LATIFÚNDIO ELEITORAL

Pontão, cidade-berço do MST no Rio Grande do Sul, vive racha desde 2018, quando Bolsonaro venceu por 1 voto

Mateus Araújo (texto) e Carlos Macedo (imagens) Do TAB, em Pontão (RS) UOL

"Vamos de Bolsonaro de novo?", pergunta o borracheiro Jaime Vieira, 28, a um cliente, enquanto limpa as mãos na camiseta manchada de água sanitária bem no peito.

"É o quê?", retruca o homem, franzindo a testa, sem entender a frase. Um ônibus acaba de passar na estrada, a poucos metros dos dois, e o barulho do motor bagunça ainda mais o diálogo ruidoso.

A oficina onde Jaime trabalha é um dos primeiros comércios à vista de quem chega a Pontão, no norte do Rio Grande do Sul, vindo da vizinha Passo Fundo. Fica à beira da rodovia RS-324, abraçada pelo mundaréu verde da soja e de alguns pés de eucalipto. Bem ao lado do galpão, num outdoor, o presidente da República esboça seu meio sorriso. O cartaz anuncia "Fechado com Bolsonaro" e o lema "Deus, Pátria, Família".

Com o silêncio que recebeu de volta, o borracheiro insiste. Sobe o tom de voz e diminui o ritmo da pronúncia. "Vamos de Bolsonaro de novo, né?". Certo do que ouvia, o outro coloca as mãos para trás do corpo e não titubeia: "Claro que sim. PT já era".

O resultado das eleições de 2018 ainda é assunto no pequeno município de 3.857 habitantes. O voto de seus 3.082 eleitores rachou a cidade ao meio. Jair Bolsonaro (àquela época no PSL) ganhou por apenas um voto de diferença sobre Fernando Haddad (PT) no segundo turno. Foram 1.297 eleitores contra 1.296 — uma virada sobre o resultado do primeiro turno, quando o candidato do PT estava à frente com uma diferença de quase 30 votos.

A vitória bolsonarista surpreendeu o município considerado uma ilha petista no interior gaúcho.

A história de Pontão está ligada ao movimento em defesa da reforma agrária no Brasil. Em 1972, a fazenda Annoni, uma das maiores da região, foi desapropriada pelo governo Médici por ser um latifúndio improdutivo. Para lá se deslocariam famílias de colonos cujas casas foram inundadas durante a construção da faraônica hidrelétrica de Passo Real.

Os donos da fazenda contestaram a desapropriação, alegando que ali havia uma empresa rural. O litígio se arrastou por mais de uma década, travando qualquer possibilidade de uso e posse legal das terras.

Na noite de 29 de outubro de 1985, 1.500 sem-terra de 30 municípios vizinhos chegaram ao local para ocupar os terrenos. Aquela era a primeira grande ação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no país, criado um ano antes, com apoio de grupos católicos da Pastoral da Terra.

Pontão virou cidade em 20 de março de 1992, um ano antes do início da legalização do território invadido. O assentamento da Fazenda Annoni ampliou a população local, permitindo que o então distrito de Passo Fundo se emancipasse. A atuação do MST entre os agricultores criou na região um colégio eleitoral majoritariamente petista.

"Aqui tem histórico de muita luta", lembra o agricultor Sebastião de Fragas, 69, um dos primeiros assentados. Nascido em Trindade do Sul, a 72 km de Pontão, ele trabalhava como meeiro em fazenda de milho e soja, dividindo parte do que recebia com o dono da terra. "Com tanta terra improdutiva, nos organizamos em grupo e decidimos partir para a luta."

Bastião, como é conhecido, chegou a morar com a mulher e um filho em um barraco de lona, durante os sete primeiros anos da ocupação. "Passamos dois meses cercados pela polícia", lembra. No naco de terra que lhe coube, planta soja, feijão, milho, hortaliças, arroz, trigo e aveia. Consome uma parte e vende outra por meio de uma cooperativa do próprio assentamento.

