VIOLÊNCIA SEM FRONTEIRAS

Centenas de tiros, mensagens junto aos corpos e atrocidades marcam a sangrenta divisa do Brasil com o Paraguai

Perto do outdoor anunciando o shopping "duty free" de Pedro Juan Caballero, um Toyota Corolla ardia em labaredas e provas na vizinha Ponta Porã (MS). A 300 metros dali, um saco de estopa embalava o corpo esquartejado do brasileiro Eduardo Alvarenga González, 18.

Tendo o cadáver como peso para não voar com o vento, um papel trazia a seguinte frase, escrita com caneta azul, em letra de forma: "Atenção Celso Gonçalves e Leandro Gonçalves (Surubim) voceis são os proximo". Apesar da grafia incorreta, o recado era certeiro para tio e sobrinho envolvidos no tráfico da região.

Naquela noite, o carro incinerado e a cabeça decapitada serviam como marcos fronteiriços deste século 21 — versão atualizada dos blocos de cimento que desenharam a expansão brasileira até aquele limite sem rio após a vitória na Guerra do Paraguai (1864-1870).

O conflito continua sendo por território: saem os exércitos nacionais e entram as facções criminosas. O interesse não é mais ganhar solos e subsolos ricos como no século 19, mas dominar o caminho terrestre da maconha paraguaia para os centros brasileiros e o da cocaína vinda da Bolívia e Peru rumo à Europa.

Eduardo era olheiro e fazia campana em julho perto de uma base do PCC, grupo paulista que detém um instável domínio da região desde 2016. O garoto foi identificado, perseguido, ferido, levado para dentro do veículo e acrescentado à lista de mais de 200 execuções de 2021 nos municípios da fronteira seca entre as nações.

O crime de maior repercussão, um quádruplo homicídio no mês passado, incluiu nessa estatística a filha de um governador paraguaio e duas brasileiras que estudavam medicina no país vizinho. Em comum, essas mortes vieram junto a mensagens, escritas com centenas de tiros, bilhetes deixados na cena ou atrocidades com os corpos. No caso de Eduardo, foi tudo isso junto.

CHEFÕES E NOVINHOS

Antes, o título de "rei da fronteira" cabia a chefões de meia-idade e camisa social, como Fahd Jamil, Jorge Rafaat ou Jarvis Pavão. Do assassinato de Rafaat, em 2016, para cá, manos do PCC com apelidos como Galã, Minotauro, Bonitão e Bebezão se sucedem rapidamente nesse reinado, que termina sempre com suas detenções.

Controlador da jogatina, do contrabando e do tráfico por cinco décadas, Jamil, 79, morava em um casarão que imitava Graceland, a mansão de Elvis Presley em Memphis (EUA), e tinha um Cadillac com pneus reforçados para percorrer dois quilômetros mesmo metralhados. Já o império de Wesley Neres dos Santos, 33, vulgo Bebezão, durou dois meses (de janeiro a março de 2021) e terminou com ele em um camburão, de bermuda e tênis Nike.

A execução de inimigos é uma etiqueta do mercado criminal local, mas a violência multiplicou esse ano, incluindo mulheres e adolescentes. Depois das constantes prisões de líderes do PCC, uma brecha se abriu para grupos rivais avançarem.

Além dos clãs paraguaios, facções brasileiras como Comando Vermelho (a pioneira, desde o século passado na área), Família do Norte, Primeiro Grupo Catarinense e os gaúchos do Bala na Cara operam ali e competem, expondo suas vítimas em praça pública como demonstração de força (na média, gastam-se 30 tiros em cada morte).

"Eles são os donos da vida. Se matam entre eles, e nós entramos na conta. Vai ser cada vez pior, e nunca vai acabar. Eles nem precisam ameaçar: se você está na mira, não escapa. Não adianta colocar blindagem nem escolta policial", desabafa José Carlos Acevedo, prefeito de Pedro Juan Caballero que vai para seu quarto mandato e está há 15 anos no poder. Suas frases vêm acompanhadas de tiques faciais e pernas inquietas de quem testemunhou dois atentados: em um saiu ferido seu irmão Robert (então senador) e no outro morreu sua sobrinha Haylee (filha de outro irmão, o atual governador do Departamento de Amambay, Ronald).

