Avanços e retrocessos no trabalho doméstico espelham o quanto o país progride ou regride. "A sociedade brasileira é muito dependente das domésticas. Tem gente que nunca lavou um banheiro. É costume, virou praticamente um artigo de luxo barato", diz Preta Rara, 35, rapper, historiadora e autora de "Eu, empregada doméstica", derivado de uma página do Facebook. Lançado em agosto de 2020, seu livro reúne depoimentos de domésticas. "Ter uma doméstica em casa é algo que você ostenta, e não se paga o valor correto [pelo serviço]. As pessoas têm orgulho de falar que têm empregada."
Milhões de faxineiras, babás, cozinheiras e passadeiras, que garantem o bem-estar das "casas de família", são tratadas como "quase" da família. A herança escravocrata é sensível: escravizados que trabalhavam na casa-grande vivenciavam algumas regalias que escravizados das lavouras não tinham. "Virava uma relação amigável, mas eles eram escravos e iam para o tronco, da mesma forma", diz Preta Rara.
"Em nossa sociedade patriarcal, mulheres são associadas ao trabalho de cuidado, seja da casa ou de pessoas, como se fosse uma habilidade natural", afirma Luana Simões, socióloga e pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada). Não por acaso, os 8% dos trabalhadores domésticos homens são motoristas, jardineiros e caseiros. "Essa associação entre ser mulher e saber cuidar está na raiz do trabalho doméstico e na forma como ele se constitui no Brasil."
Foi a figura da empregada doméstica que possibilitou às mulheres brancas de classe média se lançarem no mercado de trabalho no século 20, explica Simões. "As brancas de classes média e alta só puderam trabalhar quando resolveram privadamente o problema da falta de creches, contratando também alguém para o trabalho doméstico, enquanto as de classes mais baixas contam com uma rede de apoio, uma vizinha, uma filha mais velha [para cuidar dos filhos]."
Domésticas cozinham, limpam e cuidam das crianças dos patrões (e às vezes, de seus idosos) em troca de um salário mínimo ou de apenas moradia e alimentação, o que é crime. "É uma escravidão disfarçada", diz Preta. A relação é desigual, porque muitas famílias não sabem onde a trabalhadora mora, se tem família, qual a sua trajetória e história de vida. A doméstica participa do dia a dia e, por proximidade, cria-se um vínculo de amizade e não uma relação de trabalho. Existe afeto verdadeiro entre as pessoas, mas as fronteiras são borradas. "A gente acha que tem uma dívida de gratidão com os empregadores, e entende aquele trabalho como um favor."