COPIA, COLA E CRIA

Nova tecnologia facilita edição de genes e complica discussão sobre melhoramento humano

Para investir no futuro dos filhos, pais e mães bancam escolas particulares, aulas de inglês (quem sabe um intercâmbio no ensino médio) e, para completar, mensalidades caríssimas em universidades privadas. E se desse para pagar também para aperfeiçoar o DNA de um embrião que vai crescer mais saudável, mais inteligente ou mais ágil? Esse empurrãozinho rumo ao sucesso entraria nessa conta sem pesar na consciência?

Um sistema chamado CRISPR-Cas 9 (mais conhecido apenas por CRISPR) vem provocando essas discussões desde 2012, quando um grupo de cientistas percebeu que ele poderia ser usado para editar com facilidade partes do DNA, inclusive de seres humanos. O avanço deixou a comunidade científica especialmente animada com as possibilidades de prevenção de doenças hereditárias como distrofia muscular, hemofilia e fibrose cística, além dos diversos usos em áreas como agricultura e veterinária.

Isso tudo já está em estudo, inclusive aqui no Brasil. Mas há também muita cautela acerca do CRISPR. Quem vai poder pagar por tais vantagens? Quem vai ganhar dinheiro com a técnica? E a partir de que ponto essa tecnologia já disponível para a compra online deixa de ser terapêutica e passa a ser uma ferramenta de eugenia, a busca racista por um homem ideal?

A bioquímica Jennifer Doudna, líder da equipe que descobriu a técnica em 2012, apresentou um TED Talk três anos mais tarde e ressaltou que o debate sobre os limites éticos do uso, principalmente em humanos, é incontornável. "Imaginem se pudermos criar humanos que tenham propriedades melhoradas, como ossos mais fortes, ou que sejam menos suscetíveis a doenças cardiovasculares, ou mesmo com propriedades que nós podemos considerar desejáveis, como cor dos olhos ou altura maior", provocou a cientista. "A tecnologia do CRISPR nos dá as ferramentas para isso, levantando questões éticas que precisamos considerar."

AFINAL, O QUE É CRISPR?

Se você achou o nome esquisito, espere até saber o que ele significa. CRISPR é um acrônimo para o termo em inglês "Clusters of Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats". Traduzir para o português não ajuda muito: Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas. A explicação é complicada, mas a ferramenta ganhou popularidade por simplificar muito o trabalho dos cientistas. Na prática, o CRISPR tornou mais rápido, mais fácil, mais barato e mais preciso desativar, corrigir ou substituir genes.

Em 2003, a conclusão do Projeto Genoma Humano foi considerada um dos maiores avanços da biologia. Depois de 13 anos de trabalho, os cientistas conseguiram finalmente sequenciar os cerca de três bilhões de pares de bases nitrogenadas (lembra da adenina, timina, guanina e citosina?) que formam eu e você.

Mesmo com todo o DNA rastreado, os cientistas não conseguiam encontrar uma maneira simples de modificar genes quando eles apresentassem mutações ou doenças congênitas. Até que, em 2012, um time liderado pela norte-americana Jennifer Doudna e sua colega francesa Emmanuelle Charpentier descobriu que era possível pegar emprestada uma técnica usada pelas bactérias para fazer isso.

Assim como outros seres vivos, as bactérias podem ser vítimas de ataques de vírus. Para combatê-los, elas usam um sistema que identifica o DNA perigoso do vírus, copia e lembra-se dele para se defender na próxima invasão. É como a carta a ser procurada em um jogo de memória. Quando o vírus reaparece, a bactéria usa esse gabarito para encontrá-lo. É aí que em entra em ação a proteína Cas9: como uma tesoura, ela elimina a parte problemática do DNA. Pronto: o vírus fica impedido de se reproduzir.

