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A 'epidemia de Karens' nos EUA -- e o que isso diz sobre racismo no país

A youtuber norte-americana Sierra Schultzzie, imitando uma "Karen" - Sierra Schultzzie/Twitter
A youtuber norte-americana Sierra Schultzzie, imitando uma 'Karen' Imagem: Sierra Schultzzie/Twitter

Caio Delcolli

Colaboração para o TAB

10/09/2020 04h00

"Senhor, estou pedindo para você parar de me filmar. Por favor, desligue o celular", diz a mulher de máscara para o homem negro. "Não se aproxime de mim", ele responde. "Então vou tirar fotos e chamar a polícia. Vou dizer a eles que tem um homem negro ameaçando minha vida", ela retruca. Ao ligar para a polícia, é exatamente isso que ela diz.

A mulher se chama Amy Cooper e o homem, Christian Cooper (sem parentesco). Em maio, ela estava passeando com o cachorro sem coleira em uma área do Central Park, em Nova York, geralmente usada por observadores de pássaros (observar pássaros era o que Christian fazia ali), e em que cães não podem estar soltos. Após o vídeo feito por Christian viralizar, Amy ficou conhecida como a "Karen do Central Park".

Em meio aos protestos do movimento Black Lives Matter, a derrubada de monumentos a líderes dos Confederados da Guerra Civil (1861-1865) e a eleição presidencial se aproximando, os Estados Unidos estão vivendo uma "epidemia" de "Karens".

Elas têm sido flagradas em vídeos protagonizando barracos em que hostilizam publicamente negros, latinos, hispânicos e asiáticos, acusando-os de cometer crimes e de assediá-las. Mesmo não havendo qualquer tipo de crime ou infração envolvida, elas chamam a polícia. A hashtag #Karen, no Instagram, já conta com mais de 890 mil postagens, enquanto a página Dailykarens, no TikTok, tem mais de 200 mil seguidores e quatro milhões de curtidas. Karens têm dado origem a incontáveis memes.

"O que e quem é uma Karen depende de quem você é e do contexto em que eles são usados", diz Heather Suzanne Woods, especialista em retórica e mídia pela Universidade da Carolina do Norte e pesquisadora de memes. "A interpretação dominante é a de que Karens são mulheres brancas e arrogantes que usam seu privilégio [de raça] mesmo quando isto põe outras pessoas em risco."

Uma Karen pode ser muitas coisas, e não apenas uma branca da classe média-alta que instrumentaliza a cor da própria pele para prejudicar minorias raciais, chamando a polícia. Nos últimos meses, a mitologia dessa personagem do imaginário popular norte-americano tem se expandido. Ela é a mulher irritante adepta ao corte de cabelo "bob cut" que pergunta "posso falar com o gerente?" quando não consegue o que quer em lojas e restaurantes. Ela também chama a polícia quando vê crianças e adolescentes brincando em lugares onde, segundo ela, não deviam brincar. Muitas Karens se recusam a usar máscara durante a pandemia e frequentemente são interpretadas como eleitoras de Donald Trump. As versões masculinas delas são chamadas de "Brad", "Kevin" ou "Ken", e usam roupas esporte fino ou social.

Muitos desses comportamentos são parecidos com os que observamos no cotidiano das desigualdades brasileiras, como a "carteirada" de dizer à uma autoridade "cidadão não. Engenheiro civil formado. Melhor do que você" e hostilizar um motoboy negro dizendo que ele "tem inveja" de quem mora em um condomínio residencial. Karens vão além dos memes. Karens são um fenômeno linguístico, da cultura popular e da história dos EUA — e podem representar verdadeiros riscos para a vida de não-brancos.

'Becky, olha a bunda dela'

Antes dos memes das Karens, já havia outras personagens, como a "barbecue Becky" ("Becky do churrasco") e a "Permit Patty" ("Patty da permissão"). Em 2018, ambas protagonizaram vídeos virais.

A primeira, Jennifer Schulte, ligou para a emergência ao deparar uma família negra fazendo um churrasco em um parque em Oakland, na Califórnia, e passou a ser chamada de "barbecue Becky" em incontáveis memes. A segunda, Alison Ettel, chamou a polícia para denunciar uma menina negra de oito anos vendendo água sem autorização legal na rua.

"Becky" é o apelido dado a mulheres brancas que conhecem nada da cultura negra e estão alheias ao que podem representar. Ela é mencionada na música "Baby Got Back", clássico do rap dos anos 1990, em que Sir Mix-a-Lot declara devoção a nádegas grandes.

Na letra, há duas mulheres — retratadas como brancas no videoclipe — conversando entre si sobre a negra que observam. Com perceptível sotaque californiano, uma diz a outra: "Ai, meu Deus, Becky, olha o bumbum dela! É tão grande. Ela se parece com uma daquelas namoradas de rappers. Quem entende esses caras? Eles só falam com ela porque ela se parece totalmente com uma prostituta, tá bom?". E continua: "Que nojo, olha. Ela é tão? negra". Becky "reapareceu" em 2016 na letra de "Sorry", de Beyoncé, em que a cantora sugere ter sido traída pelo esposo, Jay-Z, com a "Becky do cabelo bom".

