Grauterapia

Entre os jovens, o desafio de empinar a bicicleta ou a moto na roda traseira tem ganhado status de esporte

Todo mundo tem pressa e eles estão ali para resolver a urgência de geral. "Formigas" da economia de serviços em São Paulo, os entregadores de aplicativo vivem a adrenalina das ruas, mas na hora do lazer não largam a moto e a bike. Grauzeiros fazem dos parcos momentos de ócio uma diversão, sem descer das rodinhas.

Na magrela é empinar e rodar, mas para quem vai de moto, a dificuldade aumenta. Estica na primeira marcha. Joga na segunda, acelera, aperta a embreagem e solta. Joga o corpo para trás para dar o impulso. Quando subir, volta ao acelerador, corta na embreagem e controla no freio. Adrenalina, equilíbrio e concentração.

No último dado divulgado pelo Detran de São Paulo, em agosto de 2019, a frota de motocicletas, motonetas e afins, só na capital paulista, chega a mais de 1,2 milhão. Isso dá mais ou menos uma moto a cada 9,7 habitantes da capital. No estado de São Paulo, as motos passam da marca dos 5 milhões.

Aos finais de semana rolam encontros de amigos, os fluxos do grau, onde geralmente os motoqueiros ocupam ruas sem saída ou pouco movimentadas, onde não há o risco de trombar com a Polícia Militar. Um desses rolês é o Quintal do Grau, um lugar quase secreto que existe há quase um ano, localizado na Favela da Coca, em Diadema. A poucos metros do local, já é possível escutar o barulho de escapamento estalando e de placa raspando no chão. O Quintal é formado por duas ruas de asfalto sem saída e com uma única entrada. Ali, mais de vinte motos andam de um lado para o outro, dando grau em alta velocidade, enquanto outros motocas e crianças observam o fluxo.

"Achamos esse espaço bem isolado, longe da população, sem oferecer risco para ninguém", conta Vitor Hugo, 22, de São Bernardo do Campo, sobre o surgimento do Quintal do Grau. O motoboy perdeu as contas de quantos acidentes já sofreu em cima da moto. "Liberdade total" é como ele define o grau.

Marcos Vinícius, 21, autônomo e morador de Diadema, costuma ir ao menos duas vezes por semana no Quintal. O jovem se considera um alucinado em grau desde muito pequeno. "Pra mim, a emoção é muito boa. Só quem tá nesse rolê do grau sabe. Dar grau não é zoeira, é pra desestressar. Grau é terapia."

Aliás, o certo é falar em "grauterapia", como descreve Osmar Machado, 25, motoboy de Interlagos que está sempre praticando grau no Quintal. "Grau significa muito para mim. Me traz calmaria. O efeito de quebrar limites vicia, você sente que é capaz de fazer cada vez melhor. Traz liberdade e concentração", conta ele.

De lei e fora da lei

Trombar com a Polícia Militar é um risco porque a diversão é considerada infração gravíssima, com perda de sete pontos na carteira, multa, suspensão do direito de dirigir e recolhimento do documento de habilitação. O artigo 244-III do Código de Brasileiro de Trânsito proíbe "a realização de malabarismo ou equilíbrio em apenas em uma roda" como "demonstração ou exibição de manobra perigosa". O problema é maior porque as autoridades podem abusar do poder e fazer mais que multar e apreender a carteira de motorista.

Carlos João*, 20, sabe bem como isso rola. Era quinta-feira, 19 de setembro de 2019, quando, assim que chegou do trabalho, por volta das 17h, pegou sua moto de 160 cilindradas para fazer um favor para a mãe. "Já é de lei na rua de casa sair chamando no grau", diz. Quando saiu surgiram dois policiais militares, cada um em uma moto. Enquadro na certa. "Disseram que iam apreender minha moto e aplicar multa. Depois decidiram me levar para uma rua deserta", lembra. Ele pensava que ia tomar um "sacode" (agressão física). Mas foi sua moto quem sofreu as consequências do grau.

"Um deles puxou uma faca, mandou eu cortar os dois pneus, cabos de freio e cachimbo da vela de ignição. Depois disso, me liberaram", conta o jovem. Segundo Carlos, ele gastou R$ 650 para consertar a moto para voltar ao trabalho. Mesmo com o risco, o prejuízo financeiro e as quedas, ele diz que não vai deixar de empinar sua moto. "Grau pra mim é arte. É uma sensação muito louca."