INTERCÂMBIO DO CRIME

Para autoridades, policiais e jornalistas, a regra é "plata o plomo" (em português, "dinheiro ou chumbo"). Quem não se corrompe vira alvo do chamado "sicariato", tradicional setor de matadores de aluguel do Paraguai.

Os narcopolíticos estão dos dois lados. Nos municípios sul-matogrossenses de Aral Moreira e Paranhos, há exemplos de mandatários com campanhas bancadas por narcos e parentela atrás das grades. No Paraguai, onde o voto é facultativo, o dinheiro da droga compra a preferência dos eleitores pobres.

A escolha da conurbação de 200 mil habitantes formada por Ponta Porã e Pedro Juan Caballero tem duas razões. Uma delas é que a lei brasileira de 1998 que permite o abate de aviões suspeitos fez o caminho por terra ganhar maior importância nos últimos anos. A outra é que os bandidos se mimetizam facilmente nessa zona binacional, bilíngue e de dupla cidadania (20% da população), onde basta atravessar a rua para mudar de país.

Os traficantes chegam a se matricular nas faculdades paraguaias de medicina, onde estudam 15 mil brasileiros, atraídos pelas mensalidades baratas e pela ausência de vestibular, mas traídos pelo baixo índice de aceitação do diploma no Brasil (só 5% conseguiram passar no último Revalida).

Como Bebezão, mais de 50 inscritos são suspeitos de pertencer a facções — e pelo menos duas das oito instituições da cidade foram investigadas por lavagem de dinheiro. Os bandidos brasileiros se entregam quando caem na noite, atrás das colegas universitárias, e começam a ostentar dinheiro e o sotaque paulistano (entre a cúpula, quase todos são de São Paulo).

BILHETES SALPICADOS DE SANGUE

Pode ser uma pista ou um despiste. Pode ser em português, espanhol ou portunhol. Pode ser sobre folha pautada de caderno, cartolina colorida, pedaço de papelão ou até um sulfite imprimindo texto de computador. Pode estar enfiada no meio da roupa da vítima ou ao lado, com chinelos ou torrões de barro em cima.

Esses sacrifícios com avisos escritos começaram em 2014, intensificaram-se em 2015 e 2016, pararam com o início da pandemia e voltaram com tudo em 2021. "Os Justiceiros estamos de volta. Aviso para todos: Isso é só o começo. Morte aos ladrões", dizia o papel manchado de sangue e colado com fita crepe na roupa de Derlis Cardozo, 17, encontrado em julho em um matagal com as mãos cortadas e as peles do peito e do rosto arrancadas.

Dias depois, a balconista Anabel Centurión festejava seu aniversário de 22 anos no deck da La Choperia, em uma rua de bares que cerca um parque com lago e pedalinhos, bem no centro de Pedro Juan Caballero. Um Chevrolet Cobalt parou e ela recebeu uma saraivada de tiros. O alvo principal era seu namorado, Mateo Martínez, suspeito de roubar uma loja de eletrônicos. Jogaram no local um bilhete com a inscrição: "Favor Não Roubar. Assinado: Justiceiro da Fronteira". Mateo e Anabel morreram, outro casal foi ferido, o bar mudou de nome e reabriu — e só sobrou um canteiro estilhaçado como testemunha da carnificina.

Os "Justicieros de la Frontera" assinam a maioria dessas mensagens endereçadas aos pequenos delinquentes. No início, acreditava-se que eram matadores contratados pelo comércio local. Depois, o dedo foi apontado para as facções, que não querem que o varejo do crime atrapalhe o grande negócio da droga, atraindo mais policiamento. Ao final, todo tipo de vingança inclui um bilhete como marca da violência simbólica local.