Memes de Beckys, Permit Pattys e Karens podem ter surgido entre o grupo formado por usuários negros do Twitter. A mulher branca com essas características passou a ser chamada de Becky — e depois, de Karen. Ainda não está de todo claro como a mudança de nomes aconteceu, mas ela já se consolidou.

Em participação no programa humorístico de TV "Saturday Night Live" em 2018, o ator Chadwick Boseman, morto recentemente, interpretou o super-herói Pantera Negra descrevendo uma situação hipotética em que uma Karen leva uma salada de batata mal temperada a um churrasco de negros. "Acho que essa branca não tempera a comida dela", diz. "E ela provavelmente adiciona algo desnecessário, como uva passa. Eu deveria responder 'não, Karen, fica com essa salada de batata sem graça só para você'."

Segundo Jamaal Muwwakkil, que estuda linguística sociocultural na Universidade da Califórnia, se considerarmos Karen um termo que descreve um conjunto de comportamentos, então qualquer pessoa que os pratique pode ser chamada de Karen. "Prestar atenção às mudanças linguísticas no uso do termo, como nas flexões, e a quem é capaz de ser legitimamente chamada de Karen, podem representar uma mudança no nosso entendimento do que queremos dizer ao rotular alguém como Karen e sobre quem estamos conversando", diz.

Especula-se que a origem de Karen como termo pejorativo é uma lendária thread (sequência de comentários) na plataforma Reddit, já apagada, chamada "fuck_you_karen", em que o autor falava mal da ex-esposa, cujo nome você já deve ter adivinhado. Hoje, outra sequência de comentários, chamada "FuckYouKaren", tem mais de 960 mil membros. Criada em dezembro de 2017 pelo usuário "karmacop97", ela traz memes com Karens exigindo falar com o gerente e advogando pelo término do distanciamento social na pandemia do novo coronavírus.

"Os memes expõem uma realidade bastante comum a não brancos, atendentes de lojas e qualquer um que possa ser um indivíduo marginalizado. Karens estão por toda parte. Karens são terríveis. Karens podem fazer com que você morra", afirma Muwwakkil.

Karen, a sinhá

O risco à vida de não-brancos é um elo entre Karen e "Miss Ann", o termo que negros usavam no período colonial norte-americano para se referir às brancas das classes média e alta que trabalhavam como governantas em mansões no sul dos EUA dos séculos 18 e 19, conta a historiadora Christina Proenza-Coles. As "Miss Anns" não apenas supervisionavam os escravizados como lucravam com o mercado de compra e venda deles.

No início do século 20, o termo se popularizou no período Renascimento do Harlem, o bairro de Nova York. "Miss Ann" passou então a ser vista como a branca bem-intencionada, mas possivelmente perigosa em sua ignorância — não diferente da Becky. "Mister Charlie", apelido dado a homens brancos escravocratas, também se consolidou naquela época e ganhou força no período do movimento dos direitos civis.

"A branquitude é muito importante para alguns norte-americanos", diz Proenza-Coles. "Acredito que a maioria dos brancos sequer sabe da quantidade de violência que foi e continua a ser perpetrada contra negros. Muitos negam a História quando são confrontados com ela; outros se sentem compelidos a repeti-la. Também há uma histeria enraizada."

Karen, a cancelada

Karens estão sendo reconhecidas e várias, como registram postagens nas redes sociais, têm sofrido consequências. Amy Cooper é um exemplo: ela perdeu o emprego após o incidente no Central Park, mesmo após reconhecer suas atitudes racistas e pedir desculpas publicamente.

Em São Francisco, o político negro e democrata Shamann Walton introduziu um projeto de lei chamado "The CAREN Act" para penalizar ligações à emergência (nos EUA, o famoso "911") feitas sem suspeita razoável de crime e com motivação racial. "CAREN" é sigla de Caution Against Racially Exploitative Non-Emergencies, algo como "cautela contra não-emergências racialmente exploradoras", em livre tradução — e já conta com nove votos favoráveis e pode ser aprovado pela prefeita, London Breed, ainda em setembro.

O projeto de Walton vem após, em 2019, o legislativo de Grand Rapids, Michigan, aprovar o banimento de ligações com motivação racial ao 911. O objetivo dessas leis é tornar as denúncias de crime mais factíveis e justas, além de poupar custos de tempo e dinheiro envolvidos nessas ligações desnecessárias.

As Karens são os mais novos alvos da cultura do cancelamento? Proenza-Coles é direta na resposta. "Após a Suprema Corte definir como ilegal a segregação racial em escolas em 1954, no estado da Virginia algumas escolas públicas ficaram fechadas por cinco anos, em vez de permitir matrículas de crianças negras. Esta, sim, é a cultura do cancelamento."