Roupas para escravizados iniciaram produção de vestuário em série no Brasil
Pensar em moda do século 19 remete a vestidos bufantes, com camadas e mais camadas de tecido em cortes complexos inspirados em modelagens francesas. Para os homens, paletós longos e camisas com golas expressivas. Tudo costurado à mão, claro, na medida de cada cliente.
Mas, ao pesquisar a fundo a produção de roupas desse período no Brasil, o jornalista e historiador Luís André do Prado descobriu que uma importante parte da produção de vestuário nessa época ficou esquecida: as roupas para escravizados. Elas foram o primeiro passo em direção ao desenvolvimento da indústria da moda seriada no Brasil, observou o pesquisador. "Pude comprovar, por meio de anúncios em jornais da década de 1820, a existência de manufaturas de roupas feitas 'em série' para eles", conta Prado ao TAB.
Esse é um dos principais destaques da tese de doutorado "Indústria do vestuário e moda no Brasil do século XIX a 1960: da cópia e adaptação à autonomização subordinada", defendida por Prado no Departamento de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Naquela época, ainda estávamos distantes do conceito de indústria da moda no país, mas essas roupas mais simples já eram produzidas em série graças à existência de padrões de modelagem por tamanhos, relata o pesquisador. "Deviam ser muito simples, do mesmo algodão branco rústico que era usado ensacar café e que predominava nas têxteis em atuação no país naquele período", afirma.
A descoberta revela os primórdios da indústria de moda no Brasil, que hoje ocupa a quarta posição entre os maiores produtores mundiais de artigos de vestuário e a quinta posição entre os maiores produtores de manufaturas têxteis, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e Confecção. Apesar disso, nossa participação no mercado mundial é pequena: ocupamos a 23ª posição no ranking de exportadores.
Do status ao estilo
Prado prefere chamar a produção do século 19 de proto-industrial, ou de manufatura seriada. Na Europa, a produção manual já começava a dar lugar para as máquinas, relata o pesquisador na tese. Peças brancas e íntimas eram fabricadas em escala entre os séculos 18 e 19. Em seguida, outras roupas simples como uniformes e peças infanto-juvenis e masculinas também ganharam produção em série. Foi essa mesma ordem que seguimos por aqui.
Daquela época, ficaram para trás as roupas de escravizados, mas mudou também a forma com que as nossas roupas externalizam status. "Na segunda metade do século 20, a gente teve a consolidação da cultura jovem. Vieram outros marcadores, e a gente começa a ter uma ideia de uma moda que representa mais as identidades e menos a questão de classe", explica Maria Eduarda Guimarães, professora de Design de Moda do Senac São Paulo. Marcas caras ganham espaço nos guarda-roupas do hip-hop, do rap e do funk, estilos que surgiram nas periferias, enquanto CEOs saem por aí de moletom e jeans.
Evoluiu, por exemplo, a imagem da camiseta branca de algodão. O que era peça íntima "veio para fora, ganhou cores, inscrições e se tornou item de moda desde os anos 1960", observa Prado. A calça jeans é outro exemplo. Usada pelos mineiros norte-americanos, as calças azuis criadas por Levi Strauss são usadas em todas as classes sociais e ganharam versões para todos os estilos. "Ainda é um marcador, mas acho que é mais do que só o valor monetário. É marcador da posição política e cultural. É uma expressão de identidade e de estilo de vida", diz Guimarães.
A roupa esportiva usada no dia a dia — estilo mais conhecido recentemente pelo termo em inglês "athleisure" — é reflexo dessas mudanças. A série "Explained", da Vox (disponível na Netflix), mostra como as leggings, os tecidos tecnológicos para alta performance e os moletons bem cortados passam a mensagem do sucesso: faço parte do grupo de pessoas saudáveis, apesar da rotina corrida. "Quero que seja aceitável entrar e sair do treino, levar meus filhos para a escola e ir trabalhar. E não quero gastar uma fortuna ou trocar de roupa no caminho. Quero usar uma legging", diz na série a atriz Kate Hudson, dona de uma marca de athleisure.
Não é que as diferenças de classe tenham se apagado na moda. Agora, outros marcadores evidenciam as diferenças e reforçam preconceitos. "É mais complexo entender atualmente; precisamos de mais elementos para ver distinção social. Não é só a roupa — é o corpo de academia, é um xampu caro que deixa o cabelo de certa maneira, é como você se movimenta, como se porta", avalia Guimarães.
A crítica de moda do jornal The Washington Post Robin Givhan faz uma análise parecida no episódio Athleisure da série Explained: "Eles podem andar por aí de moletom porque eles são homens brancos, bilionários do Vale do Silício. Outras pessoas sem esse privilégio não podem andar de moletom."
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