MONOCULTURA SONORA

Como e por que a música sertaneja se tornou tão popular de norte a sul do Brasil

Renata D'Elia Colaboração para o TAB

"Sua matéria é positiva ou negativa? Qual vai ser o título?" As perguntas se repetiam entre os entrevistados e expõem, de cara, as tensões entre os principais agentes da música sertaneja e da elite intelectual, desde que o sertanejo passou a dominar a música popular do país.

Uma pesquisa realizada por Crowley e Kantar Ibope aponta que a música sertaneja lidera, em 2020, o volume de execuções em rádios. No Spotify, 48 das 100 músicas mais tocadas no Brasil na semana de 24 de agosto de 2020 eram sertanejas.

Jornalistas e artistas consagrados do rock nacional e da MPB viam "breguice" no sertanejo. Acadêmicos demoraram a estudá-lo. Criticados pelo distanciamento do "sertanejo-raiz", cantores invadiram as grandes cidades pelos radinhos de pilha da classe trabalhadora nos anos 1970, e aos poucos tomaram o país.

Segundo o paranaense Gesoaldo Júnior, a música sertaneja movimenta anualmente dezenas de bilhões de reais entre bilheterias de shows, cachês de artistas e patrocínios de eventos. Júnior é criador da Exponeja, encontro de economia criativa do setor. "Nas casas noturnas e botecos do Brasil afora, estimamos que 90% da grade musical seja ocupada pelo gênero." Diante de números astronômicos, a pergunta é: como foi que esse domínio se instalou, mudou a cultura de massas no Brasil e permanece em alta por tanto tempo?

ODE E ÓDIO AO JECA TATU

Desde que Monteiro Lobato criou o personagem Jeca Tatu em seu livro "Urupês" (1918), a associação do homem rural ao atraso tornou-se um estigma. De um lado, o país das metrópoles desenvolvidas, tidas como sofisticadas e cosmopolitas. De outro, o interior caipira, tratado pelo mundo urbano como primitivo, simplório e intelectualmente limitado.

Segundo o historiador Gustavo Alonso, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e autor do livro "Cowboys do Asfalto - Música Sertaneja e Modernização Brasileira", as músicas do interior tocavam na então capital do país no início do século 20. "Instrumentos associados ao nordeste rural, como os triângulos, estavam presentes nas rodas de samba do Rio", afirma.

Toadas sertanejas faziam parte do repertório de sambistas como Pixinguinha. "No Rancho Fundo", um clássico do repertório caipira-sertanejo, foi composto em 1931 por dois ícones do samba, Ary Barroso e Lamartine Babo. Somente a partir dos anos 1930, quando o Rio de Janeiro assumiu o papel de matriz cultural moderna do país, é que os gêneros populares começaram a se separar.

O processo de diferenciação regional e definição estética foi tomando corpo, ao passo em que o samba foi forjado como o grande símbolo nacional. O nordeste e o sertão de Luiz Gonzaga ficaram marcados pelo maxixe. No resto do interior, predominou a música caipira — com sanfona, mas sem triângulo nem zabumba e afins. A dupla-símbolo do gênero, Tonico & Tinoco, veio do interior de São Paulo e gravou pela primeira vez em 1945.

A partir de 1950, um movimento de raiz estudantil valorizava a tradição e a pureza da cultura brasileira. Nascida na capital paulista e formada em Biblioteconomia pela USP, Inezita Barroso (1925-2015) foi a maior militante pela tradição caipira. Crescia também, nos meios intelectuais, a visão do homem do campo como uma vítima da opressão do grande latifúndio, discurso muito forte nas letras e na ideologia da MPB a partir dos anos 1960.

Nós crescemos na cidade de Rondon, no Paraná. Éramos muito pobres e ouvíamos rádio fora de casa, pois não tínhamos o aparelho. Recebemos as influências dos Beatles e da Jovem Guarda tanto quanto da música caipira. Já na cidade grande, começamos a ouvir Elton John e Bee Gees. Amávamos as harmonias. Começamos a fazer essa música, que é mais romântica, em duas vozes"

Chitãozinho, Cantor da dupla Chitãozinho & Xororó

OS AMIGOS VENCERAM

Enquanto a bossa nova absorvia influências do jazz, nos anos 1950, a música do interior era influenciada por latinidades de fronteira como as guarânias, a rancheira e o bolero.

Ao longo dos anos 1970, com o surgimento das duplas Léo Canhoto & Robertinho, Milionário & Zé Rico e Chitãozinho & Xororó, ocorreu uma espécie de ruptura entre o caipira e o sertanejo. Duplas "modernas" incorporaram guitarras, teclados e baterias para atualizar o gênero e transitar mais facilmente entre os jovens urbanos.

