VIM, VI E VENCI

Brasileiros ricos mudam para Miami, que emergiu na pandemia como novo polo financeiro e cultural dos EUA

Juliana Sayuri (texto) e Alex Korolkovas (fotos) Do TAB, em Miami (EUA) Alex Korolkovas/UOL

No Biscayne Boulevard, uma via famosa de North Miami Beach, um tapume azul dava boas-vindas "à sua casa, à sua lagoa, à sua reserva natural". Atrás dele, ainda era quase tudo mato e brita. Ao lado, porém, o glamour já dava o ar da graça no "sales lounge": corretores trajando paletós finos e saltos Louboutin desbravavam o terreno de 750 mil m² que abrigará o One Park Tower, condomínio de luxo com lago artificial de 28 mil m² e uma série de "beach clubs".

"Não tem nada mais Miami que construir uma praia estando a 20 minutos da praia", brinca o paulistano Daniel Ickowicz, 45, diretor da consultoria imobiliária Elite, que leva clientes latino-americanos ao empreendimento onde as menores unidades (90 m²) custam US$ 829 mil (R$ 4,3 milhões) — até então, três brasileiros tinham arrematado quinhões na torre. "Daniel só conhece os 'bacanas'", brinca o amigo nova-iorquino Marcos Freire, 52, filho de brasileiros também radicado em Miami.

Os "bacanas" a que ele se refere são brasileiros endinheirados que vêm migrando para a cidade nos últimos anos, um fluxo intensificado com a pandemia de covid-19. A Flórida, estado governado pelo republicano Ron DeSantis, ficou aberta durante o lockdown. Miami, administrada pelo também republicano Francis Suarez, investiu para puxar negócios de outros cantos.

A pandemia também atraiu à ensolarada Flórida os "snow birds", norte-americanos que costumam viajar para lá durante o inverno. Em 2021, mais de 100 mil nova-iorquinos e californianos, entre outros, foram morar em Miami, tida hoje como a "Wall Street do Sul".

Miami, diz Ickowicz, teria trunfos como uma impressão de segurança maior e um custo de vida menor que o de outras metrópoles dos EUA (além de menos impostos). Para os brasileiros, a localização é "ideal": "] uma ponte aérea, 7 horas num voo e você já está aqui. Às vezes você demora mais na estrada no litoral num feriado no Brasil".

Lá, o mercado imobiliário vive um boom de construções de luxo — e há brasileiros à procura de um lugar para chamar de lar, doce lar. Muitas vezes, corretores (também brasileiros) buscam clientes em hotéis para visitar propriedades na região metropolitana de Miami.

Entretanto, é "distorcida" a impressão de que os ricos vão deixar o Brasil por causa da vitória de Lula (PT), diz Ickowicz. Após as eleições, cita ele, cerca de 500 pessoas prestigiaram um evento sobre investimentos imobiliários da Flórida no hotel Tivoli, em São Paulo.

"Todo mundo dizendo que queria mudar para Miami, mas é da boca pra fora: ninguém compra apartamento do dia para a noite, só 5% a 8% vão de verdade. Esse é o cara que vai acordar de manhã, ligar para o advogado de imigração e a consultoria tributária, que vai procurar como abrir negócio, que vai investir e tomar tempo para tirar o visto certo, e que vem de fato." E quem vem de fato é rico de verdade.

Miami abriga brasileiros famosos como Romero Britto, Gisele Bündchen e Anitta. Ariel Yaari, 49, há oito anos radicado nos EUA e integrante da Câmara de Comércio Brasil-EUA na Flórida, diz que Miami é um oásis de oportunidade para o perfil "classe média alta do Brasil".

Mais de 2.000 "green cards" (cartões de residência permanente) já foram intermediados pela advogada Anita Mignone, 42, que tem dez anos de experiência na área de imigração e diz que nunca atendeu tantos brasileiros "altamente gabaritados" quanto nos últimos anos. Até fins de 2022, ela tinha cerca de 650 clientes na fila. Estima-se que hoje haja 300 mil brasileiros instalados na Flórida.

O que mudou em relação a ondas migratórias anteriores se resume a uma palavra: dinheiro, conta Patrícia Villati, 38, que desde 2017 trabalha no mercado imobiliário de luxo de Miami.

Villati diz que não vê risco de um novo crash imobiliário no país, pois agora quem está comprando tem "finanças sólidas", ao menos em Miami — inclusive para poder pagar à vista, caso de 80% de seus clientes e da maioria dos youtubers que atende. Um deles comprou uma casa de US$ 43 milhões em Miami Beach. Entre 2020 e 2022, conta, ela teve um recorde de US$ 79 milhões na venda de imóveis.

Na pandemia, um dos clientes de Villati foi o executivo sul-mato-grossense Pedro Pereira, 38, que trabalha em uma multinacional de software. Depois de estudar em São Paulo e trabalhar por dez anos em Dubai, ele foi promovido à vice-presidência da área de sustentabilidade da empresa para a América Latina, em 2022. "É importante uma cidade aberta assim para quem vem de fora."