Doudna e Charpentier aplicaram o mecanismo das bactérias em outras células, inclusive de seres humanos. Elas perceberam que é possível entregar para a Cas9 um retrato da parte do DNA que se quer mudar. A proteína, então, entra em ação nas células tirando uma sequência específica de DNA que gera doenças, substituindo-a por outra ou deixando os genes se regenerarem sozinhos. É essa técnica que permite a edição genética em seres humanos. Bingo!

DA FICÇÃO PARA A REALIDADE

Ainda estamos longe de conseguir editar características pessoais, mas o mecanismo já está aí. No episódio Designer DNA da série "Explained", disponível na Netflix, Doudna compara as possibilidades do uso do CRISPR ao filme "Gattaca"(1997). Na obra, o genoma dos indivíduos funciona como uma espécie de ficha de identidade. Pense em um perfil no LinkedIn no qual, em vez de descrever suas habilidades, você pode indicar que tem os genes necessários para desempenhar certas funções.

No longa-metragem, para garantir o futuro dos filhos, os pais escolhem os embriões com as melhores características. "Quando eu assisti àquele filme era completamente ficção científica. É incrível pensar que, agora, estamos à beira de isso se tornar uma possibilidade real", disse a cientista.

O melhoramento humano deixou de ser apenas tema de distopias distantes em cinemas ou bibliotecas. Os primeiros bebês geneticamente editados do mundo já nasceram. Em novembro de 2018, a publicação MIT Technology Review revelou que o cientista chinês He Jiankui e sua equipe estavam criando embriões com DNA manipulado e implantando-os no útero das mães. Poucos dias depois, o próprio He admitiu o fato em uma conferência em Hong Kong e deixou pesquisadores do mundo todo em choque.

Ele disse que usou a técnica CRISPR para editar em laboratório, in vitro, o genoma de embriões que viriam a se tornar Lulu e Nana, duas irmãs gêmeas filhas de um pai portador de HIV. He disse que conseguiu desativar o gene que permite a infecção pelo vírus. Isso sem avisar as autoridades.

No entanto, ainda não se sabe quais efeitos colaterais poderão afetar as garotas durante a vida. Uma das maiores preocupações é que outras partes do DNA das meninas tenham sido afetadas. Pior ainda: como a edição foi feita ainda nos embriões, poderá ser transmitida às próximas gerações. Uma pesquisa feita após o nascimento delas indica que seus cérebros podem ter sido alterados, com consequências para memória e cognição. O que levantou a questão: será que He já sabia disso e estaria, na verdade, tentando gerar bebês mais "inteligentes"?

DA CHINA PARA A RÚSSIA

Doudna disse ao New York Times que ficou "horrorizada" quando soube do ocorrido. Ela recebeu um email de He com o título "Babies Born" (bebês nasceram). "Eu me senti fisicamente meio enjoada", relatou. O governo chinês afirmou que ele vai sofrer consequências legais. O cientista foi confinado ao campus da universidade de Shenzhen e não é visto desde janeiro. Além das gêmeas, ele admitiu que uma segunda mulher estava grávida de um bebê geneticamente modificado pela técnica, que teria nascido.

Mesmo com toda a reação negativa, um cientista russo disse à Nature em junho deste ano que também pretende modificar embriões usando CRISPR. "Acho que sou louco o suficiente para fazê-lo", declarou Denis Rebrikov. Ele pretende desativar o mesmo gene que He desativou nas gêmeas, mas em vez de um pai com HIV, Rebrikov quer fazer o experimento em embriões com mães que tenham o vírus.

Um mês mais tarde, o russo disse à New Scientist que cinco casais com um tipo recessivo de surdez - ou seja, que inevitavelmente será transmitida aos filhos - já estão na fila para testar o uso do CRISPR em seus embriões. O caso é ainda mais polêmico porque não envolve uma doença com risco de vida aos bebês.

Rebrikov, que tem um laboratório de genética na maior clínica de fertilização do país, aguarda agora a aprovação do governo para seguir em frente. Na Rússia, a engenharia genética é proibida na maior parte dos casos. No entanto, como o CRISPR ainda é uma técnica relativamente nova, não há regras específicas por lá, o que é o caso em praticamente todo o mundo.

