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Em Portugal e Espanha, colonização é ensinada como 'expansão de território'

Desembarque de Cabral em Porto Seguro. Óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva, 1904 - Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro
Desembarque de Cabral em Porto Seguro. Óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva, 1904 Imagem: Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

Natália Eiras

Colaboração para o TAB, de Lisboa (Portugal)

07/07/2020 04h00

Em 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo errou o caminho para as Índias e foi parar no Caribe -- hoje, parte da atual América Central. Apesar do "Novo Mundo" ter habitantes, os povos ameríndios, esta data ficou conhecida como o Descobrimento da América. Desde então, todos os anos acontece, na Espanha, o Dia da Festa Nacional (ou Dia da Hispanidade), porque, em muitos países do outro lado do Atlântico, o início da colonização das Américas ainda é motivo de celebração.

Com o movimento Black Lives Matter ("Vida Negras Importam", em português), imagens em que pessoas negras do Congo aparecem enjauladas -- como pets de crianças brancas, e com membros mutilados como castigos por não cumprirem suas cotas de exploração de borracha -- foram disseminadas pela internet. Eram fotografias feitas de 1867 até 1960, quando parte do território do continente africano era uma colônia belga. No dia 30 de junho, o atual rei da Bélgica, Philippe, aproveitou o aniversário de 60 anos da independência do Congo para pedir perdão pelos atos de violência. Foi a primeira vez que um monarca pediu desculpas pela colonização.


O fato impressionou porque não é comum, em países como a Espanha e Portugal, as pessoas terem a real dimensão do quão violento é a colonização. Nestes lugares, os descobrimentos são explicados como meros processos de "expansão de território", que representou momentos gloriosos de suas respectivas jornadas.

"Nas escolas espanholas, a história das colônias é colocada sob o contexto do engrandecimento da Espanha. Para falar de como os navegadores espanhóis levaram minérios para a Europa, de como eles trouxeram a organização de governo para as Américas. De como eles dominaram os maias, astecas e incas", diz Leia Adriana da Silva Santiago, professora do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Goiano. A historiadora entrevistou nove professores do ensino secundário de nove escolas diferentes de Barcelona, na Espanha, para um artigo da revista espanhola "Enseñanza". "Um dos professores me disse que não sabia o que falar sobre as Américas -- já que este, de acordo com ele, era um tema marginal em seu país. Porque, se não for sob este contexto de engrandecimento da Espanha, não se fala sobre a colonização."

Marta Araújo, pesquisadora principal do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, fez um trabalho extenso, de setembro de 2008 até fevereiro de 2012, sobre os manuais de ensino portugueses, que incluiu entrevista com professores e estudantes. Publicada no artigo "Raça e África em Portugal: um Estudo sobre Manuais Escolares de História", a investigação mostrou que ainda há uma leitura pouco crítica sobre o colonialismo português dentro de Portugal. "Ele costuma ser abordado como algo positivo, já que ajudou no crescimento do país em todos os níveis, porém também coloca a Escravatura sob a mesma perspectiva", diz a pesquisadora.


Olhar a colonização sob lentes cor-de-rosa tem a ver com o orgulho desses países que, por muitos séculos, tiveram papel central na trajetória da humanidade -- mas que, atualmente, já não são grandes potências. "Então, é uma forma de justificar o papel deles dentro do contexto europeu", afirma Santiago. Ainda assim, isso não justificaria, de acordo com os críticos dos atuais manuais de ensino europeus, que sejam ignoradas as violências de um processo de colonização. "Não podemos pensar na descoberta de um território sem pensar em como as pessoas que viviam nesse território foram tratadas", afirma Marta Araújo.

"Bons colonizadores"

Nos anos 1960, aconteceu a Guerra de Angola e outros conflitos que ficaram conhecidos como guerras coloniais. Como uma forma de "apaziguar" portugueses e colonos, o Estado Novo Português investiu em propaganda extensiva baseada em uma versão simplificada do lusotropicalismo -- teoria criada pelo brasileiro Gilberto Freyre. O cientista social dizia, em livros como "O Mundo que o Português Criou" (1940), que portugueses "tinham uma capacidade especial de adaptação nos trópicos, não por interesses políticos e econômicos, mas por uma empatia inata". Essa habilidade viria da origem miscigenada do povo de Portugal, cujo território já foi ocupado por mouros, judeus, celtas e germânicos. Assim, o governo incutiu nos portugueses a ideia de que seu processo de colonização era mais "fraterno", muito mais "bonzinho" do que outros europeus.