"A história desse lugar é a de um conflito agrário", resume o estudante Ricardo Volpi, 24. Ele cursa agronomia no Instituto Educar, criado em 2005 pelo MST nas terras da Annoni, atual polo da UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul). Em 23 de março de 2018, 15 dias antes de ser preso, o ex-presidente Lula esteve ali, durante uma caravana que fez pelo país.

Pontão tem cerca de 400 propriedades rurais. Dos 41.019 hectares de roçado, 84,1% são de soja, como mostrou um levantamento publicado pelo Sebrae em 2020. "É uma guerra", reforça a coordenadora do Educar, Salete Campigotto, 67. O instituto oferece curso técnico de agropecuária e graduação em agronomia. "Além de forma de trabalho, é um modo de vida", defende.

A disputa, que no passado era por um pedaço de chão, hoje é resultado da concorrência entre modos de produção. Rixa que deixou de ser violenta para ser silenciosa, resvalando na política, dando margem à polarização nas urnas.

"Essa poeira move nosso país", afirma o agricultor Rodrigo Carassa, 38. Uma colheitadeira rasgava a lavoura de soja, fazendo uma chuva de mato picado cruzar o ar.

A família dele, dona de seis propriedades em Pontão, integra o movimento bolsonarista da cidade. "Um grupo ideológico que defende o aborto não merece nunca estar no poder", define ele, ao explicar "o primeiro grande fato para o agro apoiar Bolsonaro" na região.

Há mais dois motivos, acrescenta o fazendeiro: Bolsonaro é a favor do garimpo para extrair potássio, um dos fertilizantes mais usados no agronegócio, e do marco temporal, que limita a reivindicação de terras de indígenas.

O antipetismo se fortaleceu em Pontão a partir de 2015, quando um grupo de ruralistas aderiu à primeira manifestação de caminhoneiros contra o governo Dilma Rousseff. Eles bloquearam a RS-324. "Era uma turma de piá que só se conhecia de vista", relembra Carassa. "Eu disse: 'Olha, nós temos uma eleição aí, tá na hora de colocar os peitos n'água. Pegamos um partido em coma e ressuscitamos." Em cinco anos, o PP (Progressistas) de Pontão saltou de 70 para 140 filiados.

Em 2020, os apoiadores de Bolsonaro elegeram o primeiro vereador do movimento conservador pontanense, o operador de máquina Luís Fernando Nunes, 33, que há 16 anos trabalha em uma fazenda local. Ele entrou para a Câmara Municipal com 150 votos.

Nunes é ex-assentado da Annoni. Seu avô trabalhou 35 anos como fiscal das terras da fazenda antes de ela ser desapropriada e a família recebeu um lote na época da legalização. "A gente viveu a mesma luta, sofreu as mesmas dificuldades. Estávamos lá dentro por formas diferentes, mas como muitas famílias, tivemos de sair. Passamos muita necessidade."

O vereador defende a industrialização no município para evitar o êxodo rural. "Temos que criar um berçário industrial para incentivar os jovens a serem pequenos empreendedores, que tenham coragem de investir e de abrir empresas", explica. É com esse discurso que o PP mira seu próximo objetivo: conquistar a prefeitura.

Mais de 67% da população de Pontão está na faixa etária economicamente ativa (dos 10 aos 60 anos), segundo números do DataSUS. Desse total, 15,25% têm de 20 a 29 anos, e 14,35%, de 30 a 39. "Nem todo mundo quer trabalhar no campo, mas falta opção. Muitos jovens vão buscar emprego fora", lamenta Naiana Poletti, 30, que administra uma oficina mecânica da família na cidade.

Poletti votou em Bolsonaro há quatro anos e pretende repetir em 2022. "Não voto em Lula por causa daquela questão do roubo", argumenta. A chance de o atual presidente ganhar novamente na cidade, na opinião dela, é grande, mas essa vitória depende de um único fator: a administração municipal. Para ela, "o prefeito atual está fazendo uma ótima gestão. Assim há possibilidade [de convencer a população a votar em Lula]", reconhece.