Se antes parecia que grau era algo que se fazia escondido, hoje os praticantes querem mesmo é divulgar suas manobras. O próximo passo de Carlos é fazer um canal no YouTube para compartilhar suas façanhas em cima da motinha. Outros praticantes que já têm canais na plataforma rodam a cidade para filmar a galera roletando (andando) pelas quebradas e para mostrar os fluxos do grau. Por conta da proibição pela lei de trânsito, o jeito é não mostrar a placa.

Osmar Machado e outros praticantes que frequentam o Quintal do Grau veem a atividade como um esporte, como andar de skate. Eles defendem que existam espaços para a prática que não ofereçam riscos a terceiros. Nas redes sociais, quem é do grau e adere à campanha usa a hashtag #244Nãoécrime.

A trajetória do grau — assim esperam os praticantes — pode imitar a de outra modalidade: o skate também já foi muito mal visto e até combatido. Vale lembrar que praticar skate em São Paulo era proibido nos anos 1980. Segundo a Folha de S.Paulo, um memorando do então prefeito Jânio Quadros solicitava a detenção de "todos aqueles que praticarem esse esporte, no leito das ruas e nos logradouros públicos". Skates eram apreendidos e havia o risco de os menores serem levados ao juizado.

A frase "andar de skate não é crime" estampou a capa de uma das primeiras edições da revista Yeah!, que fazia campanha contra sua proibição. O título foi inspirado em um movimento dos anos 1970, nos Estados Unidos. A lei paulistana só seria revogada em 1990, com Luiza Erundina. Em tempo: em 2020, o skate irá estrear como esporte olímpico nas Olimpíadas de Tóquio, no Japão.

"É difícil fazer as pessoas entender que o grau é um esporte e não um crime, que ele tem que ser valorizado e que pode tirar muitas pessoas do [caminho] errado", diz Osmar. "O grau cresce a cada dia, só queremos nosso espaço."

Garotas também dão grau e têm feito muito pelo respeito à modalidade. Karollinny Nathalia Leão acabou aprendendo sozinha, assistindo a canais de grau no YouTube. Nathy desenrola bem no RL, sigla em inglês para "Rear Lift", ou Elevador Traseiro. Ela empina a roda traseira da moto e se apoia na dianteira, uma das manobras mais difíceis de ver nos fluxos. "Sempre fui uma mina que gosta de desafios", conta. O desejo de Nathy, que tem mais de 13 mil seguidores em sua conta no Instagram, é influenciar mais mulheres no grau. "[Tem a] Lethycia Wheeling, Andressa Araújo e Bia Do Grau. De fora do Maranhão, tem a Juuh do Grau e a Amanda Massafera. Mano, essas guria são o toque, manja pra caramba, sou fã!"

Nathy organiza eventos de grau em sua cidade, Montes Altos, no Maranhão. O Campeonato de Wheeling, que está na 5ª edição, reúne mais de 2 mil pessoas e uma média de 50 participantes, e ainda conta com o apoio da prefeitura. "Há regras, juízes, pontuação e premiação", explica Nathy. "Também temos as categorias iniciantes, amadores e avançadas, onde os participantes vão fazendo manobras livres e a pontuação é de acordo com a dificuldade".

Outra modalidade da competição é a de Grau de Rua, onde Nathy participa como jurada e considera, por exemplo, o tempo e distância que os motocas percorrem com o grau. Os participantes precisam ser maiores de 18 anos e usar itens básicos de proteção, como capacete e tênis. "Não é um esporte sem lei", destaca Nathy.

Leia também:

Jeferson Delgado/UOL

Festa motorizada

Baile funk ganha versão solar em festival de som automotivo em SP

Ler mais
Gabriela Portilho/UOL

Trap toma o Brasil

Funkeiros e rappers se encontram no ritmo que saiu da internet e seus excessos

Ler mais
UOL TAB

O fluxo do fluxo

Favela é palco de carnaval funk e movimenta dinheiro, diversão e afetos

Ler mais
Topo