Por isso, nos livros didáticos portugueses, até hoje, dá-se pouco enfoque às lutas anticoloniais, como a Inconfidência Mineira. Porém, o desconhecimento sobre o processo de colonização aparece, principalmente, na falta de informações sobre a escravatura.

Para realizar a pesquisa, Araújo e outros pesquisadores analisaram os cinco livros didáticos de História mais vendidos no país para alunos do chamado 3º Ciclo do Ensino Básico (12 a 14 anos), que compreende do 7º ao 9º ano. Dali, ela tirou a conclusão que há poucas informações sobre movimentos de resistência de pessoas escravizadas. "Os alunos aprendem como se elas tivessem 'emigrado' de país", explica Araújo. Assim, é comum que jovens portugueses e professores de história nunca tenham ouvido falar sobre Quilombos e Zumbi dos Palmares. "Os estudantes que sabiam eram filhos de brasileiros", diz a pesquisadora. Os manuais de ensino também batem bastante na tecla de que Portugal foi o primeiro país a acabar com a Escravatura, em 1761. Mas eles não citam, no entanto, que o mesmo foi acontecer no Brasil apenas mais de um século depois, em 1888.

A ignorância sobre a brutalidade da escravatura e o lusotropicalismo deram munição para que o partido português de extrema-direita Chega pudesse ostentar, em uma manifestação contrária ao Black Lives Matter, uma grande faixa dizendo que "Portugal não é racista".

A importância do olhar mais crítico

Um levantamento feito pelo grupos de pesquisas TIDE e Runnymade deu conta, em dezembro do ano passado, que não há, no território inglês, ensino sistemático sobre o colonialismo britânico -- mesmo que o currículo obrigatório da Inglaterra diga que os jovens devam aprender "sobre como a Grã-Bretanha influenciou e foi influenciada pelo resto do mundo." Já uma pesquisa feita em março deste ano pela YouGov, empresa britânica de pesquisa de mercado, mostrou que por volta de 30% dos britânicos acreditavam que países que foram colônias da Grã-Bretanha estavam em melhores condições por já terem feito parte do império inglês. Segundo especialistas, este resultado é um sinal claro da ignorância dos britânicos sobre a violência do processo de colonização e os efeitos disso na vida das pessoas não brancas.

Algo semelhante acontece em Portugal, de acordo com Araújo. Uma vez que a escravatura é "romantizada" nas escolas, jovens portugueses acabam "naturalizando" a violência contra pessoas negras. Porque, ao aprender a história de seu próprio país com um olhar mais crítico, portugueses, espanhóis e habitantes de outras nações colonizadoras criariam uma maior consciência histórica e alteridade. "É um olhar de cidadão, de entender que, se eu tenho certos direitos, o outro, que é negro, que é latino, também tem. E essa consciência vai se construindo ao criticar os nossos próprios erros, cometidos com quem é diferente de nós", diz ao TAB a professora Santiago. Assim, poderíamos construir, por exemplo, uma sociedade menos racista.


Mas, se é algo tão importante, por que é tão difícil colocar em prática? Araújo conta que, durante a sua pesquisa, encontrou muitos professores dispostos a dar uma visão diferente sobre o colonialismo português. "Mas eles se sentem muito sozinhos, porque os manuais que precisam seguir não abordam dessa forma. Além disso, precisam preparar estudantes que farão exames nacionais baseados nesses manuais", diz a pesquisadora.

Isso sem falar que eles estariam mexendo em algo grandioso: o orgulho nacionalista de um país. "É um imaginário muito naturalizado. Não são acadêmicos, são as pessoas comuns que aprenderam a história de seu país dessa forma e que estão sendo confrontadas por esse orgulho", observa Araújo. Um exemplo é a polêmica em torno do Padre Antônio Vieira -- que teve um papel importante na colonização portuguesa e é considerado um "escravagista seletivo" pelo movimento negro português. Uma estátua da figura histórica em Lisboa foi pichada, o que causou revolta por boa parte da população de Portugal. "É um sentimento muito intrínseco na identidade nacional, mas não podemos deixar isso de lado."