SIGLAS DA CARNIFICINA

Por vezes, os recados mortais vão além: já foram endereçados ao grupo rival GDC (Guardiões do Crime) e também para o EPP (Exército do Povo Paraguaio), a guerrilha que sequestra proprietários rurais e vende proteção nas plantações de maconha para o PCC, enquanto ainda proclama que luta pela reforma agrária.

O paulista Carlos Limar de Souza Lima, 38, apareceu em setembro decapitado em um carro estacionado perto de uma área militar paraguaia. No veículo, uma cartolina laranja trazia: "Nós do crime estamos deixando claro que não iremos mais admitir covardias cometidas por esses justiceiros, seja quem for".

Em agosto, os primos brasileiros Jeferson e Robson de Souza, de 18 e 21 anos respectivamente, cruzaram um Toyota Hilux escuro e foram mortos com dezenas de tiros na saída do Parque de Exposições da cidade paraguaia. A cartolina verde deixada falava do EPP e do GDC. A assinatura dos justiceiros mal dava para ser lida. A caneta azul falhou no final, assim como a Justiça paraguaia vem falhando em punir os responsáveis pelas matanças.

As hipóteses se abrem em leque, as investigações se esgotam e os casos se fecham com "autores desconhecidos". A lei do silêncio prevalece e as testemunhas temem falar para não serem as próximas. Em dois ou três dias, cada um desses casos passa das páginas policiais e das pastas judiciais para o total esquecimento.

AGRO É NARCO

O acerto de contas acaba com post-its numerados apontando os disparos que ficaram nas calçadas, paredes e latarias — e também em gráficos com dados crescentes de homicídios (subiram de 30 execuções na região em 2018 para rondar os 200 em 2021). "A pandemia parece que represou essa violência, porque as pessoas ficaram em casa, e a fronteira estava fechada por cavaletes. Mas ela veio com tudo agora", afirma o delegado Hugo Díaz, que chefia as investigações policiais do lado paraguaio.

Na área rural, porém, as vias clandestinas continuaram abertas o tempo todo, aproveitando os 437 quilômetros de divisa sem rios. Conhecidas como "transcabriteiras", por transportar os "cabritos" (gíria para carros roubados), essas trilhas também poderiam se chamar "transmaconheiras".

A mesma terra vermelha boa para plantar soja e milho, que faz a fortuna dos ruralistas de Ponta Porã, é excelente também para a Cannabis sativa. A cidade de Capitán Bado, colada no Brasil, é a capital da maconha paraguaia. Os plantadores fazem clareiras circulares nas reservas de mata nativa das fazendas, com a anuência ou não de seus proprietários.

O cultivo foi encontrado até no Parque Nacional Cerro Corá, local da última batalha da Guerra do Paraguai, maior conflito armado da América do Sul. Lá morreu e está a sepultura de Francisco Solano López, líder que sonhava com um Paraguai grande, com saída para o mar. O país, porém, acorda pobre todos os dias.

Em Cerro Corá, a dizimada tropa paraguaia era formada por muitas crianças e adolescentes. E, até hoje, os pequenos acabam entrando na matança geral da região. Um menino de dois anos foi encontrado sem vida com uma folha de caderno ao seu lado onde se lia a lápis, com letra redonda e caprichada: "Sinto muito. Seu filho viu algo que não podia ver. Temos o outro filho mais velho".

O irmão de 14 anos ficou desaparecido até o dia seguinte, quando voltou de bicicleta e confessou à polícia que ele mesmo o tinha matado acidentalmente, sufocando a criança com um travesseiro para fazê-la ficar quieta. O bilhete, como vários outros, era mais uma pista enganosa dessa fronteira. Esse caso é uma exceção, afinal, foi resolvido. As vidas por lá, porém, vão se apagando em queimas de arquivo, grupos de extermínio, locais de desova e sumiço de provas.

José Medeiros/UOL

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