Villati buscou os clientes na residência temporária da família, em Midtown, e os levou para visitar imóveis em Coral Gables, Pinecrest e Weston. Eles optaram por uma casa em Weston, uma cidade mais tranquila, para construir "uma bolha para a família", matriculando os filhos num colégio cristão particular. "Dubai e São Paulo são extremos; Miami está entre eles, mas mais perto de Dubai."

"Miami é a cidade da ostentação", diz o corretor floridense Jason Freitas, 40, que passou a adolescência em Belo Horizonte e, desde os 24, está de volta aos EUA. "Mineiro americano", como ele se define, Freitas notou que, entre 2012 e 2014, muitos brasileiros estavam comprando imóveis na cidade — e decidiu mergulhar no mercado.

Na primeira onda de imigração, brasileiros ocuparam áreas como Deerfield e Pompano. Depois, Boca Ratón. Hoje há um perfil diferente, diz: se antes o foco eram as casas de férias, agora são moradias ou imóveis para diversificar os investimentos. O alto luxo, como ele destaca, está nos prédios de grifes como Porsche, Bentley e Armani, em Sunny Isles, onde o m² pode custar US$ 24 mil. Segundo ele, o "arroz com feijão" é atender clientes dispostos a desembolsar entre US$ 700 mil e US$ 1,5 milhão.

Entre os clientes recentes, Freitas atendeu um jogador de futebol e um ator. "Fazer negócios com brasileiros é diferente. Tem aquele café, aquele aperto de mão que faz diferença", diz.

Não é o primeiro auge da Flórida. Os brasileiros de classe média vieram nos tempos do Plano Real (1994), que instituiu a paridade de R$ 1 para US$ 1 — na época, empresas como Odebrecht e Embraer se instalaram em território norte-americano, transferindo seus funcionários. A onda também levou para lá trabalhadores como babás, domésticas e motoristas.

No segundo fluxo (de 1999 até a crise de 2008), foi a vez da migração para trabalhar com construção civil e infraestrutura, ou para arriscar abrir pequenos negócios. Mas o controle mudou pós-11 de Setembro: os EUA endureceram as regras e passaram a deportar imigrantes sem documentos, o que não acontecia antes com frequência.

Desde 2009, na onda atual, brasileiros mais graúdos passaram a investir em imóveis em Miami. E, desde 2020, outros decidiram deixar o Brasil para trás, mudar de vez e correr atrás do sonho americano.

Do alto escalão do Citibank e transferido para os EUA na década de 1980, o advogado Aloysio Vasconcellos, 78, viu de perto o vaivém dessas ondas como presidente da Brazilian International Foundation, que controla o BBG (Brazilian Business Group). Já viu a chegada de imigrantes engravatados, depois de "aventureiros" com uma mão na frente e outra atrás.

Atualmente, nota a chegada de brasileiros com "certa estrutura". "É um tipo de classe média com discernimento, que mesmo que não tenha um anel no dedo, sabe o que é bom para ele e para a família", define. Além do mais, para ser considerado rico ou não, acrescenta, o câmbio influencia. "Agora, com o dólar a mais de R$ 5, o pessoal não anda tão rico assim."

Depende. Nos últimos tempos, brasileiros estão querendo investir um bom dinheiro por lá, conta o consultor fluminense Marcelo Oliveira, 39, CEO da startup de tecnologia e finanças Quantzed, que não se considera "radical" a ponto de aconselhar dolarizar todo o patrimônio, mas pondera que "quem não tem 30% dos investimentos em dólar está contando muito com a sorte".

Os novos investidores são ricos, mas não necessariamente estão entre o 1% dos mais ricos. "Tem brasileiro 'bestinha' que acha que US$ 10 milhões é muito... É, mas você não vai ser diferenciado por causa disso. Não é 'chegou o fulano', você não chegou ainda, não", diz uma fonte de Miami. "Uma coisa é querer vir pra cá, outra é ter condições reais pra ficar. O básico, com casa financiada e um negócio aberto, é no mínimo US$ 200 mil. A parte mais sensível do corpo humano é o bolso."

"Não foi da noite para o dia", diz a artista brasiliense Karla Calassa, 46, que se considera "classe alta, sim" com o que conquistou ao longo de décadas. Há 21 anos nos EUA, ela se divorciou recentemente e agora mora num apartamento alugado no badalado bairro de Brickell. "Minha casa é uma galeria", diz ela, que vende quadros pequenos a US$ 600 e outros maiores a partir de US$ 5.000. Hoje, também trabalha na Wall Boutique, empresa de papel de parede de luxo para clientes "high-end".

Miami, que também se vende como polo cultural, é uma festa para influencers. "Miami respira arte, fashion e lazer", diz Calassa, no bar Casa Tua, endereço que escolheu por ter a "vibe americana".

