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'Goodbye, Brazil': como a Flórida virou reduto da elite brasileira

A cantora Ivete Sangalo durante show na Florida Cup, em Orlando  - Vanessa Carvalho/Folhapress
A cantora Ivete Sangalo durante show na Florida Cup, em Orlando Imagem: Vanessa Carvalho/Folhapress

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

23/09/2020 04h01

"Disney style lover & Orlando, FL explorer" diz o perfil no Instagram da paulistana Carolina Grabova, 41. Aos 17, ela participou do programa de estágio dos parques da Disney. Era para ser uma simples temporada, tornou-se uma vida: desde 1996 radicada em Orlando, no estado da Flórida, Grabova hoje trabalha como modelo, é influenciadora digital e uma espécie de embaixadora especial brasileira no mundo mágico de Walt Disney.

"A Flórida tem um jeito casual de ser, um inverno ameno e praias lindas, o que é familiar para os brasileiros. Também é [geograficamente] o estado mais próximo ao Brasil", diz ela, que em 2020 foi a primeira brasileira escolhida para apresentar a Walt Disney World Marathon, maratona realizada desde 1994.

Embora simbolize o estilo "Orlando, FL explorer", Grabova considera difícil definir o perfil dos brasileiros na Flórida, diante da diversidade de experiências. Entretanto, ela destaca qualidade de vida e segurança como pontos que continuam a atrair conterrâneos para lá — dos 1,3 milhão de brasileiros morando em território norte-americano, estima-se que 300 mil se instalaram na Flórida, indica o Itamaraty.

Entre maio e agosto de 2020, o mercado imobiliário de casas de férias na cidade cresceu 38%, impulsionado por brasileiros, segundo dados do The Grove Resort & Water Park, misto de rede hoteleira e desenvolvedor que oferece unidades "a 5 minutos" do Walt Disney World, como diz o site oficial.

Esperar 16 horas na fila do auxílio emergencial de R$ 600 não faz parte da realidade desses investidores. Segundo dados da consultoria Elite International Realty, cerca de 300 imóveis foram adquiridos por brasileiros em Orlando e Miami, em 2019; na última década, a média anual foi 275. Em Miami Beach, o preço das casas de luxo subiu 61%, alavancado pela demanda brasileira, ultrapassando a marca de US$ 10 milhões (cerca de R$ 54 milhões).

Carolina Grabova, modelo e influenciadora que mora na Flórida (EUA) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Carolina Grabova, modelo e influenciadora que mora na Flórida (EUA)
Imagem: Arquivo pessoal

Para Daniel Ickowicz, diretor de vendas da Elite International Realty, estrangeiros escolhem investir nos Estados Unidos, especialmente na Flórida, por fatores como segurança, sociedade, universidades e hospitais "super modernos". "Além disso, o clima de Miami é muito favorável à prática de esportes náuticos, barcos, jet ski, bem como golfe. E Orlando é o centro dos parques de diversão para crianças, adolescentes e para se divertir ao ar livre."

Pré-pandemia, os Estados Unidos receberam a visita de 2,1 milhões de brasileiros; 70,9% viajando a passeio. Flórida foi o principal destino (58,12% dos turistas). Entre as cidades floridenses, Orlando (40,88%) e Miami (26,97%) lideram, segundo dados oficiais do NTTO (National Travel and Tourism Office).

Fato é que a Flórida e os brasileiros têm uma relação bilateral especial, conforme escreveu o diplomata Adalnio Senna Ganem no diário Miami Herald, em 2017. "Andando pela Lincoln Road em Miami Beach ou pelo Bayside Marketplace, não é incomum ouvir um ritmo diferente de palavras sendo ditas — é o português do Brasil. Na Ocean Drive, você pode pedir 'caipirinhas', a mais popular bebida brasileira. Em Wynwood, você pode ver o trabalho incrível de artistas brasileiros renomados, como Os Gêmeos, Nina Pandolfo, Eduardo Kobra e Panmela Castro. [...] Acima de tudo, você pode ver a felicidade dos brasileiros refletida na arte de Romero Britto", ilustrou o autor, à época cônsul-geral do Brasil em Miami.

Mas, Brasil, por que a Flórida?

Vista aérea de St. Augustine, na Flórida (EUA) - Lance Asper/Unsplash - Lance Asper/Unsplash
Vista aérea de St. Augustine, na Flórida (EUA)
Imagem: Lance Asper/Unsplash

Três ondas

No livro "Goodbye, Brazil" (ed. Contexto, 2013), a antropóloga norte-americana Maxine Margolis assinala que é no sul da Flórida que está o maior foco de brasileiros residentes, de diferentes perfis sociais: dos ricos instalados principalmente em Miami a operários de Pompano Beach e Deerfield Beach.

Desde a década de 1980, a imigração brasileira rumo à Flórida aconteceu em três ondas, descreve Alex Guedes Brum, 29, autor de "Brasileiros no exterior: o caso da Flórida" (ed. Multifoco, 2018) e professor colaborador do curso de Relações Internacionais da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Principalmente nos anos 1990, migraram os brasileiros de classe média — eram os tempos do Plano Collor, que impulsionou negócios entre Brasil e Estados Unidos, e do Plano Real, que equilibrou a inflação e instituiu a paridade de R$ 1 para US$ 1. Empresas como Odebrecht, Embraer e Banco do Brasil se instalaram e transferiram funcionários para lá. Ao lado dos funcionários e suas famílias imigraram trabalhadores de apoio como babás, domésticas e motoristas. "Para quem tinha muito, era hora de investir. Para quem não tinha nada, valia tentar a sorte no exterior", diz Brum.