Numa parede cheia de quadros, na entrada da prefeitura, estão as fotos de todos os ex-prefeitos de Pontão. "Esse e esse aqui não são do PT", aponta Velton Hahn, 57, petista eleito em 2020 com 1.215 votos. Motorista municipal, ele foi vereador por dois mandatos seguidos, em 2012 e 2016.

Em três décadas, o PT ganhou seis das oito eleições municipais — à exceção de 1992, quando Aldo Formighieri assumiu o cargo pela coligação PTB/PDS/PMDB/PFL, e de 2008, quando o escolhido foi Delmar Zambiasi, do PSB.

Para Hahn, a vitória de Bolsonaro na cidade tem a ver com um processo nacional, "colocado pela mídia", e não ameaça a hegemonia do seu partido na região. Por isso, garante, Lula deve retomar o apoio local. "Te asseguro que, dentro da nossa cidade, as pessoas se arrependeram. Com certeza, Lula ganha. Talvez não seja com grande diferença, mas não vai ser por um voto."

Em dezembro de 2021, Hahn teve de lidar com uma operação do Ministério Público estadual na sede da prefeitura e em cinco secretarias. Há suspeita de fraude em licitações. Dez pessoas foram afastadas, incluindo o ex-prefeito Nelson Grasselli (PT), então secretário de Saúde.

"Nunca recebemos notificação ou pedido de documentação. Soubemos pela mídia", justifica Hahn. "Certo dia cheguei aqui, estava todo o aparato de polícia. Queira ou não queira, fica muito feio pro município."

O escândalo é usado pelos bolsonaristas como trunfo eleitoral. Para os petistas, não passou de pressão política. "Até hoje não se tem resultado", comenta o estudante Ricardo Volpi. Procurado pelo TAB, o promotor Mauro Rockenbach, responsável pelo inquérito, disse que ainda não há informações nem previsão para concluir a investigação. A operação envolve outros 10 municípios.

Enquanto isso, um dos focos do PT pontanense será conquistar o voto de jovens, segundo o vereador Eduardo Sereta (PT), 40, presidente da Câmara Municipal. "Acredito que eles acompanharam essas dificuldades de falta de investimento na educação e de acesso à universidade, por exemplo, e vão votar diferente."

Todo final de tarde, sentadas na calçada de casa, as aposentadas Marlene dos Santos, 73, e Helena Stamm, 80, observam o movimento dos caminhões que saem das fazendas em direção aos centros de distribuição de grãos. "Aquele ali é petista doente. Nosso conhecido, mas a gente nem fala sobre política", comenta Helena, ao se referir a um vizinho.

As duas são eleitoras fiéis de Bolsonaro. "Ele fez um monte de coisa que não consigo explicar, mas tu deve saber", argumenta a mais nova, explicando o voto no presidente.

Fora da lavoura, o bolsonarismo se alastra pelas redes sociais. "É por aqui que recebo as coisas dele", diz Marlene, deslizando o dedo pela tela de um celular para mostrar a foto do filho ao lado do presidente. "Ele mora em Mossoró (RN), é agente penitenciário. Foi ver o presidente, que estava lá", conta.

Entre elas, não importam as indústrias nem a briga entre os produtores. A relação com Bolsonaro tem a ver com a própria história familiar. "Nunca votei no PT", afirma Helena. "Meu pai dizia que comunista não presta. Se tivesse dois vestidos secando no varal, o comunista ia lá e roubava um."

Apesar da votação simbólica, o presidente nunca visitou Pontão nem citou a cidade em suas lives semanais. Também não há articulação para uma passagem dele por lá. "Não precisa, ele já tem nosso voto", retruca a aposentada. Mesmo sem saber ao certo como será o resultado das eleições de 2022, a lavoura de Bolsonaro vai espalhando raiz. "Vocês vieram aqui só para isso?", emenda.

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