Será que poesia nas embalagens ajuda supermercado a vender mais?
Ninguém busca entretenimento ou cultura em um supermercado. As pessoas vão lá atrás de comida e artigos domésticos. Apesar de os alto-falantes soltarem aquela musiquinha de fundo, da voz melosa do locutor anunciando a "super-quarta de ofertas" e dos cheiros vindos da rotisseria, não se oferece ali nenhuma experiência estética.
Esse ambiente comercial por natureza nunca foi o habitat natural dos poetas. Até aqui, nenhuma novidade. O curioso é que textos elaboradamente rebuscados são cada vez mais comuns nas embalagens empilhadas à venda.
Se você acha que poesia é perfumaria, acertou em cheio. No corredor dos shampoos, os tubos e bisnagas estão cada vez mais carregando nos adjetivos e prometem "brilho estonteante", "cuidado absoluto", "renovação vibrante", "minuto milagroso", "recarga fascinante".
Além disso, não poderia faltar a neolíngua dos publicitários impressa nos produtos "cocriados com influenciadoras digitais" com "hidratação lacradora", "volumão mara" e "memorizador de cachos" que vão deixar você "mais confiante para conquistar o que quiser". São tantas promessas que o cosmético e o cósmico se confundem.
Já as prateleiras de pasta dental revelam uma obsessão mórbida pelo branco muito maior que toda a poesia simbolista junta. E essa brancura parece inédita em português mesmo o corredor estando no Brasil: extreme white, white attraction, extra whitening, luminous white, true white, 3D white. Já as gôndolas (não de as Veneza, mas a...) dos sabonetes preferem o culto parnasiano à beleza, prometendo uma "pele sedutora da orquídea negra" e a "espuma cremosa da flor de verbena".
Nada mais distante do estilo cru e visceral do açougue local, e seus cartazes oferecendo "pernil desossado" e "patinho moído".
Toda grande rede de supermercado faz o chamado "marketing sinestésico", ou seja, o estímulo dos cinco sentidos para aumentar as vendas.
Os mais óbvios são a visão (o brilho da montanha de maçãs enceradas), o olfato (os cheiros que emanam da mexerica e do desinfetante), o paladar (as promotoras de patês e geleias estão sempre a postos) e o tato (as apalpadas no pão de forma ou queijo fresco para conferir a maciez). Por seu lado, a audição é afagada por aquela canção fofa ao fundo, que remete ao lar e estimula você a abastecê-lo como se fosse o último refúgio deste mundo.
O mais recente recurso para conquistar o consumidor é o arrebatamento literário. Antes, o parágrafo único das embalagens, em letra bem pequenas, reunia o endereço da fábrica e a lista de ingredientes. Com muito esforço, você poderia achar ali um quê de poema concretista nas enumerações de conservantes, acidulantes, estabilizantes, emulsificantes, antiumectantes e corantes (tão misteriosos como o caramelo IV, o amarelo crepúsculo FPF e o vermelho extraído do inseto cochinilha).
Na seção de congelados, os componentes descritos nos recipientes remetem a um futuro pós-natural: "carne mecanicamente recuperada de frango", "fumaça líquida" ou "aroma artificial de muçarela". Contudo, foi das prateleiras de vinho que surgiu a nova mania de textos encantatórios que descrevem as mercadorias como poções mágicas ou manjares dos deuses.
As palavras "promoção", "desconto" e "oferta" são música para o ouvido de quem adentra em um supermercado. Porém, a maior concentração de composições poéticas propriamente ditas estão estampadas no verso das embalagens das bebidas.
Tudo começou com os fermentados de uva e seus contra-rótulos tão elogiosos ao líquido engarrafado. É difícil verbalizar tudo o que o vinho proporciona: paladar sedoso, tom violáceo, nuance terrosa, boca estruturada, traço de baunilha e retrogosto de cogumelos. Há até vinícolas, como a gaúcha Routhier & Darricarrère, que imprimiram mesmo um poeminha colado no vidro de um vinho rosado: "Aroma de liberdade/Corpo que seduz/Cor de felicidade/Rosé como a vida/Brilhante como a luz."
Essas promessas de paraísos e elixires terrestres migraram para outros corredores, como os agora gourmetizados do café e da cerveja. O grão torrado e moído ganhou "notas florais" e "corpo robusto" que "te faz sorrir porque te faz bem". Já a cervejinha vira "líquido acobreado" de "amargor monstro" que proporciona uma "experiência sensorial inesquecível".
E o palavrório chegou até a padaria do supermercado. Um biscoito sem glúten declara em seu invólucro que tem "o propósito de transformar as pessoas por meio do nosso produto", enquanto um pão se vende com as frases: "tradição é ter onde pisar" e "inovação, um horizonte para voar".
As juras mercantis deslizam para a mais pura fantasia quando o "bolo caseiro preparado com carinho" tem endereço (em letras bem miúdas) em uma indústria à beira de rodovia na Grande São Paulo ou "o molho fresquinho" tem data de vencimento para daqui a dois anos ou "a tradição transmitida de geração em geração" que tal marca fala já era, afinal, foi vendida para um grupo de investidores financeiros há um bom tempo.
Nos supercoloridos pacotes de salgadinho, não se fala do milho transgênico nem da superdose de sódio que prejudica sua saúde, mas o discurso é que "a vida tem que ser cheia de sabor", com "milhões de experiências incríveis esperando por você", e o produto é "para aqueles que querem sair óbvio, que buscam sempre desafiar a lógica do senso comum." Oi?
O supermercado, esse "ponto de encontro da família brasileira", é na verdade um labirinto de porcelanato com vários enigmas (de vida ou morte) para decifrar. E esses corredores terminam na fila do caixa, quando a funcionária vai te confrontar com os dilemas da contemporaneidade: "CPF na nota?", "Débito ou crédito?", "Tem ticket do estacionamento?"
Em sua próxima visita, não esqueça de procurar essas mensagens enviadas em garrafas. Leia com atenção e interprete bem o que elas estão dizendo. De outra forma, o único leitor por ali vai continuar sendo só o leitor de código de barras.
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