou nas Forças Armadas uma forte propensão antidemocrática, evidenciada com as recentes notícias de envolvimento de militares de alto escalão no planejamento de um golpe de Estado em 2022."
Dallari ressalta ainda que o relatório final da comissão recomendou a responsabilização dos autores de graves violações de direitos humanos nas esferas penal, civil e administrativa.
"Esta última inclui o âmbito previdenciário, com a consequente restrição aos direitos decorrentes de aposentadoria."
Campos foi o único a detalhar sua participação no crime.
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, ele confirmou ter ajudado a simular a versão falsa sustentada pelas Forças Armadas até hoje: a de que Paiva fugiu após o carro usado pelos soldados para transportá-lo ser atacado por guerrilheiros.
Indenização e memória
A família só recebeu o atestado de óbito de Rubens Paiva em 1996, conforme retrado no filme dirigido por Walter Salles.
O governo Fernando Henrique Cardoso colocou em prática naquele ano a Lei dos Desaparecidos Políticos, que reconheceu como mortos os desaparecidos durante a ditadura e abriu caminho para que familiares acessassem pensões e fossem indenizados pelo Estado.
Eunice obteve na Justiça Federal a primeira decisão favorável ao pagamento de uma indenização por danos morais e materiais à família em 1998.
A União recorreu, mas o Tribunal Regional Federal da segunda região, no Rio, assegurou a decisão em acórdão de 2001.
Segundo autos obtidos pela reportagem, no entanto, o processo ainda está em fase de cumprimento. Isso significa que Eunice Paiva teria morrido em 2018 sem ser indenizada. A família não comenta.
Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Direitos Humanos reabriu o caso de Rubens Paiva, cujos restos mortais nunca foram encontrados.
"Apresentaremos um relatório preliminar com recomendações ao Poder Público em relação à preservação da memória, esclarecimento da verdade e responsabilização dos agentes envolvidos", adianta o relator especial do caso, André Carneiro.
Assim como o MPF, o conselho deve sustentar, no relatório previsto para ser apresentado até 12 de dezembro, que a Lei da Anistia não protege torturadores e assassinos, pedindo à Justiça brasileira que siga a jurisprudência internacional, que considera crimes como o cometido contra Paiva como imprescritíveis.
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