Milionário & José Rico usavam roupas extravagantes, anéis de ouro, e não tinham pudor em parecer pessoas do campo que venceram na cidade grande. "O sertanejo é a metáfora do Brasil. Não há aversão ao dinheiro no sertanejo. Não há a figura do artista sem dinheiro, mas fiel a seus propósitos, como no rock e na MPB", diz Gustavo Alonso.

Para Chitãozinho, o caminho das pedras foi árduo. "A música caipira só era ouvida no campo e nas rádios AM, pelos camponeses que migraram para as capitais. Batalhamos por anos até encontrar um produtor que topasse nossas ideias. Chegamos às FMs nos anos 1980, mas a aceitação maior por parte da MPB e da Globo só veio a partir do momento em que gravamos 'A Majestade, O Sabiá' com Jair Rodrigues, em 1987."

Vencidas essas barreiras, os anos 1990 viram a explosão das duplas goianas Zezé Di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo. Ao lado de Chitãozinho & Xororó, chegaram ao horário nobre da TV com o patrocínio de grandes marcas de cerveja e um programa semanal na Rede Globo só para eles, o "AMIGOS".

Os sertanejos encontraram brechas de legitimação com as elites culturais por meio de elogios de Caetano Veloso, participações no Especial de Natal de Roberto Carlos e versões gravadas por medalhões da MPB. "Tivemos dificuldade de aceitação em lugares como o Rio de Janeiro, mas conseguimos. O purismo do samba carioca é lindo, mas o Brasil é gigantesco. O sertanejo é a música realmente popular, que sempre existiu e que sempre foi forte em boa parte do país", diz Chitãozinho.

SINCRETISMO NO DVD

A segunda grande virada do gênero veio com o sertanejo universitário de César Menotti & Fabiano, João Bosco & Vinícius, Fernando & Sorocaba e Jorge & Mateus, por volta de 2010, na transição para os formatos digitais no mercado da música.

Surgidos nos bares frequentados pelos universitários de Campo Grande (MS), eles revalorizaram a estética acústica, com violões de aço, sanfonas e metais, e iniciaram a mistura com estilos como o pop, o arrocha, o forró e o funk carioca.

Elemento padrão é a energia da gravação de CDs e DVDs ao vivo, com fãs batendo palmas e tudo. Em compensação, o sucesso tornou-se efêmero e há grande volume de lançamentos, aumentando a competição entre os artistas, que embarcam em verdadeiras linhas de produção de hits.

"Na era do LP e do CD, o artista trabalhava duas músicas por ano em rádio. Hoje, lançam EPs de 4 músicas a cada 30 ou 60 dias, buscando engajamento e memes na internet. Uma música que acerta sobrevive 90 dias", afirma Gesoaldo Júnior. Para Chitãozinho, porém, uma carreira só se consolida com pelo menos 10 anos de sucesso. "Para perdurar, é preciso que a música tenha conteúdo e emoção."

Raffa Torres tem mais de 50 composições estouradas nacionalmente nas vozes de artistas como Luan Santana e Jorge & Mateus. Como cantor, é conhecido por "A Vida É Um Rio", trilha da novela das 7 "Salve-se Quem Puder". "Componho espontaneamente e nem tudo é um hit. De 1000 músicas que fiz, 50 foram sucesso. Errei 950 vezes", conta. Suas principais referências vão de Roberto Carlos e Fábio Jr., Bruno & Marrone e Victor & Léo, até John Mayer, Renato Russo e bandas gospel como Hillsong United, da Austrália.

Segundo o jornalista e crítico musical Sérgio Martins, o sertanejo contemporâneo tem tino comercial, investimento financeiro e ótimas produções. Enquanto outros gêneros foram se tornando mais intimistas e introspectivos, o sertanejo tornou-se cada vez mais extrovertido, festeiro, "de pegação" e de ostentação. É uma música de associações fáceis. "Eles souberam assimilar. Os artistas são mais disponíveis, tratam bem o público e os contratantes."

AGRO É POP

Em 1973, no Mato Grosso, o brasileiro Olacyr de Moraes iniciou a jornada que o transformaria no Rei da Soja, o brasileiro mais jovem a figurar como bilionário na lista da revista Forbes. Antes de ver sua fortuna despencar devido à má gestão e dívidas, ele marcou uma nova era do desenvolvimento econômico no Centro-Oeste e abriu caminho para que o país se tornasse o maior produtor de soja do mundo.

Hoje, a maior produção da soja concentra-se no Mato Grosso e no Paraná, dois grandes celeiros da música sertaneja. Nascido em Dourados (MS), Luiz Aleksandro Correia, da dupla Conrado & Aleksandro, conhece bem esse ramo. Neto de um pecuarista, ele estudava agronomia quando começou a fazer shows com o parceiro, em 2006. Três anos depois, a dupla se mudou para o Paraná a pedido do empresário.