Por enquanto, há uma espécie de acordo global entre os cientistas de que é preciso fazer mais testes antes de aplicar o CRISPR em embriões. Em adultos, a técnica começou a ser testada neste ano nos Estados Unidos, no Canadá e em alguns outros países. Mais recentemente, foi anunciado o primeiro estudo com uso de CRISPR dentro do corpo humano, e não em uma célula editada em laboratório. O experimento será realizado por duas empresas de saúde dos Estados Unidos e pretende testar a efetividade da técnica para curar um tipo de cegueira hereditária em adultos e crianças.

MEUS GENES, MINHAS REGRAS

Aqui no Brasil não há legislação específica para o uso do CRISPR em seres humanos, então é preciso recorrer a resoluções mais abrangentes e debater caso a caso. De acordo com a professora Celia Priszkulnik Koiffmann, coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Biologia da USP, pesquisas in vitro com células retiradas do corpo e sem intenção de implantação não configuram ataques à ética. No entanto, para reintroduzir células modificadas no corpo, é preciso ter autorização.

Jorge Venâncio, coordenador da Conep (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa) diz que a criação de regras específicas para pesquisas com CRISPR em seres humanos pode entrar em pauta a partir do fim deste ano. Para ele, essas regulamentações devem ser consideradas com mais urgência se o conselho começar a receber propostas de pesquisa em células germinativas. Mas ainda não é o caso. As pesquisas que chegaram para análise da Conep são, por enquanto, focadas em células somáticas. Essas células são maioria no nosso corpo, mas não englobam espermatozóide e óvulo.

Na agricultura, o uso do CRISPR foi aprovado pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) em junho de 2018. O primeiro organismo desenvolvido com a técnica foi uma levedura para produção de bioetanol, e a decisão foi comemorada por quem faz pesquisas na área, já que não enquadra os organismos editados com uso do CRISPR como transgênicos - além de facilitar o processo de regulamentação dos produtos. "Como o Brasil entende que o produto deve ser regulamentado e põe menos peso no processo, o que vai acontecer é a possibilidade muito grande de criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento de novas empresas e startups no ramo", prevê o presidente da Sociedade Brasileira de Genética, Márcio de Castro Silva Filho.

Silva Filho diz que a descoberta é tão importante que deve render em breve um prêmio Nobel. "É um processo irreversível e um avanço sem precedentes", afirma. "É um daqueles grandes momentos de ruptura do conhecimento. Essa técnica muda o patamar [da edição genética] em função da especificidade com que consegue editar o gene, muito parecida com a evolução natural."

LIMITAÇÕES GENÉTICAS

Por enquanto, as modificações possíveis no DNA são restritas. Ainda não se sabe ao certo quais genes estão envolvidos em cada uma das nossas características. Além disso, muitas delas não dependem apenas do DNA. Inteligência e facilidade em tocar um instrumento musical, por exemplo, se devem a uma soma de fatores que podem incluir genética, ambiente e esforço pessoal.

Não há um único "gene da inteligência" que possa ser selecionado em um embrião. Mesmo características que parecem mais simples, como altura, ainda não foram totalmente mapeadas no genoma.

"A limitação aí não é da técnica CRISPR, mas sim da genética", explica Clarissa Ribeiro Reily Rocha, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Se a genética evoluir no sentido de entender os genes responsáveis por cada característica, pronto. O CRISPR vai lá e faz."

Discutir os limites éticos de uso do CRISPR desde já - mesmo que com uma dose de futurismo - é importante. Quando a tecnologia estiver disponível, uma coisa é certa: haverá demanda.

QUERIDA, CORRIGIRAM AS CRIANÇAS

Médicos que realizam fertilização in vitro já percebem grande interesse de futuros pais na seleção genética dos embriões. Georges Fassolas, diretor da Clínica de Reprodução Humana Vivitá, de São Paulo, relata que há dois questionamentos bastante frequentes, além da preocupação com doenças. O mais comum é querer escolher o sexo do bebê e, em segundo lugar, a cor dos olhos. A resposta, em ambos os casos, é não.

As técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto para evitar doenças, determina o Conselho Federal de Medicina (CFM). Mesmo que ainda não exista regulamentação para o uso de CRISPR em humanos no Brasil, a resolução acima indica que a comunidade médica não vê com bons olhos a interferência em embriões, a menos que seja para evitar doenças.

No Brasil, é permitido fazer testes genéticos nos embriões e descartar ou doar para pesquisa aqueles que apresentarem mutações ou genes responsáveis por causar doenças. A geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e células-tronco da USP, defende que o CRISPR já seja usado em embriões que não serão implantados, apenas com finalidade de pesquisa. "Em vez de descartar os embriões não usados, que eles sejam corrigidos. Isso permitiria no futuro eliminar a mutação nas gerações seguintes", afirma. Mas implantar esses embriões é outra coisa, reconhece a pesquisadora. "Temos que caminhar bastante ainda em termos de pesquisa."

Por enquanto, o CRISPR fica restrito aos laboratórios, e as mães podem escolher implantar apenas embriões saudáveis por meio da reprodução assistida. Mas elas nem sempre querem interferir. Fassolas conta que uma de suas pacientes fez fertilização in vitro sem análise genética e teve um filho com Síndrome de Down. Quando ela voltou ao consultório para ter um segundo filho pela reprodução assistida, o médico imaginou que a paciente fosse optar pela análise genética. Estava errado. "Eu propus fazer análise genética, achei que nem seria uma dúvida", lembra. "Mas ela me disse uma coisa interessante e que sempre vou lembrar: 'Doutor Georges, sinceramente, eu amo meu filho mais do que tudo. Por que eu vou fazer análise genética? Se eu tiver a notícia de que o segundo tem a mesma síndrome, eu vou colocar aquele embrião do mesmo jeito.' Então a perspectiva muda de acordo com as vivências de cada paciente."

OTIMISMO?

Uma preocupação que aflige tanto especialistas quanto possíveis pacientes é: quem vai poder pagar pelos tratamentos? A pesquisa da AP-NORC mostra que 76% dos norte-americanos consideram pouco provável que a edição genética venha a ser acessível para a maioria das pessoas. "Temos que brigar para isso não acontecer, mas infelizmente é o que acontece. É a mesma coisa com a medicina de ponta: quem tem mais dinheiro tem mais acesso", diz Mayana. Ela observa que testes genéticos, por exemplo, não são cobertos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) atualmente.

Em artigo publicado no New England Journal of Medicine, três pesquisadores tentam acalmar a ansiedade de quem se preocupa com um futuro em que teremos bebês geneticamente arquitetados. Para eles, ainda estamos longe de chegar a tal ponto. Mas não é por falta de vontade.

No próprio Vale do Silício, dezenas de startups genéticas estão recebendo investimentos de grandes fundos, que estão de olho nos lucros de futuros produtos e serviços que a área pode criar nos próximos anos. Para controlar um pouco tanto empreendedorismo, em janeiro de 2020 a Califórnia colocará em vigor uma lei em que os kits laboratoriais caseiros de edição genética (alguns custam US$ 150 e podem ser entregues por correio) venham com o alerta de que não são para o uso pessoal - o Estado está tentando regulamentar o chamado biohacking humano, experimentos de modificações corporais que vão de implantar chips sob a pele até transfusão de sangue jovem e experimentos para "otimizar" o corpo.

"Nossa maior proteção contra a edição inapropriada do genoma pode ser a não aceitação de se influenciar características como inteligência, que emergem de interações complexas entre diversos genes e ambientes", escrevem George Q. Daley (Universidade de Harvard), Robin Lovell-Badge (Francis Crick Institute) e Julie Steffann (Université Paris Descartes). "Nossa ignorância em relação a tal complexidade pode, no fim das contas, nos salvar dos perigos da arrogância humana."

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