Lá, encontraria a amiga influencer Ana Sollberger, 56, paulistana dos Jardins que, com a transferência de emprego do marido, desembarcou na Flórida há dez anos. Na época, a família pôde escolher entre San Diego, na Califórnia, e Miami. Hoje, ele tem o próprio negócio; ela acorda, vai malhar e depois vai a festas e abertura de lojas. Com cerca de 5.000 seguidores, ela diz que ganha até US$ 250 por post no Instagram, mas a maioria é permuta. "Um hobby."

O lifestyle de Miami, diz Sollberger, lembra o do Brasil: a diferença é que é uma cidade "que tem tudo o que o Brasil deveria ter", como trabalho, segurança e sol.

"Nos EUA, nós somos mais tranquilos, é normal você usar marca. Uma Chanel é mais acessível." Indagada se Miami também tem um lado "cafona", ela responde: "50% da população de Miami é latina, e as latinas [hispânicas], dentro da cultura delas, são bem coloridas e extravagantes. Não diria cafona, é cultural. A brasileira é mais elegante e bem vestida. É diferenciada".

De olho nas tendências, Sollberger e Calassa gostam de curtir a cidade em points frequentados por brasileiros, como Faena, Il Gabbiano, Swan, "um happy hour no Kiki On The River, um brunch no Little Hen de Midtown", e a Casa Tua, no Brickell City Centre, um dos shoppings gerenciados por Marcos Freire, que nasceu em Nova York, cresceu no Rio e está desde 2000 em Miami — segundo ele, "um Rio que deu certo".

Além da proximidade geográfica com o Brasil, a cidade seria estratégica para imigrantes pois "não é América 100% ainda": mais cosmopolita, com muita gente falando português e espanhol. Na Flórida, diz ele, "um conservador mente aberta", num tom elogioso, políticos não permitem, por exemplo, tendas montadas pela população de rua.

"Glamour é uma ilusão", diz a consultora de arte paulistana Bianca Cutait, 43, servindo em sua casa um blend de café feito por ela própria, no prédio onde mora o músico Lenny Kravitz. Desde 2013 em Miami, foi contratada recentemente como especialista sênior da casa de leilões londrina Bonhams, uma das maiores do mundo.

O mercado de arte é "como outro qualquer, a diferença é o público", diz ela, que acorda às 3h para participar de reuniões online com parceiros em Hong Kong e trabalha até altas horas em Miami. "O público poder pagar US$ 560 mil num quadro de Adriana Varejão não quer dizer que eu posso. Adoraria, mas não é assim. A gente vê o glamour, mas não significa que nós somos o glamour".

Dias antes da pandemia, Cutait encontrou o prefeito de Miami num coquetel. Suarez disse que queria transformar a cidade no maior "tech hub" dos EUA. "E não é que ele fez? Deu linha para a pipa e foi o porta-voz dessa 'brincadeira'", diz ela. Desde então, a cidade passou a abrigar eventos gigantes, de bitcoin a arte NFT. Uma das consequências do crescimento acelerado é o trânsito, tanto que ela comprou um patinete elétrico para percorrer diferentes pontos da Art Basel de Miami, feira de arte que movimenta cerca de US$ 65 bilhões por ano.

Dos carrões que cruzam a cidade não dá para ver, mas Miami também tem ruas sujas e fedidas de urina. Após a pandemia, a população de rua ficou mais visível, acrescenta ela, que faz trabalho voluntário em abrigos.

"Você vê trailer, gente vivendo na miséria em North Miami Beach", conta a empresária mineira Mila Garro, 35, que mora no alto do Trump International Resort, em Sunny Isles. Fiel da Igreja Universal, ela evangeliza nos bairros pobres nos finais de semana. Outras vezes, vai pregar nos bairros ricos: "Dentro desses lugares, o que mais tem é gente triste".

Garro cresceu com a avó, dona de loja de lingerie em Contagem (MG). Aos 19, decidiu migrar para os EUA "na cara e na coragem", trabalhando como faxineira. Casou com um empreendedor, e juntos foram para Charlotte, na Carolina do Norte. Lá, ela abriu a empresa de faxina Fiv5 Star Cleaning: começou limpando 28 casas em 2011; em 2015, já eram 600. No fim de 2016, alcançou o primeiro US$ 1 milhão de faturamento. Três anos depois, o marido recebeu uma proposta de trabalho e o casal se instalou na Flórida.

"'Pô, venci na vida', alguém pode pensar, mas não é isso: minha maior vontade era poder ter dignidade", diz, citando que já foi humilhada por chefes anteriores. Na manhã da entrevista, ela viajou de Orlando a Miami à noite, fez as unhas às 5h, passou num mercado para preparar um café caprichado e se produziu com uma maquiadora profissional às 8h. Tinha Louboutin nos pés e Chanel nas orelhas. Não para ser famosa, mas "para ser famosa na faxina: para que vejam que faxineira pode se vestir bem, ter empresa, estudar".

Da varanda de Garro dá para ver o arranha-céu da Porsche ao lado. Ela gosta da vista, imagina um dia mudar para lá. "Às vezes Miami traz muito isso, ilusão."

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