"Luan Santana investiu em nós. Ele gravou 'Certos Detalhes' conosco e fizemos muito sucesso. Com esse aprendizado, resolvemos investir em outros artistas e gerenciá-los", diz Aleksandro. É comum no ramo que um artista maior invista em nomes promissores. Aleksandro já investiu no cantor Loubet e na dupla Bruno & Barreto, que já se apresentou na Europa e nos EUA.

Para que um artista seja bem produzido, o investimento é de no mínimo R$ 1 milhão. "Esse é o custo de pelo menos um sucesso no top 20 de rádio ou do Spotify. Mas, ao contrário do agro, esse é sempre um investimento de alto risco", diz Aleksandro.

Em 2017, como fruto da carreira como cantor e investidor sertanejo, ele já havia comprado 4 fazendas de gado de corte e soja, totalizando 12 mil hectares de terras. "Sempre tive um sonho de vencer no agronegócio. Amo a música, mas ela é um meio para que eu alcance outros objetivos."

UNIVERSO PARALELO

A expansão do agro turbinou a economia de centenas de cidades do interior com comércio, serviços e eventos agropecuários. Além das grandes festas de peão e boiadeiro como a de Barretos, que movimentou R$ 900 milhões em 2019, há um enorme mercado de festas, feiras, rodeios e exposições em cidades pequenas e médias que recebem milhões de pessoas por ano.

Boa parte dos artistas em início de carreira faz esse circuito. "São shows realizados por prefeituras ou sindicatos rurais e sempre contam com artistas sertanejos, do gospel, às vezes de música pop. O primeiro termômetro do sucesso é sempre regional, e o investimento é gradual. O número de shows e os cachês são a colheita após o plantio do investimento", explica Aleksandro.

A carreira de um artista pode ser um grande negócio, mesmo sem romper os limites estaduais, garante o produtor de eventos Giovane Tavares: 90% de seus clientes são prefeituras de cidades pequenas que contratam sua empresa por licitação. Uma das contrapartidas é que a mão-de-obra não-técnica seja local. "Em cidade pequena, artistas de terceiro e segundo escalões se tornam primeiro. Elas não têm nem estrutura física para receber os grandes nomes, mas conseguem ótimo retorno com a movimentação da economia", afirma.

Segundo Gesoaldo Júnior, se antes a grande mídia ditava as regras da cultura para o Brasil profundo, hoje o interior grita alto. "Existe um universo paralelo de 4 mil rodeios por ano. Vamos supor que esses menores tenham 4 shows sertanejos na grade e que cada show consiga reunir 10 mil pessoas. São 160 milhões de pessoas indo a esses shows, por ano", afirma. Com a pandemia, Giovane estima ter perdido 9 exposições agropecuárias e 150 shows, ao longo de 2020.

LAVOURA (NADA) ARCAICA

Para Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), há uma analogia entre o Brasil agroexportador de hoje, embalado pela música sertaneja, e o Brasil dos anos 1950 e 1960, da industrialização e urbanização, que consolidou a bossa nova e colocou a MPB e o Cinema Novo como parte do soft power do país no exterior.

"A expansão do Brasil para o Centro-Oeste trouxe uma nova elite rural e mostrou que o país é maior que Ipanema. Essa elite tem sua própria expressão política e cultural. Existe uma contrarrevolução conservadora e um conflito cultural e intelectual que ainda estamos tentando entender. Em contrapartida, temos as feminejas colocando desejo sexual nas letras e outros avanços que jamais teríamos no passado."

Para Sérgio Martins, a crítica musical não prestou a devida atenção no sertanejo. "Há uma ignorância completa sobre o que é verdadeiramente pop e o que é hype. Na última década, passamos boa parte do tempo falando do tecnobrega e de Gaby Amarantos como um fenômeno altamente popular, quando o povo brasileiro estava escutando Jorge & Mateus."

Por mais que "Balada", de Gusttavo Lima, e "Ai Se Eu Te Pego", de Michel Teló, tenham figurado nas paradas de sucesso dos 5 continentes, isso não significa que a música sertaneja faça parte do soft power.

"Há uma dissonância entre a arte brasileira premiada lá fora, que é basicamente herdeira das décadas de 1950 e 1960, e o que nós ouvimos aqui. Estamos voltados para dentro. O sucesso dos artistas sertanejos identificados com o povo evidenciam os ideais da teologia da prosperidade, cada vez mais fortes no Brasil", afirma Santoro.

Não vale, portanto, reproduzir preconceitos que não fazem sentido, como o de que a música sertaneja seja símbolo de um Brasil arcaico. Santoro lembra que o agronegócio hoje é altamente tecnológico e conectado. "Claro que há setores mais refratários que outros e certamente um abismo entre o agro sustentável e as milícias rurais desmatadoras. Mas o agro em si não é jeca; a ilegalidade é que é."

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