O momento também inspirou a abertura de lojas para turistas brasileiros e incentivou o fluxo de sacoleiros e sacoleiras que buscavam novidades de Miami para revender no Brasil. O fim da festa aconteceu em 1999, na crise da desvalorização do real, levando lojas brasileiras à falência. Embora desempregados, muitos brasileiros preferiram se realocar em trabalhos não-qualificados na Flórida mesmo.

Na segunda onda, de 1999 até a crise de 2007-2008, foi a vez da classe trabalhadora imigrar, compondo "enclaves brasileiros", nas palavras de Brum. Eles chegaram sozinhos (sem família e filhos) para trabalhar em construção civil e infraestrutura, ou para arriscar em pequenos negócios.

Tudo mudou após o 11 de setembro: diante dos atentados em 2001, os EUA endureceram as regras de imigração e passaram a deportar imigrantes sem documentos. o que não acontecia com tanta frequência. Ante a crise econômica do final dos anos 2000, que estourou primeiro por lá, muitos brasileiros decidiram voltar ao Brasil.

A partir de 2009, passaram a migrar brasileiros das classes mais altas, e por razões menos ortodoxas. Entre os marcos da época estão as jornadas de junho (2013) e a crise política (2014). "Era a elite brasileira insatisfeita com o país. Eles não se sentiam seguros, nem física nem financeiramente."

O custo de vida mais acessível é um fator importante, segundo Aloysio Vasconcellos, 76, presidente da Brazilian International Foundation, que controla o BBG (Brazilian Business Group). Aos 25, ele foi estudar administração internacional nos Estados Unidos. "Era ditadura e eu não queria ficar no Brasil", lembra.

Em 1989, saiu do Citibank, onde trabalhava, e montou uma consultoria na área de investimentos internacionais em Nova York. Em 2000, mudou-se para a Flórida, "por duas razões: é mais quente e o custo de uma bela casa em Boca Raton, na Flórida, é a metade do valor de uma casa a 40 minutos de Manhattan".

Aloysio Vasconcellos, presidente da Brazilian International Foundation - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Aloysio Vasconcellos, presidente da Brazilian International Foundation
Imagem: Arquivo pessoal

Em 2006, Vasconcellos deu início ao BBG, uma iniciativa dedicada a integrar brasileiros na sociedade norte-americana. Em 2013, ajudou a fundar o Conselho de Cidadãos da Flórida.

Em 2014 foi realizado o primeiro censo sobre brasileiros residentes: entre 1.276 entrevistados, a maioria saiu do sudeste (principalmente Minas Gerais e São Paulo) e se instalou no condado de Broward; é adulta (28% na casa dos 36-45 anos, 27% entre 46-55 anos), casada (68%), autônoma com Ensino Médio e/ou superior, com renda familiar anual de US$ 36 a 55 mil, green card ou status de cidadão norte-americano. A maior parte se declara democrata, mas não é registrada para votar nas eleições estadunidenses.

Trump & Bolsonaro

Estado-pêndulo crucial, de peso decisivo na disputa à Casa Branca, a Flórida está acostumada a disputas eleitorais dramáticas, resultado de extrema polarização política.

Apesar do alinhamento ideológico e político do presidente Jair Bolsonaro ao governo Trump, muitos brasileiros não veem semelhanças entre os dois presidentes. Em outubro de 2018, Bolsonaro recebeu 81,7% dos 52.554 votos válidos de brasileiros residentes nos Estados Unidos. Em Miami, ele venceria com 91,04%.

O impacto econômico da pandemia pesou para empresários e empreendedores brasileiros na Flórida, dividindo opiniões sobre Trump também. "A única coisa parecida entre Trump e Bolsonaro é que os dois são impetuosos, falam sem pensar", definiu Andreia Casadia, da The Toy Company, numa reportagem da Folha de S.Paulo.

"Vive-se bem aqui na Flórida", diz Vasconcellos. "Quero dizer no sentido prático da palavra: tem escola, hospital, trabalho. Foi um 'acaso' demográfico e econômico a concentração de brasileiros aqui. É um clima bom, muita gente falando português e espanhol. Não é gente iletrada — não quero dizer 'analfabeto', quero dizer que tem certa escolaridade, que busca um estilo de vida: ser feliz, acordar e trabalhar honestamente."

Nos tempos de universidade no Rio, Vasconcellos teve aula com o jurista Haroldo Valadão (1901-1987), que disse uma frase jamais esquecida: "brasileiro nato é quem nasce brasileiro".

"O que isso quer dizer? Que nós nunca deixamos de ser brasileiros. Pode ser um pouco romântico, mas não perdemos a brasilidade. Por isso talvez haja sempre a ideia de 'um dia' voltar ao Brasil, mesmo muitos sabendo que nunca vão voltar. Por isso se discute, em português, política brasileira apaixonadamente, não importa há quanto tempo estejamos fora. É um fenômeno. Mas, no fim, não vejo brasileiros da Flórida voltando ao Brasil. Vão voltar para quê?"